São Paulo, domingo, 22 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ brasil 503 d.C.

Guardar a memória de alguém cria o risco constante de trair os acontecimentos de sua vida em uma moldura arbitrária

Os que vencem após a morte

Jurandir Freire Costa

A morte das pessoas queridas impõe um difícil trabalho aos que lhes sobrevivem: como mantê-las na lembrança depois que o luto cessa. O sofrimento, como toda emoção, cedo ou tarde passa. Os que morrem, porém, podem escapar ao esquecimento, se a posteridade assim decidir. Anamaria Ribeiro Coutinho morreu. Cabe aos que a conheceram decidir qual o destino de seu nome. A empresa, obviamente, é temerária. Como guardar a memória de alguém sem trair sua vida? Lembrar é sempre fixar os acontecimentos em uma moldura arbitrária. No caso da morte, o perigo do arbítrio é maior, pois aquele que é lembrado nem tem chance de escolher a moldura nem o retrato emoldurado. Resta, então, seguir o exemplo dos mais nobres, ciente do risco corrido, mas também da esperança de acertar onde é tão fácil errar. Hannah Arendt [pensadora alemã, 1906-75" -e, nessas horas, quem melhor que Arendt?- foi uma das luminosas inteligências capazes de falar da morte, respeitando a dor dos que ficam e a lembrança dos que se foram. Em uma homenagem prestada a Isak Dinesen [pseudônimo da escritora dinamarquesa Karen Blixen, 1885-1962", ela citou o que a romancista dissera sobre a dor: "Todas as dores podem ser suportadas se você as puser numa história ou contar uma história sobre elas". Nas histórias, a dor se torna suportável porque deixa o tempo fútil da emoção pela imortalidade da duração. Contemos, portanto, a história de Ana [1940-2002". Qual história, porém? Com certeza, não um relato psicobiográfico. Quem a conheceu sabe o quanto ela era avessa a tudo isso. Contar sua história, creio, é falar de sua inspirada paixão pelo saber e pela doação do que sabia. Balzac [escritor francês, 1799-1850" disse que "as grandes paixões são raras como as obras-primas". A relação de Ana com o conhecimento tinha o toque da obra-prima. Sua vida, dedicada à psicologia na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), foi um primor de conduta universitária. Além disso, eis o mais importante -no trato com os enigmas da mente tinha uma curiosidade insaciável. Onde a maioria de nós pedia pausa, Ana teimava em continuar. Qualquer afirmação imperativa a impacientava; qualquer argumento especioso a fazia bocejar. Psicologia, a seu ver, jamais poderia ser o truque de deixar de fora o que é embaraçoso explicar. A experiência humana capturada em sua origem ambígua, fluida, imprecisa, nunca tem o rosto engessado que apresenta nos vocabulários teóricos oficiais. Daí vinha o caráter provocante, ofuscante e, tantas vezes, encantadoramente gauche de suas perguntas e questões. Se pudesse, de forma tosca e "ad hoc", classificar os que se interessam pela vida mental, diria que se dividem em dois grupos: os que querem conhecer a natureza da alma humana e os que esmiuçam as causas dessa vontade e da satisfação com as conclusões a que chegam. Ana pertencia ao último.

Superfície aberta
Como Wittgenstein [filósofo austríaco, 1889-1951], a quem não se cansava de reverenciar, sua sensibilidade era uma imensa superfície aberta a uma única e enorme questão: o que nos faz "dar valor" às coisas antes mesmo de sabermos o que é "valor"? O que nos faz crer que o bem é preferível ao mal; o belo ao feio; o verdadeiro ao falso ou o justo ao injusto? Será que, onde vemos a mais elementar "necessidade", já não a descrevemos desse modo porque ela é um "valor" avant la lettre ou, melhor, "avant le langage"? "Valor" é uma propriedade de palavras e frases ou uma propriedade da vida?
Em seus anos de ensino, dividiu essa inquietação com todos os alunos e colegas que se dispuseram a ouvi-la ou a fazê-la ouvir suas próprias idéias. Para entender, no entanto, o alcance do que a fascinava, é preciso enfatizar o que ela insistia em deixar claro.


O que nos faz crer que o bem é preferível ao mal; o belo ao feio; o verdadeiro ao falso ou o justo ao injusto?


Em psicologia, não se chega ao problema dos valores sem um pé na démarche científica. Observar a variação singular da vida, nas brechas das grandes teorias, não é ponto de partida; é ponto de chegada. É o prêmio dado ao exercício do rigor do método, não à retórica preguiçosa. Ver o mundo mental como um artista é privilégio de quem pensou e agiu como um cientista. Quem abandonar o "longo e ventoso caminho" pelo atalho da facilidade irá, no máximo, como disse Arendt, gozar da fama de "uma semana de capas de revista".
Esse talento incomum levou Ana a circular perfeitamente à vontade nos salões de Freud, Wittgenstein, Quine ou Foucault com o olhar tímido e hipersensível de um Kafka, de um Proust, de um Walter Benjamin ou de uma Clarice Lispector. Não lhe bastava, ao modo da ciência, entender como as palavras se soldam às coisas; ela queria, ao modo da arte, saber o que sobra da soldagem. As várias teorias psicológicas -behaviorismo, mentalismo, consciencialismo, materialismo reducionista, pragmatismo linguístico, psicanálise etc.- produziram, sem dúvida, teses empíricas interessantes sobre a relação mente-corpo. Mas, pensava ela, o que verdadeiramente importa são "os restos" da razão instrumental; as raspas de onde emerge o sentido do que nos faz querer viver ou morrer. Freud, Winnicott ou Lacan, para falar do que me concerne, certamente entenderiam esse ímpeto rebelde às convenções.
Seja como for, não há modo radical de pensar sem consequências. Ana não usufruiu, com público extra-universitário, o prestígio intelectual ao qual fez jus. Era uma asceta das idéias e, até o fim, não cedeu ao "publish or perish", esse nocivo vírus que infectou boa parte da mentalidade acadêmica. No íntimo, com ou sem consciência plena, se manteve fiel a Wittgenstein: escreveu pouco, pensou muito, perguntou ainda mais e, sobretudo, "mostrou" com exemplos de vida que o essencial da ética está no que é "calado".
Minha história de Ana pára aqui. É o começo de uma história de admiração por tudo o que ela me ensinou e, principalmente, de gratidão pelas lições de cortesia, troca intelectual, delicadeza, honestidade e amor ao conhecimento que, dificilmente, esquecerei enquanto viver.
Sêneca disse que "nada nos pertence daquilo que o acaso nos traz". O reconhecimento póstumo, contudo, é uma exceção a essa regra. Embora trazido pelo acaso, uma vez ganho, não pode ser perdido. Os que o recebem, como Ana, são titulares de dons em méritos que o tempo não corrompe. Eles são os melhores, e sobre eles disse Cícero: tudo seria diferente "se vencessem na vida aqueles que venceram na morte".
Ana, em nome dos que te queriam tanto bem, -parentes, amigos e colegas-, um carinhoso adeus!

Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (ed. Rocco). Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".


Texto Anterior: De Al Jonson a Bob Dylan
Próximo Texto: + livros: A instituição em aberto
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.