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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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+ brasil 503 d.C.

O JOGO DA INDEPENDÊNCIA

Evaldo Cabral de Mello

Na "História do Brasil" (1836), em que se propôs completar a obra de seu compatriota Robert Southey, John Armitage observou o notável descompasso que prevaleceu no período joanino e ao tempo da Independência entre as aspirações políticas do Norte e do Sul da América portuguesa. No Norte, as reivindicações eram muito mais amplas, pois visavam à "adoção de instituições representativas", enquanto a elevação do Brasil a reino fora suficiente para contentar o Sul, mas não para evitar a revolução republicana de 1817. Armitage atribuía o fato à expoliação fiscal das Províncias do Norte, a qual se acentuara desde a instalação da corte portuguesa no Rio de Janeiro, sujeitando-as "a uma pesada quota de encargos, ao mesmo tempo que comparativamente com a capital colhiam muito menos vantagens do que a esta derivava com a chegada da família real". Daí a assimetria regional do processo de independência, observada pelo representante austríaco no Rio, o barão Wenzel de Mareschal, ao escrever em 1823 a Metternich, a propósito da Constituinte, que ela era "muito democrática para o Sul e pouco para as Províncias do Norte", motivo pelo qual a oposição ao imperador partia basicamente das bancadas nortistas ou, antes, de uma minoria de 10 ou 11 constituintes, majoritariamente oriundos do Norte e, o que era pior, ex-revolucionários de 1817.

Previsões pessimistas
À medida que avançavam os trabalhos da Assembléia Geral, os federalistas do Norte viam confirmadas suas mais pessimistas previsões. Cipriano Barata, que Cairu chamava de "botafogo", "pior que o antigo incendiário Erostrato, que queimou o templo de Diana só para obter fama com infâmia", afirmava na sua gazeta recifense, "A Sentinela da Liberdade", que a elaboração constitucional tornara-se uma perda de tempo, devido ao "servilismo dos povos do Sul", cada dia "mais patente e escandaloso", e ao verdadeiro objetivo do ministério José Bonifácio, que era a outorga da Constituição. Nada se podia contra o inato conservadorismo de uma Assembléia dominada por magistrados e padres, os quais naturalmente conduziam "os negócios para o lado das velhas legislações que já os têm feito felizes a seu modo", em especial os primeiros, que "com dois dedos de direito romano, (os comentários de) Ferreira e Pegas à Ordenação, querem sós dar leis e governar o mundo com a ponta do pé".

Docilidade dos deputados
Mareschal, ao contrário, mostrava-se naturalmente satisfeito. Em dezembro, ele previra que, embora a bancada pernambucana fosse criar problemas, pois incluía jovens radicais entre a maioria eleita pelo interior da Província, o ministério contaria sobretudo com a docilidade da deputação mais numerosa, a mineira, para lhe assegurar uma maioria permanente. No tempo da Independência os "grotões" estavam no Sul. O crescimento do federalismo no Norte, especialmente em Pernambuco, levou José Bonifácio, já alijado do poder, a premeditar em setembro de 1823 um golpe parlamentar destinado a curto-circuitar o debate do projeto de Constituição preparado por comissão presidida por seu irmão Antônio Carlos. À proposta de que as Províncias fossem consultadas sobre o texto, o Patriarca opôs-se veementemente, pois isso equivaleria a depender da "opinião dos tabaréus", "dos padres-mestres", do "cura" e dos "outros senhores da roça". Foi então que ele procurou Mareschal para que sondasse o imperador sobre seu plano. D. Pedro enviaria uma mensagem à Constituinte, alertando-a para a gravidade da situação nacional, tópico predileto do que constituirá a secular tradição do golpismo brasileiro. Com base na advertência, os Andradas arregimentariam uma maioria de cerca de 40 deputados, que passariam moção aprovando em bloco o projeto de Constituição e convocando eleições para a primeira legislatura regular, ao passo que o imperador aproveitaria o recesso do Congresso para liquidar o federalismo pernambucano. A Mareschal, dissera José Bonifácio não existir outra maneira de salvar o regime monárquico-constitucional, "porque, se Pernambuco se havia de separar já ou depois de vencidos alguns pontos do projeto de que a província não gostasse, era melhor que se separasse depois de feito o juramento do projeto como Constituição, porque então como havia uma lei geral até eu (isto é, o imperador, ao anotar a gestão de Mareschal) poderia ir atacar a província à frente do exército e chamá-la à ordem". Em todo caso, urgia a José Bonifácio uma ação imediata, pois as Províncias do Sul já estariam contaminadas pela agitação do Norte. D. Pedro não se opunha ao plano do seu ex-ministro, contanto que a Assembléia se dispusesse a executá-lo por si só, escusando-se de desempenhar o papel que "o Velho" lhe atribuíra na farsa, convencido talvez de que ele lhe cobraria a fatura da volta ao poder.


Urgia a José Bonifácio uma ação imediata, pois as Províncias do Sul já estariam contaminadas pela agitação do Norte


O imperador também alegou que os constituintes do Norte se oporiam à manobra, dando causa a distúrbios que preferia evitar. O argumento de José Bonifácio sobre o Sul, julgou-o realistamente infundado, só visando a amendrontá-lo.

Dissolver a Constituinte
Quanto ao Norte, o imperador e o ministério preferiam por enquanto cruzar os braços, avaliando que a situação em Pernambuco só poderia ser remediada pelos meios da força, cujo emprego teria de esperar, contudo, a solução do contencioso entre d. Pedro e a Constituinte. Quando Mareschal manifestou ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Carvalho e Melo, suas apreensões sobre as consequências que a dissolução teria no Norte, ele retorquiu que aquelas Províncias "estavam perdidas de qualquer maneira mesmo antes disto", só se podendo esperar que "Minas e São Paulo não fizessem tolices".
A essa altura, d. Pedro já se deixava sensibilizar pela idéia ainda mais autoritária de dissolver pura e simplesmente a Constituinte, segundo o desejo do chamado "partido português", encorajado pelo precedente de Portugal, onde havia meses o pronunciamento militar que passaria à história como a Vilafrancada abolira o sistema constitucional erigido pela revolução do Porto de 1820. Mareschal, que observava a ascendência da facção após a queda de José Bonifácio, explicava tratar-se na verdade de um partido da corte, que, sem ser necessariamente favorável a Portugal ou nem sequer à reunião do Brasil com a antiga metrópole, compunha-se de portugueses ou de seus clientes brasileiros. Graças às suas relações pessoais com d. Pedro ou com a imperatriz, eles detinham uma influência e uma consideração que buscavam preservar com unhas e dentes, mercê da maior proporção de lusitanos domiciliados na corte e a despeito da hostilidade da população fluminense, que se queixava de que "todos os portugueses expulsos das províncias são recebidos e acolhidos aqui e (de) que o Rio de Janeiro torna-se o quartel-general dos inimigos da Independência".

Operação recolonizadora
Segundo Mareschal, "a idéia deste partido é de se contentar com as províncias do Sul e do Centro e deixar a Bahia, Pernambuco e as outras províncias do Norte se dilacerarem até que o cansaço as traga de volta". Mesmo a perda definitiva do Norte não lhes parecia um mal, de vez que traria para o Rio "uma multidão de compatriotas que os reforçarão". Mesmo "o inteiro isolamento da Província do Rio de Janeiro e a defecção de todas as outras seriam ainda assim toleráveis, pois é aqui que a maioria deles vive". Daí que, quando em 1824 a perspectiva de uma expedição portuguesa pareceu finalmente concretizar-se (na realidade, não passou de uma das muitas batalhas de Itararé da história brasileira), o ministro do Império, João Severiano Maciel da Costa, que, malgrado ser brasileiro nato, era reputado o mais influente representante da facção lusitana no governo, tenha cogitado um projeto, para o caso de êxito da operação recolonizadora, de abandonar o Norte a Portugal, em troca do reconhecimento de d. Pedro no Sul, ficando a definição dos limites na dependência de eventual negociação. Tal projeto teria a simpatia da maioria ministerial. Não pareciam assim inverossímeis as suspeitas acerca de um acordo secreto entre d. João 6º e o filho, pelo qual este permitiria que a força lusitana submetesse o Norte. Sabemos hoje que ele não existiu, mas que era dado como provável e que em Lisboa o principal ministro, Palmela, contava com a discórdia regional para induzir d. Pedro a "escutar (como ele mesmo escrevia) a voz do seu próprio interesse, identificando-o com o de seu augusto pai e valendo-se do auxílio de tropas portuguesas".


Palmela chegara a aventar ao ministro inglês em Lisboa a idéia do regresso de d. João 6º ao Brasil a bordo de uma esquadra inglesa


Como recordou Octavio Tarquínio de Sousa, Palmela chegara a aventar ao ministro inglês em Lisboa a idéia do regresso de d. João 6º ao Brasil a bordo de uma esquadra inglesa, prevendo que ele seria aclamado na Bahia e no Rio e que o imperador não tomaria armas contra o pai. Em julho de 1824, quando ainda se ignorava em Lisboa a Confederação do Equador, Palmela dava como certa a separação das Províncias do Norte, eventualidade em que "não hesitará Sua Majestade em mandar imediatamente forças que, em vez de deverem ser consideradas hostis pelo Príncipe Regente (isto é, d. Pedro), iriam pelo contrário embaraçar a desmembração de um Reino, que deverá algum dia pertencer-lhe legitimamente".

Reintegração
No Rio, o ministério estava, portanto, disposto a dar mais do que pediria o governo português, pois a concepção de Palmela não consistia, como vimos, em assenhorear-se das Províncias rebeldes para Portugal, mas em debelar a insurreição para, em seguida, negociar sua reintegração ao governo do Rio em troca do restabelecimento do antigo Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Por isso, ele não tinha pressa em responder às gestões britânicas relativas ao reconhecimento da Independência brasileira. Ocorreu que o imperador não dispôs imediatamente dos meios com que agir contra a junta de Manuel de Carvalho Pais de Andrade. Ao afirmar que d. Pedro se mostrava ansioso por que a esquadra velejasse prontamente para o Recife, o almirante Cochrane jogava a culpa pela inação governamental sobre a "facção portuguesa no ministério", isto é, Maciel da Costa, ministro do império, e Vilela Barbosa, da Marinha, que tinham interesse em "animar os distúrbios nas províncias longínquas para com isso promover seus próprios fins no Rio de Janeiro", que Cochrane não diz quais eram, mas que se pode supor fosse a consolidação no poder. Mediante as pequenas dificuldades quotidianas que criavam e malgrado "encontrar-se a província de Pernambuco em plena revolta, a administração achou meios de demorar a esquadra por seis meses". Tampouco o almirante desejava arredar o pé do Rio sem que o governo houvesse resolvido a seu contento a disputa em torno das presas lusitanas feitas na Bahia e no Maranhão. Daí que apenas uma flotilha, sob o comando de John Taylor, outro mercenário britânico a serviço do império, partisse para o Recife, segundo Cochrane, "um insulto premeditado a mim, por não ser consultado na matéria". A ida de Taylor, destituído de experiência política, seria parte da estratégia ministerial de manter em banho-maria o estado pré-insurrecional.

Relação de forças
Como acontecera com a revolução de 1817, a opção por uma Confederação do Norte não resultou de preferência regionalista, mas de uma estimativa da relação de forças realistamente fundada no pessimismo acerca da possibilidade de contar-se com o Sul para se opor ao autoritarismo de d. Pedro, embora pragmaticamente se devesse fomentar o tímido descontentamento daquela parte do Brasil com o sistema imperial.
A dubiedade inerente à aliança entre autonomistas e republicanos que promoveu a Confederação do Equador necessitava ser resolvida previamente (o que não chegou a ocorrer) para que se pudesse definir o rumo futuro do movimento, se regional ou se brasileiro. Se a Confederação houvesse triunfado apenas no Norte, ela teria de se contentar com um destino regional, sobretudo se os republicanos saíssem vencedores da prova; mas, se o Sul tivesse respondido afirmativamente à reivindicação de nova Constituinte, os autonomistas teriam levado a melhor, recebendo um impulso que provavelmente se estenderia a todo o país. Nessas condições, o Brasil poderia ter encetado em 1824 a experiência regional dos anos 30, com a diferença de que, em lugar do Ato Adicional de 1834 à Constituição de 1825, ter-se-ia elaborado outra Carta.

Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "Um Imenso Portugal" (ed. 34) e "O Negócio do Brasil" (ed. Topbooks). Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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