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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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"Fernando Pessoa, Resposta à Decadência", de Haquira Osakabe, percorre o itinerário teórico do autor português para desvendar os impasses de sua obra

Alquimia da impossibilidade

Ettore Finazzi-Agrò
especial para a Folha

Sabe-se que a última conferência de Italo Calvino para as Norton Lectures, a sexta das "Seis Propostas para o Próximo Milênio" [Cia. das Letras", que ele estava preparando para apresentar na Universidade Harvard, deveria ser intitulada "Consistency". Calvino morreu antes de escrevê-la, e só sabemos que, nesse ensaio, ele tencionava falar, sobretudo, em "Bartleby", de Melville. Chamado a resenhar o livro que Haquira Osakabe acaba de publicar ["Fernando Pessoa, Resposta à Decadência]", essa palavra, "consistency", surgiu aos poucos e se tornou, ao longo das páginas, uma chave de leitura importante e por duas razões, cuja lógica quero tentar aqui reconstruir para mim mesmo e para os leitores. A primeira, e talvez a mais superficial, tem a ver com o significado primeiro do termo inglês, remetendo para a nossa consistência: isto é, a análise que Osakabe faz da trajetória teórica e poética de Pessoa tem uma indubitável solidez. Caráter, este, que se pode encontrar em toda a produção crítica dele, sempre fortemente vinculada a uma leitura aproximada, a uma análise atenta do discurso, e ressentindo, nessa perspectiva, do trabalho de aula, do qual o discurso vem e para o qual ele se dirige (cito, como exemplo, apenas o seu volume que se tornou um clássico, "Argumentação e Discurso Político" [ed. Martins Fontes], publicado em 1979).

Sentido metafórico
Quero dizer que Osakabe é antes de tudo um professor -definição que foi perdendo, nos últimos anos e em quase todos os países, a sua "aura", mas que com ele readquire o seu significado mais pleno e positivo: de trabalho hermenêutico feito, primeiro, individualmente (sobre as próprias interpretações, sobre as intuições e as dúvidas acerca de um autor ou de um período) e levado adiante, depois, em conjunto com os outros (e não se esqueça de que o verbo "compreender" tem, justamente, inscrito na origem esse sentido de "tomar com"). Se toda leitura crítica, enfim, é fatalmente um caminho em volta e/ou através dos textos, aquilo que a torna fundamental e concreta, apagando as margens do arbitrário e do aleatório, é exatamente o fato de ela ser submetida a uma confrontação contínua com outras leituras, até chegar a um grau de "exatidão" (outro termo calviniano) e de "consistência" que a tornam indispensável. Não por acaso, na apresentação, o autor, além de listar as suas dívidas em relação a outras leituras e a outros leitores de Pessoa, coloca no mesmo plano "a presença constante de um grupo de alunos" com quem discutiu, ao longo dos anos, as suas opiniões e as suas teorias sobre o escritor português.

Caráter orgânico
A palavra "consistency" tem, todavia, uma outra acepção que gostaria de aplicar ao livro de Osakabe: isto é, o significado de "harmony, logical connection" (estou citando o dicionário "Webster's"). Acepção, esta, que podemos ainda incluir no âmbito da nossa "consistência", mas que fica, nas línguas neolatinas, quase num plano segundo e secundário, diria quase metafórico, em relação ao significado principal. Não sei em que sentido Italo Calvino pretendia estudar a "consistência", mas gostaria que fosse sobretudo neste: na capacidade que um autor tem de combinar e conectar logicamente as diversas partes da sua obra. O livro de Osakabe possui, de fato, também esse caráter orgânico, isto é, encerra e, ao mesmo tempo, manifesta uma harmonia que não vem da acumulação de argumentos, mas da disposição ordenada e consequencial das razões que levaram Pessoa a escrever aquilo que escreveu. E isso já a partir do título, colocando a obra do escritor português não tanto como afirmação de um Eu dilacerado quanto, justamente, como "resposta" a uma situação histórica específica, ou seja, como tentativa de encontrar uma possível cura à decadência que afetava a cultura portuguesa (e européia) na passagem entre o século 19 e o 20 -de que a dilaceração do Eu é apenas uma manifestação. Por isso Osakabe considera fundamental, na construção da poética pessoana, a referência a Antero de Quental, autor, também ele, à procura constante de uma solução à "Krisis" finissecular, mas que acabou suspenso numa contradição sem saída, colocado num "cruzamento de impasses" a que o tinha levado "um processo de análise tão vertiginoso" a ponto de sobrepor, numa indiferença paradoxal e trágica, o sim e o não, o início e o fim, o tudo e o nada (pág. 56). A genealogia que liga essa tentativa extrema de pensar em conjunto noções contraditórias com uma obra toda ela empenhada em dizer -exorcizando-a na linguagem- essa "impossibilidade" é um dos achados mais consistentes do estudo de Haquira Osakabe, em que se reconstrói, aos poucos, com o vagar que a lógica harmônica impõe, o itinerário teórico pessoano, dividido entre uma primeira fase -que ele coloca sob a chancela do "neopaganismo"- e uma segunda -que ele põe no signo da "alquimia" (ou, como o próprio Pessoa às vezes a define, do "Paganismo Superior").

Degraus
Dois termos, estes, que circulam frequentemente tanto no discurso pessoano quanto no metadiscurso crítico, mas que, no caso presente, não são tomados tanto como chaves de uma interpretação exclusiva e globalizante quanto como degraus de uma procura -de uma "resposta"- decisiva à crise histórico-cultural já assinalada e, por assim dizer, ocupada pela obra anteriana. Não vou -não posso, aliás-, no breve espaço de que disponho, acompanhar por completo a parábola lógica que sustenta o livro de Osakabe, mas quero me deter na conclusão do seu percurso, que, sendo consistente, não pode senão desembocar numa questão. O último capítulo é, com efeito, intitulado: "Uma pergunta para concluir: Serei eu mesmo um Deus?". O processo racional deve ser, no seu êxito, interrogativo, assim como o é, afinal, a lógica pessoana montada como uma resposta, mas acabando na forma de uma pergunta irrespondível. De fato, chegado ao fim do seu caminho, que o leva a transitar do paganismo para um misticismo sem Deus, o escritor português se acha apenas rodeado pelo "mistério" e habitado pelo "horror", isto é, por aquele "sentimento sinistro provado (...) diante do simples e terrível fato de que, atingir o essencial, o segredo, a origem de tudo, é um atingir o aquém desse essencial, na fronteira do abismo em que se perdem a inteligência e o seu sujeito" (pág. 208).

Zona dúbia
Podemos dizer, então, que, como já Antero, também Pessoa depara um "cruzamento de impasses", visto que não consegue sair da contradição entre realidade e sonho, entre misticismo e paganismo, entre o deus e o diabo, entre o mundo supernal e o infernal, descobrindo, porém, nessa impossibilidade o seu papel de intermediário, "angélico" ou "demiúrgico", que o torna dáimon, isto é, artífice perplexo de uma dimensão medial, de uma "realidade de sonho" (pág. 211).
Nesse sentido, a "consistência", tanto da obra de Fernando Pessoa quanto da leitura que Osakabe faz dela, reside justamente nesse habitar um entremeio, nesse dar voz àquela condição virtual, suspensa entre o ser e o não-ser, entre o sim e o não, que, talvez de modo não casual, encontra a sua fórmula mais contundente na famosa, enigmática frase "I would prefer not to", tantas vezes pronunciada por Bartleby, o escrivão de que tencionava falar Italo Calvino.
Pode-se quiçá supor, então, que aquilo que o escritor italiano queria mostrar no seu último "memo" fosse -justamente como a "consistency"- apenas a condição sólida e ao mesmo tempo harmônica que se desenha nessa hesitação: na zona dúbia, enfim, nevoenta e virtual explorada também pela poesia pessoana que se abre e se alastra no interior de qualquer antítese.


Ettore Finazzi-Agrò é professor titular de literaturas brasileira e portuguesa na Universidade de Roma/La Sapienza, autor de "Um Lugar do Tamanho do Mundo" (ed. UFMG), sobre Guimarães Rosa, e "O Álibi Infinito" (ed. IN-CM, Lisboa), sobre Fernando Pessoa.

Fernando Pessoa, Resposta à Decadência
220 págs., R$ 25,00 de Haquira Osakabe. Criar Edições (r. Nunes Machado, 860, 1º andar, conj. 3., CEP 80250-000, Curitiba, PR, tel. 0/xx/41/ 233-0662).


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