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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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Nos seis contos reunidos em "O Assassinato e Outras Histórias", o russo Tchekhov se afasta do tom humorístico e aprofunda sua poética da contenção

Luz indireta sobre o homem supérfluo

Reprodução
Tchekhov e Górki em Ialta (sul da Ucrânia) em foto tirada entre 1900 e 1901


Fábio de Souza Andrade
especial para a Folha

Avesso ao dogmatismo e à prolixidade, Anton Tchekhov (1860-1904) respondia na mosca às cobranças por um engajamento político inequívoco: da arte se deve esperar o desenho do problema, nunca sua solução. No panorama das letras russas entre os séculos 19 e 20, em que os diagnósticos sociais e a prescrição ideológica eram a norma, notabilizou-se pela narrativa breve, pautada no respeito intransigente à singularidade concreta. Foi um mestre numa escrita que obtém seus maiores efeitos na iluminação indireta, discreta e inesperada, dos detalhes cotidianos, líricos ou sórdidos. O que passaria por trivial e secundário assume, em suas histórias, o primeiro plano, sem ostentação ou banda de música, nem eufemismo ou meio-tom.

Mulheres entediadas
Contenção é uma palavra-chave na poética tchekhoviana. Está por trás de sua atração pelo conto, seu asco ao emocionalismo adjetivante, seu apreço pelos finais em surdina ou em aberto, anticlimáticos. A objetividade que buscava traduz-se em denúncia contra qualquer contaminação do enredo pelos valores do autor, violência simplificadora e caminho seguro ao caricato. Tchekhov construía suas criaturas, russas até a medula, combinando distanciamento emocional e simpatia linguística, fossem elas intelectuais em crise, mulheres entediadas, autoridades de província ou mujiques embrutecidos. Ao deslocar o foco narrativo para junto dessas consciências individuais, procurava fazer justiça a sua identidade única e esforçava-se por mimetizar suas peculiaridades expressivas. Cala o narrador, mas o personagem fala, com voz própria recriada. Os contos alongados, novelas ou quase, que compõem "O Assassinato e Outras Histórias", traduzidos e apresentados por Rubens Figueiredo, foram escritos na segunda metade dos anos 1890 (a exceção é "O Professor de Letras", 1894). Da ótima seleção, emerge o autor de "Tio Vânia" dos últimos anos, no exercício pleno de sua arte, longe do sarcasmo dos contos curtos, humorísticos, publicados sob pseudônimo, em revistas, na década anterior. Se o prometido romance que, volta e meia, ensaiava não se concretizou, estas histórias nos mostram um Tchekhov trabalhando mais extensivamente enredo e personagens, ocupando-se à sua maneira (ou seja, a partir da ocorrência singular e concreta, sem recorrer a grandes sínteses) de temas candentes e polêmicos, como a religião e a situação do camponês russo. Os leitores de "O Professor de Letras" e "Iônitch" perceberão as razões que levaram o autor que morreu tão cedo a influenciar decisivamente o destino do conto moderno. No primeiro, um jovem ambicioso, com pretensões intelectuais, apaixona-se pela bela filha de família bem-posta, faz-lhe a corte, é correspondido, casa-se. Registra num diário a felicidade de mel dos primeiros tempos, instaura-se uma confortável rotina doméstica, mansa e frouxa, até que um comentário ao acaso numa mesa de jogo (perde tranquilo o que não lhe faz falta) dispara o alarme: o professor percebe-se homem supérfluo, preso a uma armadilha doméstica de mediocridade duradoura.

Efeitos colaterais
"Iônitch", por sua vez, traz a mesma história de corte e ilusões desfeitas por outras linhas tortas: rejeitado por moça burguesa que quer ser atriz, um jovem médico faz carreira bem-sucedida, enriquecendo a olhos vistos, com os efeitos colaterais indesejáveis da rabugice e da obesidade; quando, anos depois, volta a ver a ex-namorada, a comoção é apenas dela, inspirando-lhe indiferença e alívio.
A soma final, contudo, é a mesma: ter fugido às amarras da vida doméstica resultou em igual decepção, beco sem saída para ele e para ela. Enredos como esses -banais, evanescentes, implosivos, distendidos, mas de extremo impacto- tornaram Tchekhov referência incontornável entre os contistas do século 20.
Em "O Assassinato", "No Fundo do Barranco" e "Os Mujiques", o neto de servos mergulha na Rússia profunda, longe das cidades, dominada pela escassez e pela exploração, onde o mais forte prevalece em degradadas relações humanas. Ainda que Tchekhov esteja longe do naturalismo francês, a devoção à ciência do médico cobra o preço do literato, não de todo indiferente ao darwinismo contemporâneo.
Mas nem por isso ele se rendeu aos esquemas de compreensão da realidade. Alternando momentos do máximo vitalismo (festas, danças, banhos de rio) e de desalento consumado (o torpor da bebida, as surras, os logros), desdobrando-se sob a marca da crueldade (a humilhação, o homicídio) e da indiferença moral, estas novelas garantem ao caprichado volume, desde já, um lugar de merecido destaque na boa recepção brasileira da obra de Tchekhov.


Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na USP, autor de "Samuel Beckett - O Silêncio Possível" (Ateliê) e "O Engenheiro Noturno - A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp).

O Assassinato e Outras Histórias
263 págs., R$ 37,00 de Anton Tchekhov. Trad. de Rubens Figueiredo. Ed. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP, tel. 0/xx/11/3218-1444).


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