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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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Em "O Pensamento do Romance", que acaba de sair na França, o crítico Thomas Pavel reavalia a formação do gênero desde os gregos até o século 20

O destino concreto da escrita

do "Le Monde"

La Pensée du Roman" [O Pensamento do Romance] é um trabalho destinado, com certeza, a fazer história nos estudos literários, tanto pela amplitude de seus pontos de vista e por sua erudição impressionante quanto por sua arquitetura muito pedagógica e a facilidade com que é lido. Seu autor, Thomas Pavel, nasceu em 1942 na Romênia, mas hoje tem nacionalidade americana. Ele é professor de literatura francesa e comparada na Universidade de Chicago, onde dirige o departamento de línguas e literatura românicas. Especialista na literatura dos séculos 17 e 20, desde sua obra anterior, ""L'Art de l'Eloignement - Essai sur l'Imagination Classique" [A Arte do Distanciamento - Ensaio sobre a Imaginação Clássica, ed. Gallimard, 1996", ele ampliou sua perspectiva do gênero do romance como um todo, opondo ao formalismo dos anos 1960 e 1970 uma visão da ficção narrativa que é ao mesmo tempo histórica, filosófica e moral.
Enquanto escrevia "O Pensamento do Romance", não lhe aconteceu de sentir-se intimidado por sua própria ambição crítica -produzir uma "história especulativa das espécies romanescas"?
De início, eu pretendia simplesmente seguir os ecos dos grandes romances idealistas gregos e medievais na literatura que precede de perto a Revolução Francesa. Eu queria mostrar que a época de Richardson e de Rousseau representa ao mesmo tempo uma ruptura com a tradição dos "velhos romances" idealistas e a continuação dessa tradição. Pouco a pouco, entretanto, fui me deixando levar pela tentação do século 19 e, no fim, assumi o risco de acrescentar um capítulo curto sobre o século 20. A tensão entre idealismo e antiidealismo foi um verdadeiro "fio de Ariadne" que me conduziu, praticamente apesar de mim mesmo, através do labirinto da história do romance.

O sr. reconhece predecessores ilustres pelos quais expressa admiração e também reserva: Bakhtin, Lukács. É característica dos intelectuais do Leste Europeu pensar o romance numa perspectiva panorâmica e histórica?
Em Bakhtin e Lukács, a visão da história como totalidade sem dúvida vem de Hegel e Marx. No que me diz respeito, depois de ter duvidado do valor das perspectivas panorâmicas durante muito tempo, fui convertido pelos trabalhos de Louis Dumont, Charles Taylor e Marcel Gauchet, que, nos anos 1980, redescobriram a importância das grandes metanarrativas históricas. Assim, no meu caso, a simpatia européia oriental pela grande história foi reforçada pelo exemplo desses pensadores franceses e norte-americanos.

Seu ponto de vista sobre o romance evita deliberadamente fazer uma definição genérica e formal precisa, mas você também se nega a definir o gênero por sua plasticidade infinita. Você endossa a idéia de que um romance é aquilo que o público reconhece como tal?
Será que podemos realmente definir todos os gêneros culturais de uma vez por todas? O que me parece ser importante não é tanto a definição, mas a especificidade de seu desenvolvimento histórico e a energia que eles liberam. Esses são imediatamente reconhecidos e apreciados pelo público.

O sr. fez sua entrada na crítica literária anunciando sua oposição ao formalismo estruturalista. "O Pensamento do Romance" leva essa polêmica adiante?
Eu me opus não tanto ao estudo do estilo e da construção, que é sempre interessante, quanto aos excessos do formalismo, corrente que tentou reduzir o fenômeno literário ao jogo das formas. Não posso acreditar que lemos "Madame Bovary" para saciar nossa sede de discurso indireto livre. Lemos essa obra para acompanhar o destino de uma personagem que é vítima de um meio sufocante. O que nos fascina é a falta de jeito com que Emma exerce o papel de mulher superior que dá ouvidos apenas a seu coração, é o fracasso de sua evasão. A força do texto de Flaubert consiste em destacar o destino ao mesmo tempo trágico e patético de Emma, o desnível entre as imensas ambições axiológicas do personagem (viver um grande amor, flutuar no ápice da existência) e a mesquinhez do resultado. A literatura narrativa, me parece, se interessa em primeiro lugar não pelos efeitos formais, mas pelos seres humanos flagrados na dificuldade concreta de obedecer às normas e encarnar os valores.

O sr. diz a mesma coisa em outro lugar ao afirmar, em referência ao romance, que "o objeto secular de seu interesse é o homem individual captado em sua dificuldade de habitar o mundo". Mas essa afirmação não se aproxima mais da filosofia moral que da história da literatura?
A filosofia moral trata as questões de maneira geral e abstrata, enquanto a literatura narrativa inventa exemplos para tornar palpáveis nossas dúvidas axiológicas. Se, por exemplo, o romance grego "As Etiópicas" [de Heliodoro] apresenta heróis perfeitos, virtuosos, inflexíveis, é para nos convidar a refletir sobre o esplendor moral e sua independência do ambiente. Em contrapartida, quando os autores do século 19 insistem na exatidão social e histórica, eles o fazem para mostrar que nossas relações com as normas e os valores dependem estreitamente do ambiente. O modernismo, finalmente, volta a separar o homem de seu meio, mas o faz para melhor realçar a incerteza de nossas escolhas, o caráter obscuro, preocupante e indecifrável dos valores que animam nossas ações.

Como o sr. formula a teoria do gênio que está presente em sua obra, sem ser inteiramente explicitada?
Acho que é preciso diferenciar os autores de obras-primas incontestáveis, os "escritores muito grandes", como Cervantes, Mme. de Lafayette e Proust, dos "autores importantes", como Richardson, Walter Scott e Huysmans, que abriram novos caminhos para a arte do romance, sem que suas obras, muitas vezes notáveis ("Pamela", "Waverly", "Às Avessas"), alcancem a força e a durabilidade das "obras muito grandes" ("Dom Quixote", "A Princesa de Clèves", "Em Busca do Tempo Perdido").

Em sua obra, a ausência da produção romanesca contemporânea se deve à prudência do sábio ou a uma falta de interesse de sua parte?
É difícil para o historiador de um gênero literário formular julgamentos duráveis sobre o período em que vive. Veja, no manual de história da literatura francesa de Gustave Lanson, o caso das páginas sobre o início do século 20. Isso dito, espero realmente que os romancistas recentes de que gosto (Rouaud, Echernoz, Michon, Millet, Chandemagor, Duteurtre e muitos outros) resistam à prova do tempo.

O sr. acompanha as polêmicas parisienses desde Chicago, ou prefere ler as discussões filosóficas americanas?
Para minha grande vantagem, sofri a influência de vários colegas de Chicago, especialmente de Charles Larmore e Robert Pippin. Mas é o pensamento francês que foi e continua a ser meu verdadeiro meio intelectual.


Tradução de Clara Allain.


La Pensée du Roman
436 págs., 22,50 euros de Thomas Pavel. Ed. Gallimard.

Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados, em SP, na livraria Francesa (0/xx/ 11/3231-4555) e, no RJ, na livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/21/3641-0991).


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