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A marca humana
Yasmina Khadra fala de sua trilogia sobre o Oriente Médio e diz que confronto "traz à tona o que o homem tem de mais bestial"
GERRY FEEHILY
É um dia muito quente
em Aix-en-Provence
(França), e no terraço
lotado de pessoas do
Le Festival, no cours
Mirabeau, a avenida principal
da cidade, garçons esbaforidos
correm de um lado para o outro
com os rostos ostentando uma
expressão que parece dizer
"agora não".
Quem está sentado aqui é
Mohammed Mousselehoul
-um ex-oficial do Exército argelino de pouco mais de 50
anos, baixo, esguio e com a pele
acobreada, depois de uma viagem às Índias Ocidentais.
Há algo de militar no vigor de
seu aperto de mão. Apesar dos
grandes óculos escuros que
usa, é possível vislumbrar em
seus olhos algo da melancolia e
da combatividade de seu país,
ainda convalescendo após uma
guerra civil que se arrastou por
uma década e que ele testemunhou de perto.
Mousselehoul é mais conhecido por outro nome: Yasmina
Khadra, autor de algumas das
mais ambiciosas obras de ficção saídas da França nos últimos anos. Ele encontrou um
admirador no Nobel de Literatura de 2003, J.M. Coetzee,
com quem compartilha o repúdio à leitura consensual fácil.
Por exemplo, seu romance
mais recente sobre o terrorismo palestino, "O Atentado"
[ed. Sá, 256 págs., R$ 33], há
pouco tempo foi preterido pelo
júri do Prêmio Goncourt em favor de outro livro ["Trois Jours
Chez Ma Mère", Três Dias na
Casa de Minha Mãe, de François Weyergans], este cortês e
indutor ao cochilo.
O homem que se tornou
"Yasmina Khadra" nasceu em
Kenadsa, no Saara, em 1955.
Sua mãe, de origem nômade,
era a principal contadora de
histórias de sua tribo. Quando
a Argélia iniciou sua luta pela
independência da França, seu
pai, na época enfermeiro, entrou para a ALN (Exército Nacional de Libertação).
Mousselehoul tem poucas memórias da guerra.
"Eu era jovem demais", explica. Alguns minutos depois,
porém, ele se inclina para a
frente para me mostrar uma cicatriz que tem no topo da cabeça. "Um soldado francês estava
tentando dispersar uma multidão. Ele me deu uma coronhada na cabeça com seu fuzil -e
rachou meu crânio."
Tensão com o pai
Seu pai, já então oficial, o matriculou no Exército -ou, melhor dizendo, na Escola de Cadetes da Revolução, de inspiração soviética, quando Mousselehoul tinha nove anos.
Foi um choque descrito em
seu livro "L'Écrivain" [O Escritor], de 2001, e pelo qual ele
nunca chegou a perdoar seu pai
por completo. Mas talvez as infâncias felizes não produzam
escritores. "Fui primeiramente
leitor, dedicado à poesia árabe",
ele recorda. "Adolescente, descobri Kafka e Gogol. Camus me
conquistou por completo."
Na Argélia recém-independente, imbuída de ortodoxias e
paranóia soviéticas, os escritores eram isolados. No Exército,
a vocação literária era heresia.
Tendo se indisposto com a
burocracia, começou a enfrentar problemas assim que começou a publicar seus primeiros
romances, o que fez sob seu
próprio nome, nos anos de
1980. Entre outras razões porque esses romances retratavam
uma Argélia em que um poder
cansado e corrupto rapidamente perdia terreno para o fundamentalismo islâmico.
"Em 1988 fui submetido a um
tribunal. A situação estava se
tornando insuportável." Sua
mulher lhe sugeriu uma solução. "Ela me propôs a idéia de
adotar um pseudônimo. Então
entrei para a clandestinidade."
Autor hermafrodita
A iniciativa não deixou de
trazer problemas. Em 1999,
com a publicação de "Morituri", ambientado na Argélia dominada pela guerra civil e pelo
fundamentalismo, Yasmina
Khadra já se tornara o autor
mais importante do país, além
de ser objeto de muitas especulações da mídia. "Ela", ou melhor, ele, concedia entrevistas
unicamente por fax.
Em 2000 Khadra estava em
condições financeiras suficientemente boas para poder aposentar-se do Exército. "O Exército foi algo que me enriqueceu
como escritor. Convivendo
com centenas de pessoas,
aprende-se a apreender o caráter delas em um instante: quem
é matreiro, quem é corajoso,
quem é mal-intencionado."
Após uma breve estadia na
Cidade do México com sua mulher e família, Khadra se mudou para Aix-en-Provence.
Nessa cidade abastada e um
tanto quanto conservadora, ele
revelou sua verdadeira identidade com o lançamento de "O
Escritor".
Apesar disso, continua a publicar sob o nome de sua mulher. "Não é apenas um tributo
a ela, mas às mulheres árabes
de maneira geral. Em alguns
países árabes, as mulheres
compõem até 60% da população, mas continuam a ser completamente marginalizadas."
De fato, as mulheres de Khadra são retratadas com riqueza
de detalhes. Isso está muito em
evidência em "Les Hirondelles
de Kaboul" [As Andorinhas de
Cabul, 2004]. Os principais
personagens femininos desse
romance ambientado no Afeganistão nos dias que antecederam o 11 de Setembro estão
mais vivos e são mais amorosos
do que seus homens, entorpecidos pela imbecilidade deprimente do governo do Taleban.
"As Andorinhas de Cabul" é o
primeiro livro de uma trilogia
em que Khadra se propõe a descrever o Oriente contemporâneo, em especial o poder mobilizador do fundamentalismo islâmico. "Existe no Ocidente
uma ignorância tremenda em
relação à cultura árabe e islâmica, enquanto no Oriente, tanto
o nômade beduíno quanto o
terrorista sabem o que se passa
aqui, que filmes os ocidentais
assistem, como pensam. Estamos no meio da pior incompreensão que já acometeu nossas duas culturas. Meu desejo é
conduzir o leitor ocidental para
dentro desse outro mundo."
Sociedade pouco à vontade
O segundo livro da trilogia,
"O Atentado", é provavelmente
o mais ambicioso romance de
Khadra até hoje.
Amin Jaafiri é um cidadão israelense de origem palestina.
Cirurgião bem-sucedido em
Tel Aviv, é louvado pela sociedade israelense como exemplo
de assimilação bem-sucedida.
No dia de um atentado suicida,
ele trata pacientes que lhe cospem no rosto, só para ficar sabendo depois que foi sua amada
mulher quem se fez explodir.
"O conflito entre Israel e palestinos desestabiliza não apenas o Oriente Médio mas o
mundo inteiro", diz o autor do
livro. "De ambos os lados, ele
traz à tona o que o homem tem
de mais bestial e malévolo. A figura de Amin, cidadão israelense naturalizado cuja mulher
não pode compartilhar sua felicidade porque sua própria felicidade perde o sentido devido
às condições nauseabundas
que os palestinos são obrigados
a suportar, me pareceu o melhor modo de representar o
problema sucintamente."
Acompanhamos Amin em
seu percurso de distanciamento da sociedade israelense. Cuidado por um colega judeu, Kim
Yehuda, o cirurgião foge dos investigadores de polícia e vai a
Belém, procurando conhecer o
movimento pelo qual sua mulher se dispôs a dar sua vida. O
resultado desses encontros está longe de ser conclusivo, mas
o poder deles está na lucidez e
na inteligência dos terroristas
que Amin repudia.
Khadra revela: "Durante a
guerra civil da Argélia, eu fiquei
encarregado de uma unidade
especializada em contraterrorismo. Que as pessoas não se
enganem: os terroristas são seres racionais. Retratá-los como
indivíduos loucos ou desvairados, como é feito com freqüência no Ocidente, significa alimentar o problema".
Quando foi publicado nos
EUA, "O Atentado" foi visto como apologia do terrorismo.
Seus personagens judeus, argumentavam, não eram suficientemente agradáveis. É verdade
que o livro não mostra colonos
judeus ultra-ortodoxos correndo para oferecer copos de chá
de menta a seus vizinhos palestinos, mas a Israel contemporânea não é exatamente uma sociedade que está à vontade consigo mesma.
Khadra se sente escandalizado com essas críticas. "Na Argélia, vi camaradas despedaçados
de tal maneira em explosões
que só era possível recolher
seus pedacinhos."
A parte final da trilogia, "Les
Sirènes de Bagdad" [As Sirenes
de Bagdá], retrata um jovem
beduíno que cresce repudiando
a ocupação americana no Iraque. O livro com certeza será alvo de polêmica -e também um
dos mais importantes publicados na Europa neste ano.
"Vivemos numa era em que
boa parte da cobertura do
Oriente feita pela mídia consiste em mentiras e fábulas", diz
Khadra, "movidas por uma
ideologia que vê os árabes como bárbaros e os ocidentais como civilizados. Os soldados que
arrastam mulheres árabes de
suas camas à noite, porém, não
devem nada ao homem neolítico. Em última análise, o romance é uma ferramenta, um instrumento que torna a verdade
acessível. Apenas a ficção conta
a verdade."
A íntegra deste texto saiu no "Independent".
Tradução de Clara Allain.
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