São Paulo, domingo, 23 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A marca humana

Yasmina Khadra fala de sua trilogia sobre o Oriente Médio e diz que confronto "traz à tona o que o homem tem de mais bestial"

GERRY FEEHILY

É um dia muito quente em Aix-en-Provence (França), e no terraço lotado de pessoas do Le Festival, no cours Mirabeau, a avenida principal da cidade, garçons esbaforidos correm de um lado para o outro com os rostos ostentando uma expressão que parece dizer "agora não".
Quem está sentado aqui é Mohammed Mousselehoul -um ex-oficial do Exército argelino de pouco mais de 50 anos, baixo, esguio e com a pele acobreada, depois de uma viagem às Índias Ocidentais.
Há algo de militar no vigor de seu aperto de mão. Apesar dos grandes óculos escuros que usa, é possível vislumbrar em seus olhos algo da melancolia e da combatividade de seu país, ainda convalescendo após uma guerra civil que se arrastou por uma década e que ele testemunhou de perto.
Mousselehoul é mais conhecido por outro nome: Yasmina Khadra, autor de algumas das mais ambiciosas obras de ficção saídas da França nos últimos anos. Ele encontrou um admirador no Nobel de Literatura de 2003, J.M. Coetzee, com quem compartilha o repúdio à leitura consensual fácil.
Por exemplo, seu romance mais recente sobre o terrorismo palestino, "O Atentado" [ed. Sá, 256 págs., R$ 33], há pouco tempo foi preterido pelo júri do Prêmio Goncourt em favor de outro livro ["Trois Jours Chez Ma Mère", Três Dias na Casa de Minha Mãe, de François Weyergans], este cortês e indutor ao cochilo.
O homem que se tornou "Yasmina Khadra" nasceu em Kenadsa, no Saara, em 1955.
Sua mãe, de origem nômade, era a principal contadora de histórias de sua tribo. Quando a Argélia iniciou sua luta pela independência da França, seu pai, na época enfermeiro, entrou para a ALN (Exército Nacional de Libertação).
Mousselehoul tem poucas memórias da guerra.
"Eu era jovem demais", explica. Alguns minutos depois, porém, ele se inclina para a frente para me mostrar uma cicatriz que tem no topo da cabeça. "Um soldado francês estava tentando dispersar uma multidão. Ele me deu uma coronhada na cabeça com seu fuzil -e rachou meu crânio."

Tensão com o pai
Seu pai, já então oficial, o matriculou no Exército -ou, melhor dizendo, na Escola de Cadetes da Revolução, de inspiração soviética, quando Mousselehoul tinha nove anos.
Foi um choque descrito em seu livro "L'Écrivain" [O Escritor], de 2001, e pelo qual ele nunca chegou a perdoar seu pai por completo. Mas talvez as infâncias felizes não produzam escritores. "Fui primeiramente leitor, dedicado à poesia árabe", ele recorda. "Adolescente, descobri Kafka e Gogol. Camus me conquistou por completo."
Na Argélia recém-independente, imbuída de ortodoxias e paranóia soviéticas, os escritores eram isolados. No Exército, a vocação literária era heresia.
Tendo se indisposto com a burocracia, começou a enfrentar problemas assim que começou a publicar seus primeiros romances, o que fez sob seu próprio nome, nos anos de 1980. Entre outras razões porque esses romances retratavam uma Argélia em que um poder cansado e corrupto rapidamente perdia terreno para o fundamentalismo islâmico.
"Em 1988 fui submetido a um tribunal. A situação estava se tornando insuportável." Sua mulher lhe sugeriu uma solução. "Ela me propôs a idéia de adotar um pseudônimo. Então entrei para a clandestinidade."

Autor hermafrodita
A iniciativa não deixou de trazer problemas. Em 1999, com a publicação de "Morituri", ambientado na Argélia dominada pela guerra civil e pelo fundamentalismo, Yasmina Khadra já se tornara o autor mais importante do país, além de ser objeto de muitas especulações da mídia. "Ela", ou melhor, ele, concedia entrevistas unicamente por fax.
Em 2000 Khadra estava em condições financeiras suficientemente boas para poder aposentar-se do Exército. "O Exército foi algo que me enriqueceu como escritor. Convivendo com centenas de pessoas, aprende-se a apreender o caráter delas em um instante: quem é matreiro, quem é corajoso, quem é mal-intencionado."
Após uma breve estadia na Cidade do México com sua mulher e família, Khadra se mudou para Aix-en-Provence. Nessa cidade abastada e um tanto quanto conservadora, ele revelou sua verdadeira identidade com o lançamento de "O Escritor".
Apesar disso, continua a publicar sob o nome de sua mulher. "Não é apenas um tributo a ela, mas às mulheres árabes de maneira geral. Em alguns países árabes, as mulheres compõem até 60% da população, mas continuam a ser completamente marginalizadas."
De fato, as mulheres de Khadra são retratadas com riqueza de detalhes. Isso está muito em evidência em "Les Hirondelles de Kaboul" [As Andorinhas de Cabul, 2004]. Os principais personagens femininos desse romance ambientado no Afeganistão nos dias que antecederam o 11 de Setembro estão mais vivos e são mais amorosos do que seus homens, entorpecidos pela imbecilidade deprimente do governo do Taleban.
"As Andorinhas de Cabul" é o primeiro livro de uma trilogia em que Khadra se propõe a descrever o Oriente contemporâneo, em especial o poder mobilizador do fundamentalismo islâmico. "Existe no Ocidente uma ignorância tremenda em relação à cultura árabe e islâmica, enquanto no Oriente, tanto o nômade beduíno quanto o terrorista sabem o que se passa aqui, que filmes os ocidentais assistem, como pensam. Estamos no meio da pior incompreensão que já acometeu nossas duas culturas. Meu desejo é conduzir o leitor ocidental para dentro desse outro mundo."

Sociedade pouco à vontade
O segundo livro da trilogia, "O Atentado", é provavelmente o mais ambicioso romance de Khadra até hoje.
Amin Jaafiri é um cidadão israelense de origem palestina. Cirurgião bem-sucedido em Tel Aviv, é louvado pela sociedade israelense como exemplo de assimilação bem-sucedida. No dia de um atentado suicida, ele trata pacientes que lhe cospem no rosto, só para ficar sabendo depois que foi sua amada mulher quem se fez explodir.
"O conflito entre Israel e palestinos desestabiliza não apenas o Oriente Médio mas o mundo inteiro", diz o autor do livro. "De ambos os lados, ele traz à tona o que o homem tem de mais bestial e malévolo. A figura de Amin, cidadão israelense naturalizado cuja mulher não pode compartilhar sua felicidade porque sua própria felicidade perde o sentido devido às condições nauseabundas que os palestinos são obrigados a suportar, me pareceu o melhor modo de representar o problema sucintamente."
Acompanhamos Amin em seu percurso de distanciamento da sociedade israelense. Cuidado por um colega judeu, Kim Yehuda, o cirurgião foge dos investigadores de polícia e vai a Belém, procurando conhecer o movimento pelo qual sua mulher se dispôs a dar sua vida. O resultado desses encontros está longe de ser conclusivo, mas o poder deles está na lucidez e na inteligência dos terroristas que Amin repudia.
Khadra revela: "Durante a guerra civil da Argélia, eu fiquei encarregado de uma unidade especializada em contraterrorismo. Que as pessoas não se enganem: os terroristas são seres racionais. Retratá-los como indivíduos loucos ou desvairados, como é feito com freqüência no Ocidente, significa alimentar o problema".
Quando foi publicado nos EUA, "O Atentado" foi visto como apologia do terrorismo. Seus personagens judeus, argumentavam, não eram suficientemente agradáveis. É verdade que o livro não mostra colonos judeus ultra-ortodoxos correndo para oferecer copos de chá de menta a seus vizinhos palestinos, mas a Israel contemporânea não é exatamente uma sociedade que está à vontade consigo mesma.
Khadra se sente escandalizado com essas críticas. "Na Argélia, vi camaradas despedaçados de tal maneira em explosões que só era possível recolher seus pedacinhos."
A parte final da trilogia, "Les Sirènes de Bagdad" [As Sirenes de Bagdá], retrata um jovem beduíno que cresce repudiando a ocupação americana no Iraque. O livro com certeza será alvo de polêmica -e também um dos mais importantes publicados na Europa neste ano.
"Vivemos numa era em que boa parte da cobertura do Oriente feita pela mídia consiste em mentiras e fábulas", diz Khadra, "movidas por uma ideologia que vê os árabes como bárbaros e os ocidentais como civilizados. Os soldados que arrastam mulheres árabes de suas camas à noite, porém, não devem nada ao homem neolítico. Em última análise, o romance é uma ferramenta, um instrumento que torna a verdade acessível. Apenas a ficção conta a verdade."


A íntegra deste texto saiu no "Independent".
Tradução de Clara Allain.


Texto Anterior: 6 questões sobre a atual crise no Oriente Médio
Próximo Texto: + livros: Nelson Rodrigues
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.