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A cozinha dos sentidos
Astrologia do prazer
Já nos anos 1950, Barthes
e Adorno consideravam as colunas
de horóscopo
em jornais como
espelhos
do mundo
social
RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA
A astrologia persiste
mesmo depois da
conquista do espaço. Continua destacando a influência
do ciclo lunar apesar de o homem já ter pisado na lua há décadas. Comenta a conjunção
Saturno-Marte independentemente do fato de que este, no
momento, recebe a visita de
sondas que esquadrinham seu
solo. Atribui vibrações poderosas a Plutão, ignorando que os
astrônomos recentemente colocaram em questão sua condição de planeta.
Ela já havia sobrevivido à invenção do telescópio por Galileu, à teoria heliocêntrica de
Copérnico e a todas as descobertas da ciência moderna, que
a relegou a um domínio distinto da astronomia.
Embora o significado do termo "astrologia" ainda não esteja completamente esvaziado,
sobretudo se compreendido
como a crença em que a configuração dos astros influencia a
ação humana, as práticas sociais que ele designa se modificaram profundamente.
Mapas individuais
Adaptando-se à dessacralização do mundo, a astrologia sufocou sua dimensão mágica e
ritualística, restringindo sua
função de oráculo e limitando o
seu alcance enquanto técnica
de adivinhação.
Apesar dos esforços para situá-la ora como um ramo do
esoterismo, ora sob o guarda-chuva de uma contraditória e
indefinida "ciência hermética",
ora como saber auxiliar da hermenêutica junguiana, seu lugar
social, seu significado cultural e
sua prática se pautam pela lógica da cultura de massa.
É verdade que se disseminou
a exigência de mapas astrológicos individualizados (ampliando as consultas aos profissionais do gênero e o advento de
sites na web que fornecem esses serviços), em consonância
com as tendências do mercado
que privilegiam o atendimento
personalizado, ao invés do consumo estandardizado. Mas, de
modo geral, a peça de resistência da astrologia continua sendo a coluna astrológica, item
quase obrigatório nos jornais e
revistas de grande circulação.
Pés de página
Obscurecida pelas imagens
oníricas da propaganda, relegada ao pé da página em seções
dedicadas ao comportamento
ou à diversão, a coluna astrológica não possui mais a ressonância e o impacto que adquiriu no pós-guerra.
Na década de 1950, simultaneamente e de forma independente, Theodor Adorno e Roland Barthes se debruçaram sobre seu significado.
Adorno publicou, em 1957,
"As Estrelas Descem à Terra",
divulgando pesquisa que desenvolveu de 1952 a 1953. Trata-se de uma análise ao mesmo
tempo especulativa e empírica
da coluna de astrologia do "Los
Angeles Times". Nesse mesmo
ano, Barthes reuniu em "Mitologias" uma série de artigos redigidos entre 1954 e 1956, dentre eles uma interpretação da
coluna astrológica do semanário "Elle".
Há mais que uma coincidência temporal. Apesar das diferenças relativas aos métodos e,
em parte, ao instrumental teórico, prevalecem as similitudes
no que tange aos objetivos (a
retomada da análise marxista
da ideologia à luz da persistência do mito no mundo racionalizado), à delimitação geral do
objeto (a indústria cultural) e
até mesmo às conclusões da investigação.
Ambos concebem a mitologia contemporânea como
transmutação da ação histórica
em natureza, da "eventualidade em eternidade". Concordam
também que se trata de um sistema de comunicação, de um
modo de significação, de uma
forma, em suma. Destacam
igualmente que o discurso astrológico conforma uma descrição realista das tendências
psicológicas de um meio social
preciso, o dos leitores.
Assim, a astrologia, em lugar
de abrir brechas para o onírico
(afinal, trata-se de uma prática
assentada em relações ocultas),
se constrói como um espelho
do mundo social, como uma
evidência realista das condições de vida da pequena burguesia, transmutada em norma
universal.
"Semi-alienação"
As colunas astrológicas de
hoje seguem o padrão e a estrutura desvendados por Adorno e
Barthes. São ainda exemplares
de uma "superstição de segunda mão" (Adorno) ou de uma
"semi-alienação" (Barthes).
Práticas de reforço a uma
adequação conformista ao curso do mundo, elas se assentam
em paradoxos como a oscilação
entre o ato de infundir angústia
e o de satisfazer o narcisismo
(Adorno) ou a afirmação de um
puro determinismo e o fortalecimento da força de vontade
(Barthes).
As modificações dizem respeito aos conteúdos impostos
pelas novas exigências do trabalho (a demanda pela ação flexível) e consumo (com o hedonismo substituindo o ascetismo). Com isso, alteram-se os
diagnósticos e os conselhos atinentes a cada uma das rubricas:
vidas familiar, amorosa, financeira, profissional, social...
O avanço desmesurado das
técnicas de controle, a submissão do indivíduo às recomendações de "especialistas" permite
que a astrologia sobreviva como uma prática de auto-racionalização, degradando o ideal
de autoconhecimento em técnica de transformação interior
e autocontrole.
Barthes considera que o modelo do discurso astrológico são
as formas degradadas da literatura realista pequeno-burguesa. A analogia hoje seria mais
simples, pois são quase indistinguíveis a coluna astrológica
e a literatura de auto-ajuda.
RICARDO MUSSE é professor no departamento
de sociologia da USP.
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