São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007

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A cozinha dos sentidos

Astrologia do prazer

Já nos anos 1950, Barthes e Adorno consideravam as colunas de horóscopo em jornais como espelhos do mundo social

RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA

A astrologia persiste mesmo depois da conquista do espaço. Continua destacando a influência do ciclo lunar apesar de o homem já ter pisado na lua há décadas. Comenta a conjunção Saturno-Marte independentemente do fato de que este, no momento, recebe a visita de sondas que esquadrinham seu solo. Atribui vibrações poderosas a Plutão, ignorando que os astrônomos recentemente colocaram em questão sua condição de planeta.
Ela já havia sobrevivido à invenção do telescópio por Galileu, à teoria heliocêntrica de Copérnico e a todas as descobertas da ciência moderna, que a relegou a um domínio distinto da astronomia. Embora o significado do termo "astrologia" ainda não esteja completamente esvaziado, sobretudo se compreendido como a crença em que a configuração dos astros influencia a ação humana, as práticas sociais que ele designa se modificaram profundamente.

Mapas individuais
Adaptando-se à dessacralização do mundo, a astrologia sufocou sua dimensão mágica e ritualística, restringindo sua função de oráculo e limitando o seu alcance enquanto técnica de adivinhação.
Apesar dos esforços para situá-la ora como um ramo do esoterismo, ora sob o guarda-chuva de uma contraditória e indefinida "ciência hermética", ora como saber auxiliar da hermenêutica junguiana, seu lugar social, seu significado cultural e sua prática se pautam pela lógica da cultura de massa.
É verdade que se disseminou a exigência de mapas astrológicos individualizados (ampliando as consultas aos profissionais do gênero e o advento de sites na web que fornecem esses serviços), em consonância com as tendências do mercado que privilegiam o atendimento personalizado, ao invés do consumo estandardizado. Mas, de modo geral, a peça de resistência da astrologia continua sendo a coluna astrológica, item quase obrigatório nos jornais e revistas de grande circulação.

Pés de página
Obscurecida pelas imagens oníricas da propaganda, relegada ao pé da página em seções dedicadas ao comportamento ou à diversão, a coluna astrológica não possui mais a ressonância e o impacto que adquiriu no pós-guerra. Na década de 1950, simultaneamente e de forma independente, Theodor Adorno e Roland Barthes se debruçaram sobre seu significado.
Adorno publicou, em 1957, "As Estrelas Descem à Terra", divulgando pesquisa que desenvolveu de 1952 a 1953. Trata-se de uma análise ao mesmo tempo especulativa e empírica da coluna de astrologia do "Los Angeles Times". Nesse mesmo ano, Barthes reuniu em "Mitologias" uma série de artigos redigidos entre 1954 e 1956, dentre eles uma interpretação da coluna astrológica do semanário "Elle".
Há mais que uma coincidência temporal. Apesar das diferenças relativas aos métodos e, em parte, ao instrumental teórico, prevalecem as similitudes no que tange aos objetivos (a retomada da análise marxista da ideologia à luz da persistência do mito no mundo racionalizado), à delimitação geral do objeto (a indústria cultural) e até mesmo às conclusões da investigação. Ambos concebem a mitologia contemporânea como transmutação da ação histórica em natureza, da "eventualidade em eternidade". Concordam também que se trata de um sistema de comunicação, de um modo de significação, de uma forma, em suma. Destacam igualmente que o discurso astrológico conforma uma descrição realista das tendências psicológicas de um meio social preciso, o dos leitores.
Assim, a astrologia, em lugar de abrir brechas para o onírico (afinal, trata-se de uma prática assentada em relações ocultas), se constrói como um espelho do mundo social, como uma evidência realista das condições de vida da pequena burguesia, transmutada em norma universal.

"Semi-alienação"
As colunas astrológicas de hoje seguem o padrão e a estrutura desvendados por Adorno e Barthes. São ainda exemplares de uma "superstição de segunda mão" (Adorno) ou de uma "semi-alienação" (Barthes).
Práticas de reforço a uma adequação conformista ao curso do mundo, elas se assentam em paradoxos como a oscilação entre o ato de infundir angústia e o de satisfazer o narcisismo (Adorno) ou a afirmação de um puro determinismo e o fortalecimento da força de vontade (Barthes).
As modificações dizem respeito aos conteúdos impostos pelas novas exigências do trabalho (a demanda pela ação flexível) e consumo (com o hedonismo substituindo o ascetismo). Com isso, alteram-se os diagnósticos e os conselhos atinentes a cada uma das rubricas: vidas familiar, amorosa, financeira, profissional, social... O avanço desmesurado das técnicas de controle, a submissão do indivíduo às recomendações de "especialistas" permite que a astrologia sobreviva como uma prática de auto-racionalização, degradando o ideal de autoconhecimento em técnica de transformação interior e autocontrole.
Barthes considera que o modelo do discurso astrológico são as formas degradadas da literatura realista pequeno-burguesa. A analogia hoje seria mais simples, pois são quase indistinguíveis a coluna astrológica e a literatura de auto-ajuda.


RICARDO MUSSE é professor no departamento de sociologia da USP.


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