|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O velho 'novo romance' de Sarraute
LEDA TENÓRIO DA MOTTA
especial para a Folha
"Seu mais novo livro chama-se
"Ouvrez' (Abram). E você entra
de cabeça." Assim a revista "Le
Nouvel Observateur" anunciava,
em setembro passado, mais um
romance de Nathalie Sarraute.
Pouco antes da "L'Express", que
em outubro registrava, em termos
não menos fortes, o acontecimento: "São 15 breves capítulos reunidos sob um título que explode de
liberdade. De onde saímos tontos
como uma criança depois de 15
voltas num carrossel". Enquanto
o jornal "Libération" falava em
culminância: "Com "Ouvrez',
Nathalie Sarraute vai até as últimas consequências de sua própria
lógica literária".
Some-se a esse impacto da última Sarraute junto à crítica parisiense dos periódicos o fato de que
a autora de "Tropismes" (1939)
acaba de entrar viva na coleção
Pléiade da editora Gallimard -lugar geralmente destinado aos
grandes mortos- e ter-se-á a medida da consagração. Que a alcança, espantosamente vívida e inventiva, em seus quase cem anos
de idade, quase 60 dos quais de vida literária ativa. Dona de uma
obra completa, também de dramaturga, entre cujos títulos temos
ainda "Portrait d'un Inconnu"
(Retrato de um Desconhecido) ou
"Disent les Imbéciles" (Dizem os
Imbecis).
Obra, no entanto, para ela, como atestam os recentes fatos,
sempre incompleta. Marcada,
aliás, de ponta a ponta por uma
cláusula de vanguarda: a ausência
de romance nos romances. Ponto
este, aliás, de honra para alguns
do movimento que, há mais de 40
anos, ressalvadas todas as dificuldades de unificá-lo, conhecemos
como "nouveau roman". Escola
de dissidentes congênitos, de que
Sarraute é, como se pode ver, a
mais entusiasmada, a mais persistente figura.
Ei-la, pois, aos 97 anos, em combate ainda contra a narrativa clássica, às voltas, "in extremis",
com o vazio da ficção moderna,
disposta a preenchê-la, novamente, com a realidade única da escritura. Ei-la de volta, quando menos
se esperava, até porque era tida
por certa a sua entrada em retiro.
E ela se dá, ainda por cima, ao luxo
de brincar com tudo o que já fez.
De passar, de vez, ao jogo com palavras. De render-se ao fascínio
dos clichês, de que faz, agora, personagens. De pairar assim na superfície da superfície das coisas.
Tal a jovialidade imperturbável da
idosa senhora. Que terá atravessado o século, ao lado dos pares
mais heróicos da "escola do
olhar", refutando a visão de profundidade, apanágio dos antigos.
Trata-se, em "Ouvrez", de um
pequeno teatro montado, um teatro do discurso, em que palavrinhas, subitamente antropomórficas, dotadas de moto próprio, se
rebelam nos bastidores em que se
acham trancadas. Elas querem,
atropelando umas às outras, ganhar o centro da cena, se inscrever
em algum movimento real, participar de alguma verdadeira ação
para a qual seus nomes parecem
destiná-las. Daí o "abram". Inútil
pressão de sua parte, muito barulho por nada, já que não há chance, em arte alguma, de palavras serem mais do que são: a marca
mesma da ausência das coisas.
Tudo isso encaminha, outra vez,
o desacerto entre a linguagem e o
mundo. Sustentando, por alegoria, ou no indireto, outra tese
igualmente conhecida, aquela que
confere toda realidade ao simbólico: a tese do mundo como livro. O
movimento é, no fundo, do palco
para a coxia, de dentro para fora,
ou de batida em retirada. Não há
como pular a barreira que separa o
signo e a referência,vale dizer, a literatura do resto. E é o leitor que
se percebe, no fim das contas, tragado, junto com a autora, pelo
universo verbal. Todos os envolvidos sendo incapazes de esbarrar
no palpável, mais falados do que
falantes, como se diz.
Cada entrada em cena se revela,
pois, um fiasco. Nenhuma palavra, observada de perto, faz jus a
nenhum bom papel, nenhuma garante o sentido que pretende, sua
ação resumindo-se, no fim das
contas, à única possível no adiantado da modernidade: a ação de
iludir. Assim, por exemplo, "Parole Donnée" (Eu juro) só comparece, no primeiro dos 15 pequenos dramas, para -multiplicando mal-entendidos que farão, de
vez em quando, sorrir o leitor-
demonstrar quão pouco digna de
confiança ela é.
A exemplo de "Ah, que voulez-vous..." ("Ah, o que mais você quer que eu diga?"), espécie de
"passe partout", de álibi retórico, que não apenas se insinua o
tempo todo sem se fazer notar,
mas ainda não tem nenhum objetivo preciso, em que pesem seus
ares conclusivos... Ou de "Pourquoi?" ("Por quê?"), fórmula
para introduzir, quase infalivelmente, "Je ne sais pas" ("Não
sei").
É por aí que vai o livro, em compasso, diga-se, na prática, um tanto pueril. O que não deixa de lembrar outras empresas, de outro
grupo do período áureo de Sarraute, o do teatro do absurdo. Como numa peça de Ionesco, a linguagem é aqui protagonista do seu
próprio arbitrário. Mas o eterno
desencontro do real e do simbólico, conhecido motivo platônico,
mais especificamente cratiliano,
em que a modernidade veio se especializando, desde que poemas
passaram a ser feitos com palavras, por si só, não garante nada.
E ocorre que, paralelamente ao
experimentalismo que Sarraute
quer representar -junto com
Alain Robbe-Grillet e Marguerite
Duras, para só ficarmos no trio de
ouro da editora Minuit-, dá-se,
por falar em absurdo, a experiência de uma outra prosa, esta sim
realmente de risco, a de Samuel
Beckett. Todo o problema residindo, no limite, aí. A questão -para
atrapalhar um pouco a festa- é
que, por boa escritora que seja,
Sarraute não é nenhum Beckett, a
mais alta expressão da Minuit neste século. Nem, de resto, nenhum
Francis Ponge, para evocar um
outro grande escritor, de outra
seara editorial, igualmente afeito a
abismos, e em seu tempo, equivocadamente, identificado ao "nouveau roman".
Sem ir tão longe, na mesma linha "fatos de linguagem" da travessa senhora, Michel Leiris tem,
bem antes, coisa bem melhor:
"Biffures" (1949; de riscar, suprimir, corrigir). A última Sarraute
vale mais por escrever ainda, e
manejar ainda, a sua "rage" (gana), como diria Ponge, do que
propriamente pelo que escreve.
Mas mesmo assim é, digamos, imperdível.
Leda Tenório da Motta é professora na
pós-graduação em comunicação e semiótica da
Pontifícia Universidade Católica (PUC- SP). Autora de "Catedral em Obras" (Iluminuras) e "Lições de Literatura Francesa" (Imago).
A OBRA
Ouvrez - Nathalie Sarraute.
Ed. Gallimard. 130 págs. 85 francos.
A obra pode ser encomendada na Livraria Francesa (r. Barão
de Itapetininga, 275, tel.
011/231-4555, SP) ou, pela Internet, na Librairie Gallimard
(http://www.
gallimard-mtl.com/).
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|