São Paulo, domingo, 24 de maio de 1998

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O velho 'novo romance' de Sarraute

LEDA TENÓRIO DA MOTTA
especial para a Folha

"Seu mais novo livro chama-se "Ouvrez' (Abram). E você entra de cabeça." Assim a revista "Le Nouvel Observateur" anunciava, em setembro passado, mais um romance de Nathalie Sarraute. Pouco antes da "L'Express", que em outubro registrava, em termos não menos fortes, o acontecimento: "São 15 breves capítulos reunidos sob um título que explode de liberdade. De onde saímos tontos como uma criança depois de 15 voltas num carrossel". Enquanto o jornal "Libération" falava em culminância: "Com "Ouvrez', Nathalie Sarraute vai até as últimas consequências de sua própria lógica literária".
Some-se a esse impacto da última Sarraute junto à crítica parisiense dos periódicos o fato de que a autora de "Tropismes" (1939) acaba de entrar viva na coleção Pléiade da editora Gallimard -lugar geralmente destinado aos grandes mortos- e ter-se-á a medida da consagração. Que a alcança, espantosamente vívida e inventiva, em seus quase cem anos de idade, quase 60 dos quais de vida literária ativa. Dona de uma obra completa, também de dramaturga, entre cujos títulos temos ainda "Portrait d'un Inconnu" (Retrato de um Desconhecido) ou "Disent les Imbéciles" (Dizem os Imbecis).
Obra, no entanto, para ela, como atestam os recentes fatos, sempre incompleta. Marcada, aliás, de ponta a ponta por uma cláusula de vanguarda: a ausência de romance nos romances. Ponto este, aliás, de honra para alguns do movimento que, há mais de 40 anos, ressalvadas todas as dificuldades de unificá-lo, conhecemos como "nouveau roman". Escola de dissidentes congênitos, de que Sarraute é, como se pode ver, a mais entusiasmada, a mais persistente figura.
Ei-la, pois, aos 97 anos, em combate ainda contra a narrativa clássica, às voltas, "in extremis", com o vazio da ficção moderna, disposta a preenchê-la, novamente, com a realidade única da escritura. Ei-la de volta, quando menos se esperava, até porque era tida por certa a sua entrada em retiro. E ela se dá, ainda por cima, ao luxo de brincar com tudo o que já fez. De passar, de vez, ao jogo com palavras. De render-se ao fascínio dos clichês, de que faz, agora, personagens. De pairar assim na superfície da superfície das coisas. Tal a jovialidade imperturbável da idosa senhora. Que terá atravessado o século, ao lado dos pares mais heróicos da "escola do olhar", refutando a visão de profundidade, apanágio dos antigos.
Trata-se, em "Ouvrez", de um pequeno teatro montado, um teatro do discurso, em que palavrinhas, subitamente antropomórficas, dotadas de moto próprio, se rebelam nos bastidores em que se acham trancadas. Elas querem, atropelando umas às outras, ganhar o centro da cena, se inscrever em algum movimento real, participar de alguma verdadeira ação para a qual seus nomes parecem destiná-las. Daí o "abram". Inútil pressão de sua parte, muito barulho por nada, já que não há chance, em arte alguma, de palavras serem mais do que são: a marca mesma da ausência das coisas.
Tudo isso encaminha, outra vez, o desacerto entre a linguagem e o mundo. Sustentando, por alegoria, ou no indireto, outra tese igualmente conhecida, aquela que confere toda realidade ao simbólico: a tese do mundo como livro. O movimento é, no fundo, do palco para a coxia, de dentro para fora, ou de batida em retirada. Não há como pular a barreira que separa o signo e a referência,vale dizer, a literatura do resto. E é o leitor que se percebe, no fim das contas, tragado, junto com a autora, pelo universo verbal. Todos os envolvidos sendo incapazes de esbarrar no palpável, mais falados do que falantes, como se diz.
Cada entrada em cena se revela, pois, um fiasco. Nenhuma palavra, observada de perto, faz jus a nenhum bom papel, nenhuma garante o sentido que pretende, sua ação resumindo-se, no fim das contas, à única possível no adiantado da modernidade: a ação de iludir. Assim, por exemplo, "Parole Donnée" (Eu juro) só comparece, no primeiro dos 15 pequenos dramas, para -multiplicando mal-entendidos que farão, de vez em quando, sorrir o leitor- demonstrar quão pouco digna de confiança ela é.
A exemplo de "Ah, que voulez-vous..." ("Ah, o que mais você quer que eu diga?"), espécie de "passe partout", de álibi retórico, que não apenas se insinua o tempo todo sem se fazer notar, mas ainda não tem nenhum objetivo preciso, em que pesem seus ares conclusivos... Ou de "Pourquoi?" ("Por quê?"), fórmula para introduzir, quase infalivelmente, "Je ne sais pas" ("Não sei").
É por aí que vai o livro, em compasso, diga-se, na prática, um tanto pueril. O que não deixa de lembrar outras empresas, de outro grupo do período áureo de Sarraute, o do teatro do absurdo. Como numa peça de Ionesco, a linguagem é aqui protagonista do seu próprio arbitrário. Mas o eterno desencontro do real e do simbólico, conhecido motivo platônico, mais especificamente cratiliano, em que a modernidade veio se especializando, desde que poemas passaram a ser feitos com palavras, por si só, não garante nada.
E ocorre que, paralelamente ao experimentalismo que Sarraute quer representar -junto com Alain Robbe-Grillet e Marguerite Duras, para só ficarmos no trio de ouro da editora Minuit-, dá-se, por falar em absurdo, a experiência de uma outra prosa, esta sim realmente de risco, a de Samuel Beckett. Todo o problema residindo, no limite, aí. A questão -para atrapalhar um pouco a festa- é que, por boa escritora que seja, Sarraute não é nenhum Beckett, a mais alta expressão da Minuit neste século. Nem, de resto, nenhum Francis Ponge, para evocar um outro grande escritor, de outra seara editorial, igualmente afeito a abismos, e em seu tempo, equivocadamente, identificado ao "nouveau roman".
Sem ir tão longe, na mesma linha "fatos de linguagem" da travessa senhora, Michel Leiris tem, bem antes, coisa bem melhor: "Biffures" (1949; de riscar, suprimir, corrigir). A última Sarraute vale mais por escrever ainda, e manejar ainda, a sua "rage" (gana), como diria Ponge, do que propriamente pelo que escreve. Mas mesmo assim é, digamos, imperdível.


Leda Tenório da Motta é professora na pós-graduação em comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica (PUC- SP). Autora de "Catedral em Obras" (Iluminuras) e "Lições de Literatura Francesa" (Imago).

A OBRA

Ouvrez - Nathalie Sarraute. Ed. Gallimard. 130 págs. 85 francos.
A obra pode ser encomendada na Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, tel. 011/231-4555, SP) ou, pela Internet, na Librairie Gallimard (http://www. gallimard-mtl.com/).



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