São Paulo, domingo, 24 de maio de 1998

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MADE IN USA
Fraqueza do perdão


Vítima de Unabomber associa debilidade moral a recusa da pena de morte


CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha, de Nova York

A pena de morte é um assunto chato. Divide as comunidades segundo linhas que nem sempre coincidem com as oposições mais esperadas. Ou seja, nem todo coração progressista é avesso à pena de morte, nem todo coração reacionário é a favor.
Os argumentos tradicionalmente invocados por ambas as partes são bem conhecidos e geralmente fracos. Os que favorecem a pena alegam sobretudo seu poder dissuasivo, mas são desmentidos pelos números (a pena de morte, onde vige, não parece produzir uma diminuição significativa dos assassinatos). Por outro lado, os mesmos carecem da coerência necessária para exigir que as execuções sejam públicas e cruéis.
Os que se opõem à pena, acusam seus defensores de querer perpetrar uma vingança e de conceber a Justiça como punição e não como esforço de reabilitação dos criminosos. Isso, por um lado, inspira uma certa perplexidade, pois na verdade quem disse que a idéia de vingança é sempre errada?
Será que a moral (bem cristã, em princípio, isso é verdade) que manda oferecer a outra face é mesmo um sentimento comunitário compartilhado? Por outro lado, por mais que a idéia de reabilitar punindo seja uma idéia moderna bem estabelecida, resta que reabilitar não é a única função da Justiça (punir também o é, assim como proteger a comunidade). Resta também que até agora o projeto de reabilitação permanece uma boa intenção com pouco efeito.
Acima desta controvérsia paira uma outra idéia, segundo a qual a vida é sagrada e uma comunidade dita civilizada não poderia suprimir um de seus membros sem pecar coletivamente contra este supremo valor. Trata-se, evidentemente, de uma idéia recente e discutível, pois ela consiste, em última instância, em colocar a sobrevivência acima de qualquer outro princípio moral. Os defensores da pena de morte gostariam que os assassinos soltos por aí tivessem a mesma consideração.
Nesse debate sem fim acaba de intervir David Gelernter, em um artigo na revista (conservadora) "Commentary" de abril deste ano. Gelernter é na verdade um professor de ciência da computação na Universidade Yale, mas que se tornou um ativo comentador da atualidade social desde que foi uma das vítimas do Unabomber, o terrorista postal que, em sua longa carreira, além de ferir e estropiar uma série de pessoas, matou três -com a idéia de combater o sistema tecnológico. Em 1993, Gelernter recebeu uma carta-bomba que quase o matou e o deixou amputado (sobre esta experiência ele acaba de publicar "Drawing Life - Surviving the Unabomber", Free Press). Não é surpreendente, nessas condições, que ele esteja insatisfeito com o veredicto negociado (sem processo) que salvou o Unabomber da pena de morte. Mas vale a pena ouvir seu argumento, sem reduzi-lo a um simples anseio de vingança.
Gelernter lembra, para começar, que numa democracia a autoridade da lei e da Justiça provém, em última instância, da comunidade. Quer seja pelo intermédio do júri popular que nos representa mais diretamente, quer seja pelo intermédio dos juízes ou ainda dos representantes eleitos, as ações legais emanam de nós, cidadãos.
Ora, a pena de morte, aquém de ser eventualmente uma forma de vingança ou de dissuasão, representa -segundo ele- "uma palavra absoluta a partir de uma posição de certeza moral". Com efeito, trata-se de uma decisão radical, sem volta e decididamente desconfortável para quem se atormente com dúvidas morais. Em outras palavras, para condenar à morte, uma comunidade deve poder reconhecer o mal, distingui-lo de si sem dificuldade e, portanto, querer aboli-lo sem remorsos.
Conclusão: segundo Gelernter, a prática da pena de morte se torna impossível ou difícil não por causa de algum progresso moral que tornaria nossos costumes mais delicados, mas, ao contrário, por causa de uma progressiva debilidade moral que nos impede de julgar de maneira radical.
Gelernter aproveita para castigar os intelectuais. Pois, de fato, nos EUA, uma substancial maioria das classes média e média baixa é favorável à pena de morte. Se opõem a ela em maior número (sem sucesso, aparentemente) não tanto os cidadãos mais ricos, mas os mais cultos. A opinião em matéria de pena de morte parece ligada ao nível de instrução. Normalmente, isso produz um argumento contra a pena, ou seja, quanto mais civilizado, tanto mais contrário à barbárie vingativa. Segundo a tese de Gelernter, o fato deve ser lido de outra forma, ou seja, quanto mais instruído, tanto mais incapaz de juízo moral, tanto mais eticamente confuso.
E Gelernter poderia ter se perguntado se as nações que descartaram a pena de morte não são simplesmente nações com menos certezas morais, mais corruptas e menos civilizadas.
No Brasil, por exemplo, parece existir um certo consenso contra a pena de morte. Gelernter diria provavelmente que isso só prova que em nosso país ninguém se sente inocente o suficiente para condenar à morte quem quer que seja, nem mesmo um assassino. Diria que nossa aparente civilizada clemência é de fato a prova de nossa notória labilidade ética.
Esta observação, aliás, é pertinente para além do caso da pena de morte. Em geral, não é difícil entender que uma comunidade cujos membros não são moralmente muito escrupulosos é uma comunidade que tem dificuldades em punir seus criminosos. Um divórcio sempre existe entre a moral comunitária publicamente proclamada e a prática social comum de cada membro. Mas, se esse divórcio for excessivo, ele produz uma comunidade de culpados, que pode esbravejar, eventualmente linchar, mas desconfia do rigor da lei que ela mesma se deu.
De qualquer forma, o argumento de Gelernter propõe uma versão nova do eterno lamento sobre a decadência do Ocidente. Se não, considerem bem: uma das características de nossa civilização é a progressiva extensão da humanidade. Reconhecemos como humanos, irmãos, cada vez mais pessoas. Somos todos uma vasta tribo, globalizável e globalizada.
Com a psicanálise, aprendemos a considerar que mesmo os loucos são feitos do mesmo tecido nosso, apenas sofrem eletivamente de tal ou qual elemento ou traço que está em cada um. Por que nossa compreensão pararia diante do assassino ou do estuprador? Naturalmente, quanto mais compreendemos o mal, tanto menos podemos puni-lo radicalmente. Tanto mais, em suma, os critérios morais se tornam dificilmente praticáveis.
Difícil, naturalmente, adotar a posição de Gelernter. Mas resta constatar que ele talvez tenha razão: estamos mesmo, como cultura, globalmente e inelutavelmente perdendo nossas capacidades morais. Não por declínio ou degenerescência, mas como efeito da mesma compreensão universal que, por outro lado, faz a generosidade de nossa cultura.
Em algum lugar, um dia, será preciso que a gente consiga situar o mal como inimigo.


Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta, autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do Individualismo Cotidiano" (Ática).
E-mail: ccalligari@aol.com



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