São Paulo, domingo, 24 de junho de 2007

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Divórcio aos 30

Machismo marcou discursos pró

Parlamentares queriam resgatar estatuto social da "mãe" e da "esposa" e ignoravam revolução sexual

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

A pressão social pelo divórcio e a conseqüente legalização de milhares de casamentos gerou debates acirrados no Congresso nas décadas de 1950, 60 e 70.
Nelson Carneiro, senador pela Guanabara que propôs a emenda constitucional nø 9, de 28/6/77 (que acabou com a indissolubilidade do casamento), apresentara o primeiro projeto divorcista como deputado, em 1951.
Apesar desses anos de discussão e transformações na sociedade brasileira, o divórcio no Brasil nasceu fundado sobre argumentos machistas.
Essa é uma das conclusões que Daniela Archanjo, 30, mestre em sociologia pela Universidade Federal do Paraná, tira de sua pesquisa de doutoramento, baseada nos discursos de parlamentares sobre família, casamento e divórcio proferidos entre 1951 e 1977.
As parlamentares do sexo feminino teriam recorrido aos mesmos argumentos conservadores, como o de que a mulher precisa ser protegida e o divórcio permite a restituição do estatuto social de "mãe". "Havia pouca participação delas no debate, e era igual à dos homens", diz.
Leia abaixo a entrevista que concedeu à Folha.

 

FOLHA - Quais eram as principais diferenças entre os discursos divorcista e antidivorcista?
DANIELA ARCHANJO -
Os parlamentares divorcistas ressaltavam transformações sociais -mas também eram conservadores e não levantavam a bandeira da liberdade sexual, por exemplo.
Destacavam o aumento de uniões concubinárias, que a família estaria em crise, que as uniões ilegais acarretavam preconceito contra os filhos, os quais não conseguiam matrícula em escolas religiosas.
Os antidivorcistas diziam que o crescimento / acontecia só nos grandes centros, especialmente Rio e São Paulo, e que esses casos não eram um retrato do Brasil.

FOLHA - Os divorcistas tinham um discurso conservador no que diz respeito ao papel da mulher?
ARCHANJO -
Já havia o movimento feminista no Brasil, e o movimento negro também colaborou para a transformação no imaginário, para que se admitisse a diversidade.
Era de esperar dos divorcistas algo da luta por igualdade entre homens e mulheres. Mas não: o espaço do Congresso era um espaço com limites ao dizer.

FOLHA - O discurso conservador divorcista era uma adaptação ao entorno conservador?
ARCHANJO -
Nelson Carneiro, por exemplo, usava argumentos diferentes em outros locais.
Em comícios, defendia o divórcio como direito da mulher, pedindo mais igualdade. No Congresso, o argumento era devolver à mulher concubinária o estatuto de esposa e mãe.
/ Arruda Câmara acusava Carneiro de ter duas caras: no Congresso, evitava falar em divórcio, e alguns de seus projetos tratavam, em vez disso, de anulação do casamento; fora do plenário, falava abertamente em divórcio.

FOLHA - Como evoluiu o equilíbrio de forças divorcistas e antidivorcistas até a emenda nø 9?
ARCHANJO -
Em 1951, foi apresentado o primeiro projeto divorcista de Nelson Carneiro.
Nas décadas de 50 e 60, havia um predomínio de espaço para a tese antidivórcio.
Em 1970, há um corte nisso, os divorcistas começaram a ganhar mais espaço -há aplausos nos discursos, quem fala mal de Carneiro começa a ser vaiado.
Uma hipótese para explicar essa mudança é a morte de Arruda Câmara /, principal nome da luta antidivorcista.
Também na década de 70, aparece nos discursos uma maior participação popular -o presidente da mesa, por exemplo, pedia silêncio nas galerias durante tais discussões.

FOLHA - Em dezembro de 1977, a lei passou a admitir o divórcio, mas a pessoa não se poderia divorciar pela segunda vez. Isso não contraria a lógica divorcista?
ARCHANJO -
Isso já mostra o conservadorismo: era medo de que houvesse bandalheira. Citavam-se artistas norte-americanos que se divorciavam várias vezes como mau exemplo.

FOLHA - O discurso aberto pela igualdade de gênero era raro?
ARCHANJO -
Nos debates estudados, não existe. / Orlando Gomes, em seu projeto de código civil, havia proposto que não há uma chefia na família, mas sim uma igualdade na relação homem-mulher; Arruda Câmara respondeu argumentando que toda organização precisa de um chefe -e, na família, o chefe tem de ser o homem.

FOLHA - Havia discurso que tirasse a posição central da família na sociedade, que falasse em ser independente?
ARCHANJO -
Não. Nem nas cartas citadas pelos divorcistas aparecia. O que havia de ambos os lados era a preocupação com que a mulher fosse "passar de mão em mão".

FOLHA - Como as mulheres parlamentares respondiam a isso?
ARCHANJO -
Havia pouca participação delas no debate, e era igual à dos homens.
Em 29/4/66, Necy Novaes criticou o projeto de Orlando Gomes dizendo: "Nunca soube de esposa ou mãe brasileira que deseje ser superior ao seu marido, ser independente; pelo contrário, ela procura no marido verdadeiro amigo, porque fora dele não existe amparo".

FOLHA - Não se falava em termos de "acabar o amor"?
ARCHANJO -
Sim. Havia a discussão sobre qual era a base do casamento. Nos estudos religiosos, o fim primordial do casamento era a procriação; isso muda um pouco com o Concílio Vaticano 2ø /, com a valorização do amor conjugal.
Os divorcistas usam muito o amor como base do casamento, respondendo com argumentos como "o homem não pode juntar o que Deus já separou", quando acabou o amor.

FOLHA - Havia divisão na Igreja Católica a respeito?
ARCHANJO -
Dá para notar por exemplos como o do padre Bezerra de Melo, parlamentar que defendia o divórcio argumentando que, para a igreja, o casamento civil não tem valor. Se a igreja não reconhece o civil, não há implicação religiosa.
Mas ele foi muito criticado pelos antidivorcistas, como alguém que desrespeitava a hierarquia católica.
A deputada Lygia Lessa Bastos, que votou a favor do divórcio, foi questionada num debate: "Eu a vi na missa. Como a sra., católica, defende o divórcio?".
Ela respondeu em nome do direito de reconstruir famílias.

FOLHA - O movimento divorcista era um movimento feminino?
ARCHANJO -
Os antidivorcistas diziam: "Nelson Carneiro fica trazendo as desquitadas de Copacabana para fazer campanha". Havia o apoio de mulheres, que faziam reuniões, eram grupos de mulheres.
Mas elas não tinham voz direta no Congresso e não tinham ligação com o feminismo.

FOLHA - Qual era a participação do Executivo na discussão?
ARCHANJO -
Não dizia sim nem não. Geisel era luterano; como os luteranos eram a favor do divórcio, divulgava-se que ele seria a favor. Especialmente na década de 70, houve críticas dos antidivorcistas a essas interpretações da imprensa e sua campanha aberta pró-divórcio, que usaria dados mentirosos.


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