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São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

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"O Engenheiro de Almas" tece um painel da história tcheca sob a ótica de um escritor exilado no Canadá

Males da opressão e da liberdade

Paulo Schiller
especial para a Folha

Segundo a folha de rosto da edição norte-americana, um entretenimento sobre os velhos temas da vida, as mulheres, o destino, os sonhos, a classe operária, agentes secretos, o amor e a morte. Por meio de uma trama densa, um labirinto de pequenas histórias individuais entrelaçadas, Josef Skvorecky tece um vasto painel da história da Tchecoslováquia, da ocupação nazista à Primavera de Praga (1968). O personagem central, Danny Smiricky, um duplo do autor, é escritor de algum renome e professor de literatura no Edenvale College, em Toronto. O cenário se movimenta o tempo todo entre o presente e o passado na esteira das memórias e das cartas trocadas ao longo das décadas da diáspora provocada pelo nacional-socialismo e o socialismo "libertador". Entre paixões, tristezas e passagens hilariantes, o presente é o da comunidade dos imigrantes tchecos no Canadá, sonhadores, melancólicos, virtuosos, traidores, oportunistas, que vivem no cotidiano do exílio a nostalgia e a fantasia do retorno ou a ruptura definitiva e o amor resignado pela nova terra, visitados por agentes secretos do satélite soviético que deixam cair a máscara tão logo se embriagam. O passado é o de Danny jovem, na aldeia de Kostelec sob a ocupação alemã, quase transformado num herói da resistência.


O presente é o da comunidade dos imigrantes tchecos no Canadá, que vivem no cotidiano do exílio a fantasia do retorno ou a ruptura definitiva e o amor resignado pela nova terra


Poe, Conrad, Lovecraft...
Enquanto trabalha na linha de montagem dos Messerschmitt, planeja sabotar os tambores de munição do caça alemão. Conta com a cumplicidade de Nádia, talvez a personagem mais interessante do livro, operária de origem humilde -que acaba morrendo cedo de tuberculose- com quem Danny tem um caso de amor juvenil. Descobertos, salva-os da morte certa a ajuda surpreendente do próprio supervisor da fábrica, executado depois da guerra, antes que Danny possa testemunhar a seu favor. As histórias dos pais de Nádia e de Danny e os episódios vividos por eles na sucessão das ditaduras evidenciam as repetições renovadas das mesmas cenas e dos mesmos horrores a cada geração.
Os capítulos, "Poe", "Hawthorne", "Twain", "Crane", "Fitzgerald", "Conrad" e "Lovecraft", nomeiam os autores lecionados por Danny em suas aulas em Toronto, indiferente à superficialidade e à pobreza de espírito da maioria de seus alunos. No melhor estilo de Bohumil Hrabal, Ivan Klíma e Milan Kundera, com a mesma mescla de humor amargo, erotismo e paixão pela literatura, própria da Europa Central, Josef Skvorecky entremeia a crítica ao totalitarismo com a exposição dos males das democracias, reinos entediantes da liberdade para não ler, não sofrer, não desejar, não saber, não compreender, onde o verdadeiro amor aos livros não pode ter lugar.
"O Engenheiro de Almas", termo atribuído a Stálin, que teria vislumbrado no escritor o agente para a construção do Novo Homem, é o livro mais importante de Skvorecky. Diz o autor que em sua composição recorreu somente à memória. Skvorecky nasceu em Náchod, na Boêmia, em 1924, e à semelhança de Danny deixou a Tchecoslováquia após a invasão soviética de 1968, publicou livros em tcheco no Canadá e ensinou literatura no Erindale College, também em Toronto. Entre outros, recebeu o Prêmio Neustadt de Literatura, em 1980, e o Governor General's Award for Fiction, em 1984. No Brasil, além deste, teve quatro romances publicados: "O Saxofone Baixo", "A República das Putas", "Dois Assassinatos em Minha Vida Dupla" (todos pela ed. Record) e "A História do Saxofonista" (ed. Imago).
O original tcheco de "O Engenheiro de Almas" foi publicado em 1977 pela Sixty-Eight Publishers, editora criada por Skvorecky e sua mulher para acolher a literatura do exílio. A edição brasileira foi feita a partir da versão em inglês, assinada por Paul Wilson, a quem se atribui um trabalho notável, pois o original foi considerado intraduzível por outros companheiros de ofício. Ainda assim, segundo os especialistas, em inglês perderam-se, inevitavelmente, as sutilezas do linguajar barroco e dos coloquialismos criados pelas sucessivas ondas de imigrantes desembarcados em Toronto, bem como o tom levemente erótico das palavras femininas em tcheco.
As muitas qualidades do romance podem ser inferidas pelo que resistiu a esta tradução para o português, aprisionada pela armadilha paralisante da literalidade e dos falsos cognatos, por erros de tradução e revisão, carente, acima de tudo, de um bom trabalho de preparação de texto. Os descuidos ganham destaque por fragilizarem um livro que presta homenagem à própria literatura, repleto de epígrafes e citações de grandes autores.

Paulo Schiller é psicanalista, autor de "A Vertigem da Imortalidade" (Cia. das Letras). Traduziu do húngaro "Veredicto em Canudos" (Cia. das Letras), de Sándor Márai, e "O Companheiro de Viagem" (Cosac & Naify), de Gyula Krudy.

O Engenheiro de Almas
688 págs., R$ 72,00
de Josef Skvorecky. Tradução de Regina Bhering. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2585-2000).


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