São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Lida subjetiva

Para entidade que representa produtores, mídia tende a generalizar maus exemplos pontuais

EM SÃO PAULO

N a sala do décimo andar de um edifício da avenida Brigadeiro Faria Lima, onde o diretor técnico da União da Indústria da Cana-de-Açúcar concede entrevista em São Paulo, as paredes estampam seis fotografias emolduradas. Três mostram caminhões descarregando cana; duas focam outros ângulos de uma usina; e uma descortina o canavial imponente -sem vivalma à vista.
Esse mundo o administrador de empresas Antonio de Padua Rodrigues, 56, conhece bem. Aos oito anos, nas férias escolares, ele cortava cana no interior. "Falar que é fácil é mentira", reconhece. Uma tia morreu na mesma lida, picada por uma cobra cascavel.
Hoje o sobrinho dela, nascido em família modesta, é um fabuloso banco de dados cerebral, uma das duas vozes mais reconhecidas da entidade que reúne usinas de São Paulo -Estado produtor de 60% da cana do país-, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Goiás e Espírito Santo. A outra face mais visível da Unica (pronuncia-se "única", proparoxítona) é a do seu presidente, Marcos Jank.
Do que morrem os canavieiros? O corte de cana "não mata", afirma Padua. "Pode-se morrer em qualquer situação, local e hora." Na sua opinião, "o serviço não leva à exaustão. Ninguém é obrigado a cortar cana ininterruptamente".
Movimentos como as flexões não causam problemas? Complicações com a coluna "também tem quem trabalha em escritório diante do computador", sustenta o executivo.
Mesmo assim, algumas companhias promovem ginástica laboral para os funcionários no campo, como comprovam imagens em publicações. Ao acompanhar turmas de empregados de usinas e fornecedores de cana, os repórteres não testemunharam lavradores se exercitando -a não ser com o facão.
A associação dos usineiros rejeita projeções sobre a vida útil dos cortadores. Nem sabe definir quanto tempo eles permanecem na atividade.
O pagamento por produção não incentiva o trabalhador a ultrapassar seus limites? "Não existe esse absurdo de que falam", diz Padua. Ele estima o piso salarial no Estado em uma faixa de R$ 480 a R$ 550. "O trabalho é difícil, penoso, mas não é desumano."
Segundo o Instituto de Economia Agrícola, em 2007 a remuneração média pelo corte em São Paulo foi de R$ 720. Nas contas da Unica, por volta de 95% do emprego local no cultivo da cana é formalizado.
A Unica contesta igualmente as autuações do Ministério do Trabalho por submissão, em canaviais, de trabalhadores a condição análoga à de escravo.
Há excessiva subjetividade na interpretação dos fatos, diz Padua. "Pagar abaixo do salário mínimo é trabalho escravo?", indaga. Propõe revisar a legislação para torná-la mais clara -o Código Penal prevê o crime referente ao trabalho escravo.

"Heróis" de Lula
Um problema do setor sucroalcooleiro, aponta Padua, é a terceirização da produção de cana. Protocolos definem o fim da prática para 2010 em São Paulo. Ela "traz desconforto", diz, porque as usinas "têm que responder [na Justiça] como se fosse trabalho próprio".
Na visão dos usineiros, pesquisas sobre o impacto nocivo do trabalho padecem de limitação severa: o universo pequeno dos indivíduos analisados. É o caso, exemplificam, de tese sobre o nível elevado de substâncias cancerígenas na urina de 41 cortadores durante a safra.
Outra crítica se dirige contra organizações civis e o jornalismo. Do ponto de vista da Unica, tomam-se como padrão alguns maus exemplos pontuais de gestão do trabalho. A agremiação e seus 117 associados (eram menos de 90 um ano atrás) mantêm 154 iniciativas de qualificação de mão-de-obra.
O segmento de cana, açúcar e álcool deve movimentar R$ 40 bilhões neste ano no Brasil, diz a Unica. O valor corresponde a pouco mais de 1,5% do PIB.
A Secretaria da Agricultura e Abastecimento avaliou que a cana-de-açúcar representou no ano passado 36% do valor da produção agropecuária de SP.
O Estado deve fechar o ano com 181 usinas, sete a mais que as já em funcionamento. No centro-sul, incluindo o Sudeste, de 80 a 90 devem começar a operar em três anos. No país, há em torno de 370.
A imagem dos usineiros, que já foram sinônimo de irresponsabilidade social e paradigma de beneficiários de benesses do Estado, vem mudando. Pelo menos para o presidente da República, natural de Pernambuco, área canavieira tradicional.
Luiz Inácio Lula da Silva disse em março de 2007: "Os usineiros, que até seis anos atrás eram tidos como se fossem os bandidos do agronegócio neste país, estão virando heróis nacionais e mundiais porque todo mundo está de olho no álcool".
Neste ano, Lula minimizou o trabalho degradante na roça: "Vira e mexe, estamos vendo eles [europeus] falarem do trabalho escravo no Brasil, sem lembrar que no desenvolvimento deles, à base do carvão, o trabalho era muito mais penoso que o trabalho na cana-de-açúcar".
Os usineiros são mesmo heróis? Padua cita o jogo duro do mercado mundial, as pressões ambientais e sociais. Sua síntese: os empresários "têm coragem de se expor. O setor não é de aventureiros".
Na despedida dos jornalistas, a Unica entregou publicações, algumas em inglês. Nelas cintilam fotos de usinas e de canaviais. Em nenhuma aparece um só trabalhador cortando cana.


Texto Anterior: Filhos não reconhecem os pais
Próximo Texto: Manual antiquado
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.