São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2006

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As entranhas dos EUA

Em "American Vertigo", o filósofo Bernard-Henri Lévy se inspira em "A Democracia na América", de Tocqueville, e viaja pelo país para investigar sua sociedade e seus valores hoje

PERRINE SIMON-NAHUM

Magistrado sob a Restauração [1814-30], Alexis de Tocqueville foi encarregado de uma pesquisa sobre o sistema penitenciário norte-americano. Ele ampliou o tema e escreveu "A Democracia na América", obra essencial até hoje. O pensamento de Tocqueville está na base de diversos ensaios já publicados ou ainda por publicar, entre os quais um livro do filósofo francês Bernard-Henri Lévy.
A pedido da revista americana "Atlantic Monthly", Lévy percorreu os EUA, tendo o pensamento de Tocqueville como guia. O resultado foi uma obra que analisa o futuro da democracia nos dois lados do Atlântico.
O encontro é tudo, menos fortuito. E, se alguns mal-humorados têm por hábito lamentar o fato de ver Tocqueville transformado em "moda" sob a pena de Lévy -moda esta da qual o filósofo seria ao mesmo tempo o iniciador e o primeiro beneficiário na mídia-, é preciso receber "American Vertigo" [Companhia das Letras, trad. Rosa Freire d'Aguiar, 400 págs., R$ 52] com circunspecção adicional.
É verdade que reencontramos algumas das características principais que fazem a especificidade de seu estilo: a pesquisa, um retrato da América do qual alguns irão queixar-se de antemão por seu aspecto lacunar; a questão do mal, abordada por meio da denúncia do antiamericanismo. Mesmo assim, será que o que ele fez foi seguir os passos de Tocqueville? Não realmente, como ele próprio reconhece.
Vindo da experiência totalitária, Lévy se propõe a analisar, com toda a lucidez, o futuro de nossas democracias num mundo que os oceanos deixaram de compartilhar.

 

PERGUNTA - Em seu livro, o sr. afirma que durante muito tempo ignorou o pensamento de Tocqueville. Apesar disso, respondeu positivamente à proposta feita pela "Atlantic Monthly". Que leitura o sr. faz hoje de sua obra?
BERNARD-HENRI LÉVY
- Acho que minha geração lia Tocqueville ainda menos que a geração de Raymond Aron [1905-1983]. E isso, para avançar rapidamente, devido à dupla influência do marxismo-leninismo, de um lado, e, de outro, daquilo a que se deu o nome de pensamento estruturalista. Foi preciso que tudo isso refluísse ou se dissipasse, foi preciso que o clima se desradicalizasse, que nós nos desprendêssemos do anti-humanismo teórico dos anos 1960 e 1970, para que Tocqueville se tornasse simplesmente visível e começássemos a levar a sério aquilo que pessoas como François Furet [1927-1997] ou Pierre Manent ou ainda algumas outras se esforçavam havia anos para nos dizer.
"A Democracia na América" não é só uma obra premonitória mas também constitutiva. É um livro que, há mais de um século, possui a propriedade muito particular de contribuir para a própria constituição da idéia e da identidade americanas nas almas de seus leitores.

PERGUNTA - A perspectiva da viagem e a escolha da estrada como método para adaptar-se à escala das realidades americanas, à imensidão do espaço, não seriam a tradução de uma visão imaginária da América, a dos "road movies" de sua geração e de Elvis Presley (aliás, uma etapa da viagem foi realizada em forma de peregrinação a Memphis)?
LÉVY
- Sim, sem dúvida. Tem razão. Mas desde que se acrescente que aquilo que você chama "visão imaginária da América" é parte integral e indissolúvel da idéia dela que eu, assim como todos os europeus, sempre tive. E, desde que se acrescente que o mesmo se aplica aos próprios americanos e, portanto, à América como tal: o que seria seu espaço sem seus "road movies"? Sua imensidão, sem seus westerns?

PERGUNTA - O sr. evoca um estilo tocquevilliano, fazendo deste "o inventor de uma forma moderna de reportagem", no modo de não excluir nenhuma informação e de remetê-la sempre a uma idéia.
LÉVY
- É a primeira vez que escrevo um livro sem idéia fixa. Esse é um livro menos sistemático, menos monomaníaco que os meus anteriores. Meu desejo foi o de opor ao antiamericanismo, que está se convertendo na religião planetária dominante, o único antídoto que funciona: a realidade.

PERGUNTA - Quais são hoje, em sua opinião, as características principais do "império americano"?
LÉVY
- Não acredito nessa idéia de "império americano". Não acredito na idéia de "império" em geral. Não acredito que a idéia tradicional de império -a imagem clássica de uma grande nação que se estende, se dilata e ocupa nações, povos e civilizações externos para absorvê-los- dê conta do que realmente são os sistemas modernos de dominação e sujeição.

PERGUNTA - E o nacionalismo? O sr. descreve a impressão produzida sobre o viajante que desembarca em Newport pela profusão de bandeiras americanas, manifestação do sentimento patriótico.
LÉVY
- Sim. Só que, nesse caso, eu me inscrevo na corrente contrária à idéia recebida. Para mim, essa profusão de bandeiras hasteadas não é evidência de um nacionalismo arrogante, mas, pelo contrário, de um nacionalismo ferido, incerto dele mesmo, quase precário e que, por essa razão, acredita ser obrigado a se declarar de maneira exagerada.

PERGUNTA - É daí que vem sua "compreensão" do fenômeno neoconservador?
LÉVY
- Não, isso é outra coisa. Não gosto dos neoconservadores. Não é neles que eu votaria se fosse americano, evidentemente. Mas rejeito sua satanização. Rejeito o processo que retrata como fascistas homens e mulheres cujo programa, com ou sem razão, consiste em difundir a idéia do "excepcionalismo americano" tradicional.
Digo aos franceses: direita por direita, o que vocês preferem -a direita de tempos passados, que apoiava Pinochet, os generais argentinos e todos os piores ditadores do planeta? Ou essa, que se atribui como meta, não sem ingenuidade e ao preço de erros políticos terríveis, difundir a democracia no mundo árabe e outras regiões?

PERGUNTA - Em contrapartida, o sr. adota uma atitude muito crítica diante do crescimento das novas igrejas. Trata-se de uma manifestação mais recente de um individualismo levado ao extremo, em que a religião deixa de exercer o papel regulador atribuído por Tocqueville?
LÉVY
- O problema com essas igrejas não é tanto seu lado "reacionário": é seu prosaísmo. A confusão que fazem entre o sagrado e o profano. É essa idéia de um Deus pessoal e fraternal, uma espécie de "cara legal" que, na imanência e no imediato, responderia às necessidades de cada um. Para mim, esse esquema não é mais inteiramente cristão -presente e ausente, loquaz e silencioso, muito próximo e repentinamente muito distante.

PERGUNTA - Os EUA foram o grande país inovador do século 20. O que é feito hoje da revolução dos usos e costumes, que, num primeiro momento, foi emancipadora e depois pendeu para o fundamentalismo?
LÉVY
- É complicado. Existe isso, é claro. Existem as megaigrejas e as ligas de virtude antiaborto. Existe esse puritanismo que percorre todas as classes sociais e todos os setores do espectro ideológico e político. Mas, se você me leu bem, terá visto que, para mim, já existe uma "nova corrente" que se desenvolve no país e que se caracteriza por fenômenos muito interessantes de singularização, de distanciamento da norma, de diferenciação individual. De maneira confusa, é o católico texano que é adepto do "home schooling" (ensino escolar em domicílio); são os jovens e não tão jovens neo-urbanos que lutam para salvar um imóvel em situação de risco de uma cidade-fantasma da região dos Lagos; são pessoas que estão inventando modalidades pós-modernas de habitação na região das pradarias; são os outros, todos esses outros, que se colocam como regra, como dever moral, o princípio dândi de manter distância das grandes missas comunitárias, ou seja, das máquinas de embrutecimento programado que são a TV, as marcas, as manifestações da religião cívica esportiva ou as grandes igrejas debilitantes e neopagãs. Isso também são os EUA.

PERGUNTA - Qual é a avaliação que o sr. faz da revolução cultural representada pela ascensão das minorias verificada nos últimos 20 anos?
LÉVY
- Uma avaliação sobretudo positiva. Acredito que a questão da correção política foi muito exagerada na França, por exemplo. As pessoas zombaram dela. Insistiram sobre os casos mais ridículos. Atribuíram importância desproporcional a um certo grupúsculo que se propunha a reescrever "Branca de Neve", dos Irmãos Grimm, para eliminar da história qualquer menção ofensiva aos "sete anões"; à professora que exigiu a retirada da parede da reprodução de um nu de Goya, o qual, afirmou, a molestava sexualmente. Mas tudo isso é periférico. Muito mais importante, muito mais interessante e, sobretudo, muito mais nobre e mais generoso foi o gesto que consistiu em voltar o projetor sobre as minorias e as vítimas e nunca mais deixar passar em branco os automatismos de linguagem nos quais se petrificou a história de sua humilhação.

PERGUNTA - Não é o caso de temer que a "tirania das minorias" tome o lugar da "tirania da maioria"?
LÉVY
- Existe isso também, naturalmente, e esse é um dos temas do livro. Mais uma vez, porém, não podemos ao mesmo tempo nos indignar com o passado racista e escravagista da América e, quando a dita América se inflige o remédio de cavalo que é esse trabalho sobre sua própria língua e sobre aquilo que nela atesta a antigüidade da infâmia, repreendê-la por isso e nos queixar.

PERGUNTA - A viagem de Tocqueville teve como pretexto uma investigação sobre o sistema penitenciário americano encomendada pelo Ministério do Interior. E o sr. traçou um retrato de seis prisões, entre elas a de Guantánamo.
LÉVY
- Sim. Procuro, sobretudo, mostrar que há um vínculo entre as cinco primeiras e a última. Todo mundo, tanto seus defensores quanto seus adversários, agem como se Guantánamo tivesse caído do céu. Quanto a mim, acredito que Guantánamo é puro produto do sistema penitenciário em seu conjunto e, mais além dele, da sociedade americana, na medida em que ela é encarnada em seu sistema penitenciário. O guia, nesse ponto, não é apenas Tocqueville, mas "Vigiar e Punir", de Foucault.

PERGUNTA - O que leva alguém hoje a sentir-se americano?
LÉVY
- É uma escolha. Uma idéia. Ou, como dizem os americanos, um credo. Conhece a reflexão de Habermas sobre o patriotismo constitucional, não conhece? É isso. Não conheço tantas outras encarnações bem-sucedidas desse patriotismo constitucional, do milagre de uma nação abstrata e articulada sobre princípios, em lugar de ter as raízes numa origem comum ou numa raça.

Este texto saiu na "Magazine Littéraire".
Tradução de Clara Allain.


Leia a íntegra da entrevista em www.folha.com.br/062631


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