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As entranhas dos EUA
Em "American Vertigo", o
filósofo Bernard-Henri Lévy
se inspira em "A Democracia na América", de Tocqueville, e viaja pelo país para investigar sua sociedade e seus valores hoje
PERRINE SIMON-NAHUM
Magistrado sob a
Restauração
[1814-30], Alexis de Tocqueville foi encarregado de uma pesquisa sobre
o sistema penitenciário norte-americano. Ele ampliou o tema
e escreveu "A Democracia na
América", obra essencial até
hoje. O pensamento de Tocqueville está na base de diversos ensaios já publicados ou
ainda por publicar, entre os
quais um livro do filósofo francês Bernard-Henri Lévy.
A pedido da revista americana "Atlantic Monthly", Lévy
percorreu os EUA, tendo o
pensamento de Tocqueville como guia. O resultado foi uma
obra que analisa o futuro da democracia nos dois lados do
Atlântico.
O encontro é tudo, menos
fortuito. E, se alguns mal-humorados têm por hábito lamentar o fato de ver Tocqueville transformado em "moda"
sob a pena de Lévy -moda esta
da qual o filósofo seria ao mesmo tempo o iniciador e o primeiro beneficiário na mídia-,
é preciso receber "American
Vertigo" [Companhia das Letras, trad. Rosa Freire d'Aguiar,
400 págs., R$ 52] com circunspecção adicional.
É verdade que reencontramos algumas das características principais que fazem a especificidade de seu estilo: a
pesquisa, um retrato da América do qual alguns irão queixar-se de antemão por seu aspecto
lacunar; a questão do mal,
abordada por meio da denúncia do antiamericanismo. Mesmo assim, será que o que ele fez
foi seguir os passos de Tocqueville? Não realmente, como ele
próprio reconhece.
Vindo da experiência totalitária, Lévy se propõe a analisar,
com toda a lucidez, o futuro de
nossas democracias num mundo que os oceanos deixaram de
compartilhar.
PERGUNTA - Em seu livro, o sr. afirma que durante muito tempo ignorou o pensamento de Tocqueville.
Apesar disso, respondeu positivamente à proposta feita pela "Atlantic Monthly". Que leitura o sr. faz
hoje de sua obra?
BERNARD-HENRI LÉVY - Acho que
minha geração lia Tocqueville
ainda menos que a geração de
Raymond Aron [1905-1983]. E
isso, para avançar rapidamente, devido à dupla influência do
marxismo-leninismo, de um lado, e, de outro, daquilo a que se
deu o nome de pensamento estruturalista.
Foi preciso que tudo isso refluísse ou se dissipasse, foi preciso que o clima se desradicalizasse, que nós nos desprendêssemos do anti-humanismo teórico dos anos 1960 e 1970, para
que Tocqueville se tornasse
simplesmente visível e começássemos a levar a sério aquilo
que pessoas como François Furet [1927-1997] ou Pierre Manent ou ainda algumas outras
se esforçavam havia anos para
nos dizer.
"A Democracia na América"
não é só uma obra premonitória mas também constitutiva. É
um livro que, há mais de um século, possui a propriedade muito particular de contribuir para
a própria constituição da idéia
e da identidade americanas nas
almas de seus leitores.
PERGUNTA - A perspectiva da viagem e a escolha da estrada como
método para adaptar-se à escala
das realidades americanas, à imensidão do espaço, não seriam a tradução de uma visão imaginária da
América, a dos "road movies" de sua
geração e de Elvis Presley (aliás, uma
etapa da viagem foi realizada em
forma de peregrinação a Memphis)?
LÉVY - Sim, sem dúvida. Tem
razão. Mas desde que se acrescente que aquilo que você chama "visão imaginária da América" é parte integral e indissolúvel da idéia dela que eu, assim
como todos os europeus, sempre tive. E, desde que se acrescente que o mesmo se aplica
aos próprios americanos e, portanto, à América como tal: o
que seria seu espaço sem seus
"road movies"? Sua imensidão,
sem seus westerns?
PERGUNTA - O sr. evoca um estilo
tocquevilliano, fazendo deste "o inventor de uma forma moderna de
reportagem", no modo de não excluir nenhuma informação e de remetê-la sempre a uma idéia.
LÉVY - É a primeira vez que escrevo um livro sem idéia fixa.
Esse é um livro menos sistemático, menos monomaníaco que
os meus anteriores. Meu desejo
foi o de opor ao antiamericanismo, que está se convertendo na
religião planetária dominante,
o único antídoto que funciona:
a realidade.
PERGUNTA - Quais são hoje, em sua
opinião, as características principais
do "império americano"?
LÉVY - Não acredito nessa idéia
de "império americano". Não
acredito na idéia de "império"
em geral. Não acredito que a
idéia tradicional de império -a
imagem clássica de uma grande
nação que se estende, se dilata e
ocupa nações, povos e civilizações externos para absorvê-los- dê conta do que realmente
são os sistemas modernos de
dominação e sujeição.
PERGUNTA - E o nacionalismo? O sr.
descreve a impressão produzida sobre o viajante que desembarca em
Newport pela profusão de bandeiras americanas, manifestação do
sentimento patriótico.
LÉVY - Sim. Só que, nesse caso,
eu me inscrevo na corrente
contrária à idéia recebida. Para
mim, essa profusão de bandeiras hasteadas não é evidência
de um nacionalismo arrogante,
mas, pelo contrário, de um nacionalismo ferido, incerto dele
mesmo, quase precário e que,
por essa razão, acredita ser
obrigado a se declarar de maneira exagerada.
PERGUNTA - É daí que vem sua
"compreensão" do fenômeno neoconservador?
LÉVY - Não, isso é outra coisa.
Não gosto dos neoconservadores. Não é neles que eu votaria
se fosse americano, evidentemente. Mas rejeito sua satanização. Rejeito o processo que
retrata como fascistas homens
e mulheres cujo programa, com
ou sem razão, consiste em difundir a idéia do "excepcionalismo americano" tradicional.
Digo aos franceses: direita
por direita, o que vocês preferem -a direita de tempos passados, que apoiava Pinochet, os
generais argentinos e todos os
piores ditadores do planeta?
Ou essa, que se atribui como
meta, não sem ingenuidade e
ao preço de erros políticos terríveis, difundir a democracia no
mundo árabe e outras regiões?
PERGUNTA - Em contrapartida, o sr.
adota uma atitude muito crítica
diante do crescimento das novas
igrejas. Trata-se de uma manifestação mais recente de um individualismo levado ao extremo, em que a religião deixa de exercer o papel regulador atribuído por Tocqueville?
LÉVY - O problema com essas
igrejas não é tanto seu lado
"reacionário": é seu prosaísmo.
A confusão que fazem entre o
sagrado e o profano. É essa
idéia de um Deus pessoal e fraternal, uma espécie de "cara legal" que, na imanência e no
imediato, responderia às necessidades de cada um.
Para mim, esse esquema não
é mais inteiramente cristão
-presente e ausente, loquaz e
silencioso, muito próximo e repentinamente muito distante.
PERGUNTA - Os EUA foram o grande país inovador do século 20. O que
é feito hoje da revolução dos usos e
costumes, que, num primeiro momento, foi emancipadora e depois
pendeu para o fundamentalismo?
LÉVY - É complicado. Existe isso, é claro. Existem as megaigrejas e as ligas de virtude antiaborto. Existe esse puritanismo que percorre todas as classes sociais e todos os setores do
espectro ideológico e político.
Mas, se você me leu bem, terá
visto que, para mim, já existe
uma "nova corrente" que se desenvolve no país e que se caracteriza por fenômenos muito interessantes de singularização,
de distanciamento da norma,
de diferenciação individual.
De maneira confusa, é o católico texano que é adepto do
"home schooling" (ensino escolar em domicílio); são os jovens e não tão jovens neo-urbanos que lutam para salvar um
imóvel em situação de risco de
uma cidade-fantasma da região
dos Lagos; são pessoas que estão inventando modalidades
pós-modernas de habitação na
região das pradarias; são os outros, todos esses outros, que se
colocam como regra, como dever moral, o princípio dândi de
manter distância das grandes
missas comunitárias, ou seja,
das máquinas de embrutecimento programado que são a
TV, as marcas, as manifestações da religião cívica esportiva
ou as grandes igrejas debilitantes e neopagãs.
Isso também são os EUA.
PERGUNTA - Qual é a avaliação que
o sr. faz da revolução cultural representada pela ascensão das minorias
verificada nos últimos 20 anos?
LÉVY - Uma avaliação sobretudo positiva. Acredito que a
questão da correção política foi
muito exagerada na França,
por exemplo. As pessoas zombaram dela. Insistiram sobre os
casos mais ridículos. Atribuíram importância desproporcional a um certo grupúsculo
que se propunha a reescrever
"Branca de Neve", dos Irmãos
Grimm, para eliminar da história qualquer menção ofensiva
aos "sete anões"; à professora
que exigiu a retirada da parede
da reprodução de um nu de Goya, o qual, afirmou, a molestava
sexualmente.
Mas tudo isso é periférico.
Muito mais importante, muito
mais interessante e, sobretudo,
muito mais nobre e mais generoso foi o gesto que consistiu
em voltar o projetor sobre as
minorias e as vítimas e nunca
mais deixar passar em branco
os automatismos de linguagem
nos quais se petrificou a história de sua humilhação.
PERGUNTA - Não é o caso de temer
que a "tirania das minorias" tome o
lugar da "tirania da maioria"?
LÉVY - Existe isso também, naturalmente, e esse é um dos temas do livro. Mais uma vez, porém, não podemos ao mesmo
tempo nos indignar com o passado racista e escravagista da
América e, quando a dita América se inflige o remédio de cavalo que é esse trabalho sobre
sua própria língua e sobre aquilo que nela atesta a antigüidade
da infâmia, repreendê-la por isso e nos queixar.
PERGUNTA - A viagem de Tocqueville teve como pretexto uma investigação sobre o sistema penitenciário
americano encomendada pelo Ministério do Interior. E o sr. traçou um
retrato de seis prisões, entre elas a
de Guantánamo.
LÉVY - Sim. Procuro, sobretudo, mostrar que há um vínculo
entre as cinco primeiras e a última. Todo mundo, tanto seus
defensores quanto seus adversários, agem como se Guantánamo tivesse caído do céu.
Quanto a mim, acredito que
Guantánamo é puro produto
do sistema penitenciário em
seu conjunto e, mais além dele,
da sociedade americana, na
medida em que ela é encarnada
em seu sistema penitenciário.
O guia, nesse ponto, não é apenas Tocqueville, mas "Vigiar e
Punir", de Foucault.
PERGUNTA - O que leva alguém hoje a sentir-se americano?
LÉVY - É uma escolha. Uma
idéia. Ou, como dizem os americanos, um credo. Conhece a
reflexão de Habermas sobre o
patriotismo constitucional,
não conhece? É isso. Não conheço tantas outras encarnações bem-sucedidas desse patriotismo constitucional, do
milagre de uma nação abstrata
e articulada sobre princípios,
em lugar de ter as raízes numa
origem comum ou numa raça.
Este texto saiu na "Magazine Littéraire".
Tradução de Clara Allain.
Leia a íntegra da entrevista em www.folha.com.br/062631
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