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Nem tudo a ver
PARA O CRÍTICO FERNÃO RAMOS, RECORD MIMETIZA PADRÃO
DA GLOBO PARA CRESCER, MAS SUPERA A RIVAL NA REPRESENTAÇÃO
DA VIDA DURA DAS CLASSES MENOS FAVORECIDAS
Divulgação
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Cena da série "Cidade dos Homens" |
JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A
guerra de audiência
entre as TVs Globo
e Record no horário
dos programas "Big
Brother Brasil 7" e
"Vidas Opostas" é sintomática
do nicho que as duas emissoras
estão perseguindo: o filão do
"real". Um reality show contra
uma telenovela que "retrata a
vida como ela é".
Assim, a ameaça à hegemonia da Globo sobre o imaginário brasileiro -devido ao crescimento constante e sustentado de audiência da Record-
vem se configurando como
uma batalha travada no âmbito
da habilidade em apresentar a
"realidade" social do país aos
espectadores brasileiros, tanto
no campo jornalístico quanto
no ficcional.
Para debater essa questão a
Folha ouviu o crítico de cinema Fernão Pessoa Ramos.
Em pesquisa para elaborar o
ensaio "O Horror, O Horror!
Representação do Popular no
Documentário Brasileiro Contemporâneo" -parte do livro
"Afinal, o Que É mesmo Documentário?", que sai no segundo
semestre pela editora Senac-,
Ramos investigou em profundidade a produção documental.
Em especial as condições de
vida em contextos sociais de
violência e pobreza, além de se
dedicar também à análise de
programas televisivos que seguem a mesma linha.
Professor de história e teoria
do cinema na Universidade Estadual de Campinas (SP), autor
de "Cinema Marginal (1968-1973) - A Representação em
Seu Limite" (ed. Brasiliense),
Ramos fala, em entrevista à Folha, sobre a clonagem de padrões jornalísticos e dramatúrgicos da rede Globo pela Record e trata da representação
popular no cinema e na TV.
FOLHA - Em seus estudos sobre a
representação da alteridade social
no documentário brasileiro, o sr. discute a "clivagem do popular" no cinema. Anuncia-se, com o crescimento de audiência da Record, um horizonte de "clivagem do popular"
também no cenário televisivo?
FERNÃO PESSOA RAMOS - Apesar
de não ser um crítico de TV,
acho que a Record, até onde eu
estou acompanhando, está tentando galgar o posto da Globo
com uma proposta explícita de
clonagem. É o caso, por exemplo, do "Jornal da Record", que
é muito parecido com o "Jornal
Nacional".
As novelas também são muito similares: a cenografia é
muito parecida, ambas as emissoras fazem uso da iluminação
de três pontos, que dá um outro realce às imagens; a fotografia também é muito parecida. Na realidade, A Record está
em busca de um padrão Globo
de qualidade, criando um padrão Record de qualidade que é
quase igual ao da concorrente.
Creio que se trata efetivamente de um grupo forte, que
tem dinheiro da igreja [Universal do Reino de Deus] e que está bancando a Globo, mas indo
no mesma direção.
A diferença em que se pode
pensar talvez esteja no fato de
que é gerida por uma igreja
neopentecostal, mas esse lado
está um pouco em recuo.
Irá transmitir a missa do papa Bento 16 [durante sua visita
ao Brasil, em maio próximo]
etc., mas alguns elementos em
relação aos quais havia um certo receio, logo no início da Record, quando a identificação
com a Igreja Universal era muito forte [o bispo Edir Macedo,
fundador da Igreja Universal
do Reino de Deus, é dono da
Record desde 1990], hoje já não
são mais motivo de receio, como nas novelas, por exemplo.
A dramaturgia televisiva brasileira é extremamente erotizada. Tanto a dramaturgia
quanto a publicidade.
Em relação a esse aspecto,
em uma igreja neopentecostal,
de um protestantismo exacerbado, deveria haver uma certa
censura em seguir a Globo.
O corte erotizado marca
muito as novelas. Você tem,
por exemplo, novelas em que
os atores passam capítulos inteiros sem camisa, o que é completamente inverossímil. O cenário predileto é a cama. As
pessoas estão sempre se beijando, e isso às 19h, às 20h. Não
entrarei em considerações do
que deve ou não deve ser censurado; estou só constatando.
FOLHA - Então o sr. diria que essa
mudança não chega a interferir na
constituição do imaginário do "povo" brasileiro?
RAMOS - Acho que não, mas
gostaria de apontar dentro desse recorte da representação
criminalizada do popular -o
popular sempre cercado de
morte, de tragédia, de horror,
marcado pelas condições de vida precárias etc.- que a Globo
teve um momento ápice, que
foi a veiculação de "Falcão - Os
Meninos do Tráfico", de MV
Bill e do Celso Athayde.
Existiu esse momento um
pouco paradigmático da representação do horror ou do popular criminalizado na mídia brasileira: a veiculação do "Falcão"
no programa dominical da família brasileira, que é o "Fantástico", foi bem significativa.
Vejo três fatores aí.
Primeiro, a exibição de um
documentário, com um tipo de
imagem que foi montada dentro do padrão global, inserido
dentro do "Fantástico", anunciado por uma apresentadora
da rede Globo, que é a Glória
Maria. Ele vem toda edulcorada pelo padrão global, mas as
imagens não são da Globo.
As imagens são de um rapper
que nasceu na favela e um produtor que também vivenciou
de dentro aquelas situações.
Por outro lado, há a representação do popular na dramaturgia da Globo, e cito como
exemplos "Cidade dos Homens", a série feita a partir do
filme "Cidade de Deus", e "Antônia", mais recentemente.
"Cidade dos Homens", sobretudo, tem esse corte bem forte,
da favela, do traficante, da miséria. Pode-se notar essa presença da imagem popular na
televisão brasileira, o que, se
não é algo inédito, ressurge como uma novidade em 2005-6.
O interessante é que, simultaneamente, a Record exibiu
"A Turma do Gueto", que era
um programa de dramaturgia
mais clássica, um pouco mais
primário, mas muito parecido
com "Cidade dos Homens", e
passava no mesmo horário.
Lembro-me de um episódio
de "A Turna do Gueto" que
mostrava um exterminador a
favor do assassinato dos criminosos e uma professora ligada a
uma ONG com a qual discutia
-algo bem mais explícito do
que o "Cidade dos Homens",
com um estilo sanguinolento.
Já a série da Globo foi produzida pela O2, que é um pouco a
vanguarda na produção audiovisual brasileira, vanguarda no
bom ou no mau sentido. Mas,
enfim, com um vínculo muito
grande com a propaganda, toda
a evolução tecnológica à disposição e todo o padrão global
atrás, e com a dramaturgia do
Guel Arraes etc.
E o terceiro ponto se refere a
"Central da Periferia", que é a
exaltação do popular; foi um
programa lançado com o manifesto de um antropólogo
-nunca vi isso-, Hermano
Vianna, enfatizando a necessidade de mostrar o popular.
E a série toda, que depois se
transforma em bloco do "Fantástico", tem no horizonte trabalhar de maneira positiva com
o universo do popular, e como
se o retratasse como ele é.
FOLHA - Mas que na verdade é um
mito de transparência, não?
RAMOS - Lógico, até pela presença da apresentadora Regina
Casé, que provoca uma alteração na realidade da favela. Mas
o discurso por trás é esse. Sente-se que a exibição de "Falcão"
foi algo bem marcante dentro
da produção global, algo assim
como um acertar de contas.
Isso é muito forte no Rio de
Janeiro, porque lá se vive a miséria da favela na próxima esquina. O Rio também viveu o
episódio envolvendo o jornalista Tim Lopes, que foi executado no morro [em junho de
2002, no complexo do Alemão]. Esse foi um paradigma
do horror para a Globo.
FOLHA - Entre esses exemplos de
aproximação do popular pela dramaturgia, e considerando também
a novela "Vidas Opostas", que busca retratar o tráfico e a violência com
verossimilhança, ocorre a experiência de culpabilização do espectador
de que o sr. trata em seu artigo?
RAMOS - Do popular e também
de uma certa imagem intensa.
Em "Páginas da Vida" [que acabou em 2/3], ao final de cada
capítulo havia uns trechinhos
de documentário, de depoimentos, nessa mesma linha "a
vida como ela é" de "Vidas
Opostas". Logo no início, me
lembro que foi veiculado o depoimento de uma mulher que
havia feito um aborto, e isso teve muita repercussão na mídia.
É um dado importante que
ao final de uma novela carregada de ficção, de edulcoração da
realidade -dentro de um esquema narrativo completamente distinto do documentário- haja um depoimento real.
Então, respondendo à sua
pergunta, são narrativas muito
distintas. Mas, em relação à
postura do espectador, acho
que há uma cisão, e isso se sente muito no cinema e também
na televisão. Essa cisão se aplica aos dois porque essa representação do popular é feita por
pessoas de classe média.
Existe hoje uma produção
audiovisual comunitária, produções documentárias e ficcionais feitas pela própria população que mora em favelas e
áreas precárias, e raramente a
gente vê a representação do
horror nesses filmes. FOLHA - Então o "horror" está mais
no olhar e na leitura que a classe média faz sobre a sociedade do que na
própria sociedade?
RAMOS - É porque existe uma
clivagem: na realidade, está se
falando sobre o outro, não sobre si mesmo. Não acho que seja uma representação pejorativa, não acho que seja uma representação preconceituosa, é
simplesmente uma representação assustada, assustada com
uma coisa que não se conhece e
que produz essa leitura.
E isso corresponde, evidentemente, a uma sociedade que
tem o pior nível de distribuição
de renda do mundo. Então você
fica isolado de um lado e o resto
da população, que a gente denomina "povo", 80%, 85% ficam na outra ponta da balança.
Na TV caberia uma análise
mais em detalhe para perceber
as nuanças, de modo a não falar
de generalidades e fazer as mediações necessárias, mas sinto
que o corte é parecido.
FOLHA - A produção documental
deve ser afetada com a popularização das mídias digitais? Como a facilidade de circulação de conteúdo documental na internet já repercute
no campo da reflexão sobre o documentário no cinema?
RAMOS - Eu acho que está
emergindo, tanto na ficção como no documentário.
Em termos efetivos, não está
tão embrionário assim, porque
existem diversos grupos e depois isso se transforma até em
formação profissional.
Mas, sinceramente, eu não
vejo uma presença forte que
venha daí e que marque a produção institucional, a grande
produção.
Esta continua envolvendo
grandes valores, e continua,
portanto, na mão de quem tem
dinheiro ou quem sabe se mover nos órgãos competentes
para conseguir esse dinheiro,
colocar em circuito, exibir em
festivais.
São poucos os movimentos
diferentes disso. A televisão
envolve também grandes recursos, envolve também pressão, demanda da audiência.
Respondendo a sua pergunta,
existe, sim, um movimento forte de audiovisual que passa ao
largo da classe média, mas ele
não chega ainda a influenciar a
grande produção.
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