São Paulo, domingo, 25 de março de 2007

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Nem tudo a ver

PARA O CRÍTICO FERNÃO RAMOS, RECORD MIMETIZA PADRÃO DA GLOBO PARA CRESCER, MAS SUPERA A RIVAL NA REPRESENTAÇÃO DA VIDA DURA DAS CLASSES MENOS FAVORECIDAS

Divulgação
Cena da série "Cidade dos Homens"


JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A guerra de audiência entre as TVs Globo e Record no horário dos programas "Big Brother Brasil 7" e "Vidas Opostas" é sintomática do nicho que as duas emissoras estão perseguindo: o filão do "real". Um reality show contra uma telenovela que "retrata a vida como ela é".
Assim, a ameaça à hegemonia da Globo sobre o imaginário brasileiro -devido ao crescimento constante e sustentado de audiência da Record- vem se configurando como uma batalha travada no âmbito da habilidade em apresentar a "realidade" social do país aos espectadores brasileiros, tanto no campo jornalístico quanto no ficcional.
Para debater essa questão a Folha ouviu o crítico de cinema Fernão Pessoa Ramos. Em pesquisa para elaborar o ensaio "O Horror, O Horror! Representação do Popular no Documentário Brasileiro Contemporâneo" -parte do livro "Afinal, o Que É mesmo Documentário?", que sai no segundo semestre pela editora Senac-, Ramos investigou em profundidade a produção documental. Em especial as condições de vida em contextos sociais de violência e pobreza, além de se dedicar também à análise de programas televisivos que seguem a mesma linha.
Professor de história e teoria do cinema na Universidade Estadual de Campinas (SP), autor de "Cinema Marginal (1968-1973) - A Representação em Seu Limite" (ed. Brasiliense), Ramos fala, em entrevista à Folha, sobre a clonagem de padrões jornalísticos e dramatúrgicos da rede Globo pela Record e trata da representação popular no cinema e na TV.

FOLHA - Em seus estudos sobre a representação da alteridade social no documentário brasileiro, o sr. discute a "clivagem do popular" no cinema. Anuncia-se, com o crescimento de audiência da Record, um horizonte de "clivagem do popular" também no cenário televisivo?
FERNÃO PESSOA RAMOS
- Apesar de não ser um crítico de TV, acho que a Record, até onde eu estou acompanhando, está tentando galgar o posto da Globo com uma proposta explícita de clonagem. É o caso, por exemplo, do "Jornal da Record", que é muito parecido com o "Jornal Nacional".
As novelas também são muito similares: a cenografia é muito parecida, ambas as emissoras fazem uso da iluminação de três pontos, que dá um outro realce às imagens; a fotografia também é muito parecida. Na realidade, A Record está em busca de um padrão Globo de qualidade, criando um padrão Record de qualidade que é quase igual ao da concorrente. Creio que se trata efetivamente de um grupo forte, que tem dinheiro da igreja [Universal do Reino de Deus] e que está bancando a Globo, mas indo no mesma direção.
A diferença em que se pode pensar talvez esteja no fato de que é gerida por uma igreja neopentecostal, mas esse lado está um pouco em recuo. Irá transmitir a missa do papa Bento 16 [durante sua visita ao Brasil, em maio próximo] etc., mas alguns elementos em relação aos quais havia um certo receio, logo no início da Record, quando a identificação com a Igreja Universal era muito forte [o bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, é dono da Record desde 1990], hoje já não são mais motivo de receio, como nas novelas, por exemplo.
A dramaturgia televisiva brasileira é extremamente erotizada. Tanto a dramaturgia quanto a publicidade. Em relação a esse aspecto, em uma igreja neopentecostal, de um protestantismo exacerbado, deveria haver uma certa censura em seguir a Globo. O corte erotizado marca muito as novelas. Você tem, por exemplo, novelas em que os atores passam capítulos inteiros sem camisa, o que é completamente inverossímil. O cenário predileto é a cama. As pessoas estão sempre se beijando, e isso às 19h, às 20h. Não entrarei em considerações do que deve ou não deve ser censurado; estou só constatando.

FOLHA - Então o sr. diria que essa mudança não chega a interferir na constituição do imaginário do "povo" brasileiro?
RAMOS
- Acho que não, mas gostaria de apontar dentro desse recorte da representação criminalizada do popular -o popular sempre cercado de morte, de tragédia, de horror, marcado pelas condições de vida precárias etc.- que a Globo teve um momento ápice, que foi a veiculação de "Falcão - Os Meninos do Tráfico", de MV Bill e do Celso Athayde.
Existiu esse momento um pouco paradigmático da representação do horror ou do popular criminalizado na mídia brasileira: a veiculação do "Falcão" no programa dominical da família brasileira, que é o "Fantástico", foi bem significativa. Vejo três fatores aí. Primeiro, a exibição de um documentário, com um tipo de imagem que foi montada dentro do padrão global, inserido dentro do "Fantástico", anunciado por uma apresentadora da rede Globo, que é a Glória Maria. Ele vem toda edulcorada pelo padrão global, mas as imagens não são da Globo.
As imagens são de um rapper que nasceu na favela e um produtor que também vivenciou de dentro aquelas situações. Por outro lado, há a representação do popular na dramaturgia da Globo, e cito como exemplos "Cidade dos Homens", a série feita a partir do filme "Cidade de Deus", e "Antônia", mais recentemente. "Cidade dos Homens", sobretudo, tem esse corte bem forte, da favela, do traficante, da miséria. Pode-se notar essa presença da imagem popular na televisão brasileira, o que, se não é algo inédito, ressurge como uma novidade em 2005-6.
O interessante é que, simultaneamente, a Record exibiu "A Turma do Gueto", que era um programa de dramaturgia mais clássica, um pouco mais primário, mas muito parecido com "Cidade dos Homens", e passava no mesmo horário.
Lembro-me de um episódio de "A Turna do Gueto" que mostrava um exterminador a favor do assassinato dos criminosos e uma professora ligada a uma ONG com a qual discutia -algo bem mais explícito do que o "Cidade dos Homens", com um estilo sanguinolento.
Já a série da Globo foi produzida pela O2, que é um pouco a vanguarda na produção audiovisual brasileira, vanguarda no bom ou no mau sentido. Mas, enfim, com um vínculo muito grande com a propaganda, toda a evolução tecnológica à disposição e todo o padrão global atrás, e com a dramaturgia do Guel Arraes etc.
E o terceiro ponto se refere a "Central da Periferia", que é a exaltação do popular; foi um programa lançado com o manifesto de um antropólogo -nunca vi isso-, Hermano Vianna, enfatizando a necessidade de mostrar o popular.
E a série toda, que depois se transforma em bloco do "Fantástico", tem no horizonte trabalhar de maneira positiva com o universo do popular, e como se o retratasse como ele é.

FOLHA - Mas que na verdade é um mito de transparência, não?
RAMOS
- Lógico, até pela presença da apresentadora Regina Casé, que provoca uma alteração na realidade da favela. Mas o discurso por trás é esse. Sente-se que a exibição de "Falcão" foi algo bem marcante dentro da produção global, algo assim como um acertar de contas.
Isso é muito forte no Rio de Janeiro, porque lá se vive a miséria da favela na próxima esquina. O Rio também viveu o episódio envolvendo o jornalista Tim Lopes, que foi executado no morro [em junho de 2002, no complexo do Alemão]. Esse foi um paradigma do horror para a Globo.

FOLHA - Entre esses exemplos de aproximação do popular pela dramaturgia, e considerando também a novela "Vidas Opostas", que busca retratar o tráfico e a violência com verossimilhança, ocorre a experiência de culpabilização do espectador de que o sr. trata em seu artigo?
RAMOS
- Do popular e também de uma certa imagem intensa. Em "Páginas da Vida" [que acabou em 2/3], ao final de cada capítulo havia uns trechinhos de documentário, de depoimentos, nessa mesma linha "a vida como ela é" de "Vidas Opostas". Logo no início, me lembro que foi veiculado o depoimento de uma mulher que havia feito um aborto, e isso teve muita repercussão na mídia.
É um dado importante que ao final de uma novela carregada de ficção, de edulcoração da realidade -dentro de um esquema narrativo completamente distinto do documentário- haja um depoimento real.
Então, respondendo à sua pergunta, são narrativas muito distintas. Mas, em relação à postura do espectador, acho que há uma cisão, e isso se sente muito no cinema e também na televisão. Essa cisão se aplica aos dois porque essa representação do popular é feita por pessoas de classe média.
Existe hoje uma produção audiovisual comunitária, produções documentárias e ficcionais feitas pela própria população que mora em favelas e áreas precárias, e raramente a gente vê a representação do horror nesses filmes.

FOLHA - Então o "horror" está mais no olhar e na leitura que a classe média faz sobre a sociedade do que na própria sociedade?
RAMOS
- É porque existe uma clivagem: na realidade, está se falando sobre o outro, não sobre si mesmo. Não acho que seja uma representação pejorativa, não acho que seja uma representação preconceituosa, é simplesmente uma representação assustada, assustada com uma coisa que não se conhece e que produz essa leitura.
E isso corresponde, evidentemente, a uma sociedade que tem o pior nível de distribuição de renda do mundo. Então você fica isolado de um lado e o resto da população, que a gente denomina "povo", 80%, 85% ficam na outra ponta da balança.
Na TV caberia uma análise mais em detalhe para perceber as nuanças, de modo a não falar de generalidades e fazer as mediações necessárias, mas sinto que o corte é parecido.

FOLHA - A produção documental deve ser afetada com a popularização das mídias digitais? Como a facilidade de circulação de conteúdo documental na internet já repercute no campo da reflexão sobre o documentário no cinema?
RAMOS
- Eu acho que está emergindo, tanto na ficção como no documentário.
Em termos efetivos, não está tão embrionário assim, porque existem diversos grupos e depois isso se transforma até em formação profissional.
Mas, sinceramente, eu não vejo uma presença forte que venha daí e que marque a produção institucional, a grande produção.
Esta continua envolvendo grandes valores, e continua, portanto, na mão de quem tem dinheiro ou quem sabe se mover nos órgãos competentes para conseguir esse dinheiro, colocar em circuito, exibir em festivais.
São poucos os movimentos diferentes disso. A televisão envolve também grandes recursos, envolve também pressão, demanda da audiência. Respondendo a sua pergunta, existe, sim, um movimento forte de audiovisual que passa ao largo da classe média, mas ele não chega ainda a influenciar a grande produção.


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