São Paulo, domingo, 25 de junho de 2000


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+ memória
Celebrar o centenário de nascimento do educador baiano, que se comemora no próximo dia 12, significa lembrar o drama do ensino público brasileiro
Ano nacional Anísio Teixeira

Maria Lúcia Pallares-Burke
especial para a Folha

Por decreto do presidente Fernando Henrique Cardoso, o ano 2000 foi instituído como Ano Nacional Gilberto de Mello Freyre. Sem negar o mérito de uma iniciativa -sem dúvida inusitada- que visa a dar maior peso às homenagens prestadas ao intelectual pernambucano, é de lamentar, entretanto, que outra eminente figura da nossa história, o educador baiano Anísio Teixeira, não tenha sido alvo de semelhante atenção em seu centenário. Nascidos "quase juntos", como dizia Anísio (ele, em 12 de julho de 1900, e Freyre, em 15 de março do mesmo ano), e unidos por grande amizade e mútua admiração, é de imaginar que Freyre não teria se oposto a uma lei que estendesse a homenagem e decretasse o ano 2000 como o Ano Nacional Anísio Spínola Teixeira e Gilberto de Mello Freyre. Na verdade, além da idade e do afeto, muito mais os irmanava: a mesma origem na aristocracia rural nordestina, a mesma crise religiosa na mocidade, a importância decisiva, para a formação de ambos, da experiência vivida nos EUA e sobretudo na Universidade Columbia, onde encontram seus principais mentores (o filósofo John Dewey, no caso de Anísio, e o antropólogo Franz Boas, no de Freyre), o mesmo ideal regionalista, o mesmo interesse pela infância, a mesma visão de seus ofícios como sendo um misto de ciência e arte, e muito mais. Entre si, se referiam ao "nosso Nordeste" e à "nossa Columbia University". Anísio até falava em "nossos Centros", aludindo à colaboração de Freyre em uma das mais promissoras instituições educacionais que criou: os Centros Regionais de Pesquisas Educacionais, em que as ciências sociais se uniam para promover escolas que fossem ao mesmo tempo unas (em sua ambição democrática) e diversificadas (para atender às características regionais). E, quando em 1961, ao ouvir fortes boatos de que Jânio Quadros pensava em nomear Freyre seu ministro da Educação e Cultura, Anísio se mostra exultante com a perspectiva de tê-lo como companheiro da jornada educacional: é "too good to be true" (muito bom para ser verdade), comenta. Assim, na qualidade de amigo, confidente e colaborador de Anísio (nos anos 30, como professor da Universidade do Distrito Federal, fundada por Anísio, e nos anos 50-60, como diretor do Centro Regional de Pesquisas do Recife), provavelmente Freyre teria não só se regozijado com a homenagem ao amigo, mas também se sentido, no íntimo, celebrado no seu lado de educador. Sentimento, aliás, não de todo injustificado, considerando que, certa vez, ao falar sobre seus esforços de reconstrução da educação brasileira, Anísio, na sua típica generosidade, assim se confessara ao "querido Gilberto": "Muito da inspiração do que vimos procurando fazer vem do que aprendemos com você e com sua obra".

Teste dos centenários
O "grande teste dos centenários", disse uma vez Freyre muito acertadamente, é "mostrar até que ponto um indivíduo nascido há cem anos se revela nosso contemporâneo e não apenas nosso antepassado". Com toda uma vida devotada à educação pública e à incansável batalha por transformá-la em prioridade número um do Estado, Anísio tem, sem dúvida, as qualidades essenciais para passar nesse "teste" e dialogar com o presente. Por suas idéias e iniciativas em prol de uma causa pública sempre tão carente de servidores abnegados e de soluções de longo alcance, como é a educação brasileira, Anísio Teixeira se revela, como diria Freyre, menos um "morto ilustre" a ser louvado e muito mais um contemporâneo com quem a atualidade muito poderia ganhar, desde que se dispusesse a ouvi-lo.
É compreensível, no entanto, esse lapso do governo. Assim como a história está sempre reconstruindo o passado e redefinindo o que deve ser lembrado em razão de preocupações presentes, as comemorações também "escrevem" a história, distinguindo o que, no momento, vale a pena ser lembrado ou esquecido. E, se agora se tornou confortável e positivo celebrar Gilberto Freyre, já que sua interpretação da cultura brasileira -hoje sobeja e, às vezes, acriticamente reabilitada- faz bem à auto-imagem nacional, o mesmo não se dá no caso de Anísio Teixeira. Celebrá-lo com as devidas honras significaria, na verdade, lembrar aquilo que os ingleses chamam de "skeleton in the closet", ou seja, daquilo que nos envergonha e que gostaríamos de esquecer: o triste drama da nossa educação pública.

Esforços educacionais
Porque é impossível comemorar o centenário de Anísio sem trazer à tona todo um passado de efetivos esforços de "elevar a educação à categoria de maior problema político brasileiro" e de palpáveis realizações (tanto nos âmbitos estadual quanto federal) em favor de um sistema de ensino público democrático; realizações e esforços que ou foram sistematicamente combatidos e solapados, ou se perderam nas idas e vindas da vida pública nacional, devido ao gosto das autoridades pelo êxito imediato e pelas meias soluções. Como diria o próprio Anísio num de seus poucos momentos de desalento, neste país "tudo nasce, mas não pega". Em seu caso, o solapamento de suas realizações vieram quase sempre acompanhadas das acusações de ser ele subversivo, anticlerical, comunista ou, no mínimo, visionário e irrealista. Dentre as muitas realizações do educador baiano ao longo de uma vida dedicada à defesa e implantação de um sistema de educação pública, universal e gratuita -sem o que a democracia seria, como apontava, uma "mistificação inominável"-, rememoremos nessa oportunidade, ainda que brevemente, a instituição que foi divulgada pelas Nações Unidas como modelo de educação básica a ser imitada pelo mundo afora: o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, mais conhecido como Escola-Parque. Idealizado por Anísio Teixeira no final dos anos 40, quando era secretário de Educação do Estado da Bahia, esse centro buscava dar uma resposta definitiva ao problema da escola primária, que ele considerava ser a mais complexa, difícil e fundamental das escolas numa sociedade que, não obstante ser profundamente estratificada e desigual, se pretendia democrática. Inaugurado parcialmente em setembro de 1950 num dos bairros mais pobres de Salvador, esse centro -que deveria ser o primeiro de muitos outros- era oferecido como modelo a ser seguido por todo o país e como parâmetro de uma política educacional consequente. Nele se consolidava uma das idéias pelas quais Anísio vinha se batendo desde a década de 20: a de que a escola primária democrática é "por excelência formadora" e, por conseguinte, exige "currículo completo e dia letivo integral". A expansão de escolas de tempo parcial não voltadas à formação integral dos alunos era considerada um mero paliativo, já que as impossibilitava de contribuir para a promoção da justiça social que a verdadeira democracia (que é muito mais do que um sistema de governo) exige. A característica fundamental dessa escola era sua divisão em dois setores, um dedicado à instrução e outro à educação. No primeiro, chamado "escolas-classe", seriam ministradas as aulas de letras, aritmética e ciências físicas e sociais; e, no segundo, chamado de "escola-parque", seriam desenvolvidas atividades socializantes, de trabalho, de educação física e de arte, todas elas abrigadas em pavilhões especialmente construídos para suas funções. Em regime de semi-internato, os alunos frequentariam num turno a "escola-classe" e, no outro, a "escola-parque", praticando ao longo de seis anos aquilo que deveriam ser, no futuro, na comunidade adulta: "O estudioso, o operário, o artista, o esportista, o cidadão enfim, útil, inteligente, responsável...".

Universidade infantil
Para completar essa "pequenina universidade infantil", haveria acomodações para 5% de crianças em regime de internato -seriam as que, sendo propriamente abandonadas, sem pai nem mãe, deveriam passar "a ser não as hóspedes infelizes de tristes orfanatos, mas as residentes da escola-parque...". A justificativa para um empreendimento ambicioso e caro como esse era clara, contundente e dolorosamente atual: vivemos numa sociedade em via de desagregação, sacudida por rápidas transformações e "em que se encontram ingredientes tão incendiáveis, como o das nossas desigualdades e iniquidades sociais".
Diante disso, ou aceitamos a inevitabilidade dessa desagregação ou acreditamos que a educação se confunde com "a batalha da paz", já que pode contribuir significativamente para remediar a crise em que vivemos. Se a educação integral proposta parece "luxuosamente cara" e "desmedida", é porque a "sobrevivência democrática" exige um "sistema educativo forte e eficaz" que, além de instruir, "eduque, forme hábitos, forme atitudes, cultive aspirações..." -o que só é viável numa escola de tempo integral. E, se tal ensino é custoso e caro, é "porque são custosos e caros os objetivos a que visa. Não se pode fazer educação barata, assim como não se pode fazer guerra barata". E, aos que criticavam seu ideal como "estapafúrdio e visionário", Anísio alertava: "O problema da educação é, por excelência, o problema de ordem e de paz no país".
A fundação desse centro educacional demonstrou que dependia do espírito público e da vontade política dos governantes fazer da educação a questão prioritária do Estado. Na Bahia dos anos 50, o governo de Otávio Mangabeira fora um "governo notável", diria Anísio, "pelo que fez e realizou de palpável e concreto, mas sobretudo excepcional pelo que realizou de invisível: a justiça, a liberdade e a confiança". Com determinação e seriedade, Mangabeira transformara os chamados "sonhos estapafúrdios" de um educador "visionário" em realidades palpáveis, porque decidira dar "prioridade número um para a educação".
A violência e desagregação social assustadoras de nossa realidade estão aqui a nos mostrar, de modo flagrante, que a escola de que o Brasil necessitava em 1950 é a mesma de que necessita agora, meio século mais tarde. Escutemos, pois, Anísio Teixeira novamente, mas com redobrada atenção!


Maria Lúcia Pallares-Burke é professora de história da educação na Faculdade de Educação da USP e autora, entre outros, de "The Spectator - O Teatro das Luzes - Diálogo e Imprensa no Século 18" (Hucitec).


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