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O estigma e o valor
Teórico político ligado aos nazistas,
Carl Schmitt
tem seus conceitos repensados
em estudo
LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA
Com "O Risco do Político" (UFMG/Iuperj), de Bernardo
Ferreira, ao leitor se
oferece um grande
tema e um livro raro. A excepcionalidade de ambos é paralela a seu risco: o autor que "O
Risco" examina fora nazista.
Mas o estigma que veio a segui-lo tem cedido à qualidade de
sua obra. Prova-o a tradução de
seus livros, a partir da década
de 1970.
Essa qualidade ainda enfrentou outro teste: o comovente
testemunho de Jacob Taubes,
um judeu-alemão, que, ao emigrar, enriqueceu a universidade norte-americana. Sobretudo em sua última obra, "A Teologia Política de Paulo", o historiador da religião ressalta sua
admiração intelectual por Carl
Schmitt (1888-1985), sem, por
isso, esconder o horror por sua
adesão: "Não me sai da cabeça
o fato de que as duas figuras
mais significativas e inteligentes, o filósofo Martin Heidegger e o especialista em direito
público C. Schmitt, tenham por
longo tempo, flertado com o
nazismo".
Contra o consenso
É ainda Taubes quem oferece
a melhor explicação para a opção dos dois: advindos de famílias católicas pobres, defrontavam-se com "o consenso liberal
protestante-judaico da universidade alemã, de que [o filósofo
alemão] Ernst Cassirer era um
representante elegante e perfumado (...). Eram pessoas guiadas pelo ressentimento, mas
que, com o gênio do ressentimento, releram as fontes de
maneira nova".
A mesma admiração e seriedade já apareciam em carta sua
de 1952, a propósito da pequena coletânea de textos escritos
enquanto Schmitt estivera preso, "Ex Captivitate Salus"
(1950). Censura-o pela "pouca
confissão de culpa (e as) desculpas esfarrapadas", mas reconhece "nunca haver lido de alguém de nossa geração um relato tão íntimo, tão nobre e
também mais verdadeiro (...)".
Isso para não falar do que
precisaria ser de fato examinado: com seu último livro, Taubes aprofundava historicamente o tema da teologia política,
que Schmitt tratara na "Teologia Política - Quatro Capítulos
sobre a Teoria da Soberania",
de 1922.
Mas o espaço é curto, e "O
Risco do Político", precioso.
Nele, Bernardo Ferreira começa por declarar que se concentrará na obra que Schmitt escreveu entre 1919 e 1933.
Embora se justifique que assim o faça, é desejável que um
dia retorne ao "Ex Captivitate",
ao menos a seu capítulo sobre
Tocqueville e a seu prolongamento no "Glossarium" (1991),
onde esboça conceito em que
intérpretes recentes, como
Günter Meuler, têm encontrado o sêmen de seu pensamento:
o "katechon", o obstáculo, o
que resiste.
Fundado na "Epístola aos
Tessalonienses" (2,2,7), de
Paulo, o "katechon" seria a figura historicamente situada e
diversificada que resistiria à
onda do tempo, que retardaria
a ação do anticristo; o centro,
pois, de que deriva, para
Schmitt, a oposição entre amigo e inimigo, em que se assenta
o político.
O conceito começara a ser
elaborado em 1932. Ainda que,
no "Glossarium", seu uso não
escape da tentativa de autojustificação do autor, ao que chama sua "resistência por colaboração", sua defesa não é de todo
arbitrária.
Assinalo tão-só um fato: sabe-se hoje que seu artigo de 1º/
8/1934, "O Führer Protege o
Direito", que justificava o massacre dos nazistas da SA (30/6,
1º/7 e 2/7), não impediria que o
próprio autor fosse eliminado
-o que só não sucedeu por interferência de Goering. Mas essas são águas demasiado turvas. É preferível vir ao que Bernardo Ferreira escreve.
Política antiliberal
A teoria schmittiana do político e do direito que a ela responde é explicitamente antiliberal e contra sua máxima instituição, o parlamentarismo.
Como Bernardo Ferreira nota, a oposição de Schmitt ao liberalismo decorria de que, concentrando-se nos direitos do
indivíduo, enfraquecia o Estado e, então, se fragilizava a si
mesmo. Nascido da luta contra
a monarquia absoluta, o regime
liberal teve forças enquanto o
inimigo subsistiu.
O parlamentarismo situa-se
entre o ocaso do absolutismo e
a ascensão da massa não-proprietária e não-cultivada. "A
perda da efetividade histórica
da ordem parlamentar se deveria à impossibilidade de sustentar a posição intermediária da
burguesia liberal e ao fato de
que a sua metafísica do compromisso "não está à altura de
uma época de lutas sociais"."
Em conseqüência, a democracia liberal posterga as decisões, em favor de acordos e negociações, pelos quais os grupos particulares defendem seus
interesses, em nome sempre do
progresso. A solução liberal supõe não só o realce do indivíduo
como a presença do racionalismo iluminista. De acordo com a
prática das ciências da natureza, a razão era pensada como o
que estabelece enunciados de
aplicação geral, que excluem a
exceção (sendo o milagre seu
correspondente religioso).
A "conversação interminável" excluía então, do jurídico e
da ordem estatal, a consideração do excepcional.
O presidente soberano
Desse modo, o liberalismo
pode funcionar nas situações
de normalidade, e sua manutenção depende do aperfeiçoamento da técnica. Ora, em anotação de 4/10/1950, Schmitt dirá que a técnica é uma potência
tão totalitária quanto a teologia. "A teologia é necessariamente totalitária pela substância, pelo resultado; a técnica é
totalitária pelo método, pela
função". Por isso, enquanto o
Estado se enfraquece, fortalecem-se os grupos econômicos
que comandam a técnica.
Era pensando na crise da República de Weimar que Schmitt
propunha o Estado forte, em
que o presidente assumiria a
função do soberano, como este
era definido na primeira linha
da teologia política (1922): "Soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção".
O presidente é um soberano
dessacralizado. Só assim o Estado seria capaz "de dar forma à
desordem", tendendo pois, como ainda dirá Bernardo Ferreira, "a hipostasiar o próprio conceito de exceção". Só pela legitimação do estado de exceção e
pela homogeneidade do povo
-o calcanhar-de-aquiles da
teoria de Schmitt- o Estado estaria em condições de enfrentar os conflitos de uma sociedade de massa.
Na impossibilidade de ir
adiante, apenas acrescento: (a)
a teoria de Schmitt é vazada em
termos ambíguos. Seu Estado
forte, que fora proposto contra
comunistas e nazistas, terminou por servir a seu compromisso com o nacional-socialismo; (b) já sucedera com outro
pensador, que morrera antes
de ele nascer: sua crítica ao liberalismo era incisiva e procedente, mas a solução proposta
por ambos naufragou. É no hiato entre a crítica e a solução que
continuamos a viver.
LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor da Universidade do Estado do RJ e da Pontifícia Universidade Católica (RJ). Está lançando "História, Ficção, Literatura" (Cia. das Letras).
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