São Paulo, domingo, 25 de junho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ autores

O estigma e o valor

Teórico político ligado aos nazistas, Carl Schmitt tem seus conceitos repensados em estudo

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Com "O Risco do Político" (UFMG/Iuperj), de Bernardo Ferreira, ao leitor se oferece um grande tema e um livro raro. A excepcionalidade de ambos é paralela a seu risco: o autor que "O Risco" examina fora nazista. Mas o estigma que veio a segui-lo tem cedido à qualidade de sua obra. Prova-o a tradução de seus livros, a partir da década de 1970. Essa qualidade ainda enfrentou outro teste: o comovente testemunho de Jacob Taubes, um judeu-alemão, que, ao emigrar, enriqueceu a universidade norte-americana. Sobretudo em sua última obra, "A Teologia Política de Paulo", o historiador da religião ressalta sua admiração intelectual por Carl Schmitt (1888-1985), sem, por isso, esconder o horror por sua adesão: "Não me sai da cabeça o fato de que as duas figuras mais significativas e inteligentes, o filósofo Martin Heidegger e o especialista em direito público C. Schmitt, tenham por longo tempo, flertado com o nazismo".

Contra o consenso
É ainda Taubes quem oferece a melhor explicação para a opção dos dois: advindos de famílias católicas pobres, defrontavam-se com "o consenso liberal protestante-judaico da universidade alemã, de que [o filósofo alemão] Ernst Cassirer era um representante elegante e perfumado (...). Eram pessoas guiadas pelo ressentimento, mas que, com o gênio do ressentimento, releram as fontes de maneira nova". A mesma admiração e seriedade já apareciam em carta sua de 1952, a propósito da pequena coletânea de textos escritos enquanto Schmitt estivera preso, "Ex Captivitate Salus" (1950). Censura-o pela "pouca confissão de culpa (e as) desculpas esfarrapadas", mas reconhece "nunca haver lido de alguém de nossa geração um relato tão íntimo, tão nobre e também mais verdadeiro (...)". Isso para não falar do que precisaria ser de fato examinado: com seu último livro, Taubes aprofundava historicamente o tema da teologia política, que Schmitt tratara na "Teologia Política - Quatro Capítulos sobre a Teoria da Soberania", de 1922. Mas o espaço é curto, e "O Risco do Político", precioso. Nele, Bernardo Ferreira começa por declarar que se concentrará na obra que Schmitt escreveu entre 1919 e 1933. Embora se justifique que assim o faça, é desejável que um dia retorne ao "Ex Captivitate", ao menos a seu capítulo sobre Tocqueville e a seu prolongamento no "Glossarium" (1991), onde esboça conceito em que intérpretes recentes, como Günter Meuler, têm encontrado o sêmen de seu pensamento: o "katechon", o obstáculo, o que resiste. Fundado na "Epístola aos Tessalonienses" (2,2,7), de Paulo, o "katechon" seria a figura historicamente situada e diversificada que resistiria à onda do tempo, que retardaria a ação do anticristo; o centro, pois, de que deriva, para Schmitt, a oposição entre amigo e inimigo, em que se assenta o político. O conceito começara a ser elaborado em 1932. Ainda que, no "Glossarium", seu uso não escape da tentativa de autojustificação do autor, ao que chama sua "resistência por colaboração", sua defesa não é de todo arbitrária. Assinalo tão-só um fato: sabe-se hoje que seu artigo de 1º/ 8/1934, "O Führer Protege o Direito", que justificava o massacre dos nazistas da SA (30/6, 1º/7 e 2/7), não impediria que o próprio autor fosse eliminado -o que só não sucedeu por interferência de Goering. Mas essas são águas demasiado turvas. É preferível vir ao que Bernardo Ferreira escreve.

Política antiliberal
A teoria schmittiana do político e do direito que a ela responde é explicitamente antiliberal e contra sua máxima instituição, o parlamentarismo. Como Bernardo Ferreira nota, a oposição de Schmitt ao liberalismo decorria de que, concentrando-se nos direitos do indivíduo, enfraquecia o Estado e, então, se fragilizava a si mesmo. Nascido da luta contra a monarquia absoluta, o regime liberal teve forças enquanto o inimigo subsistiu. O parlamentarismo situa-se entre o ocaso do absolutismo e a ascensão da massa não-proprietária e não-cultivada. "A perda da efetividade histórica da ordem parlamentar se deveria à impossibilidade de sustentar a posição intermediária da burguesia liberal e ao fato de que a sua metafísica do compromisso "não está à altura de uma época de lutas sociais"." Em conseqüência, a democracia liberal posterga as decisões, em favor de acordos e negociações, pelos quais os grupos particulares defendem seus interesses, em nome sempre do progresso. A solução liberal supõe não só o realce do indivíduo como a presença do racionalismo iluminista. De acordo com a prática das ciências da natureza, a razão era pensada como o que estabelece enunciados de aplicação geral, que excluem a exceção (sendo o milagre seu correspondente religioso). A "conversação interminável" excluía então, do jurídico e da ordem estatal, a consideração do excepcional.

O presidente soberano
Desse modo, o liberalismo pode funcionar nas situações de normalidade, e sua manutenção depende do aperfeiçoamento da técnica. Ora, em anotação de 4/10/1950, Schmitt dirá que a técnica é uma potência tão totalitária quanto a teologia. "A teologia é necessariamente totalitária pela substância, pelo resultado; a técnica é totalitária pelo método, pela função". Por isso, enquanto o Estado se enfraquece, fortalecem-se os grupos econômicos que comandam a técnica. Era pensando na crise da República de Weimar que Schmitt propunha o Estado forte, em que o presidente assumiria a função do soberano, como este era definido na primeira linha da teologia política (1922): "Soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção". O presidente é um soberano dessacralizado. Só assim o Estado seria capaz "de dar forma à desordem", tendendo pois, como ainda dirá Bernardo Ferreira, "a hipostasiar o próprio conceito de exceção". Só pela legitimação do estado de exceção e pela homogeneidade do povo -o calcanhar-de-aquiles da teoria de Schmitt- o Estado estaria em condições de enfrentar os conflitos de uma sociedade de massa. Na impossibilidade de ir adiante, apenas acrescento: (a) a teoria de Schmitt é vazada em termos ambíguos. Seu Estado forte, que fora proposto contra comunistas e nazistas, terminou por servir a seu compromisso com o nacional-socialismo; (b) já sucedera com outro pensador, que morrera antes de ele nascer: sua crítica ao liberalismo era incisiva e procedente, mas a solução proposta por ambos naufragou. É no hiato entre a crítica e a solução que continuamos a viver.


LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor da Universidade do Estado do RJ e da Pontifícia Universidade Católica (RJ). Está lançando "História, Ficção, Literatura" (Cia. das Letras).


Texto Anterior: Sonho, infância e libido opuseram Jung e Freud
Próximo Texto: + livros: O eterno retorno
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.