São Paulo, domingo, 25 de junho de 2006

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Conversa

Em nova obra, Silviano Santiago reúne ensaios sobre Clarice Lispector, Oswald de Andrade e Lévi-Strauss

JOHN GLEDSON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Esta coletânea variada de ensaios publicados nos últimos 15 anos, muitos bastante recentes, trata sobretudo, embora não exclusivamente, de assuntos literários brasileiros. Vão desde uma substanciosa introdução à poesia de Carlos Drummond de Andrade, escrita para a edição de sua "Poesia Completa", a introduções curtas a romances como "Iracema" ou "Enquanto Agonizo", de Faulkner, publicadas originariamente neste jornal. O título do livro, tomado de um ensaio sobre as cartas de Mário de Andrade, o maior exemplo de "puxar conversa" da literatura brasileira, dá uma idéia da atitude que caracteriza muitos dos ensaios -um desejo de atrair o leitor para a exploração dos textos analisados. Isso não significa que os ensaios sejam necessariamente de fácil leitura; mas, quando exigem esforço e paciência, sempre compensam. Melhor que ler o livro de capa a capa é ler os ensaios sobre Oswald de Andrade, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Nabokov, Pero Vaz Caminha, Monteiro Lobato, Lévi-Strauss, Elizabeth Bishop, Manuel Puig e outros independentemente; sempre iluminam os assuntos sob discussão e sempre dão vontade de continuar a conversa.

Sem parti pris
Não há parti pris, a não ser o da literatura em si -se Silviano argumenta (com razão) que as referências históricas em "Um Moço Muito Branco", história de "Tutaméia", de Guimarães Rosa, são mais para despistar do que para fornecer a chave da interpretação, isso não o impede de interessar-se por textos que nem são "literatura", como as cartas de Drummond e Mário, ou pelo contexto ideológico dos ensaios de Oswald, em "Ponta de Lança", ou a tolerância racial do mesmo, exemplificada numa frase de uma entrevista dada, em 1942, à revista "Diretrizes": "[O Brasil] precisa amulatar-se". Com tanta variedade e pouco espaço, vamos escolher dois dos ensaios mais substanciosos e longos. Um sobre Clarice, que é, em certo sentido, uma análise literária tradicional. Outro sobre "Tristes Trópicos", cujo âmbito é mais ideológico e histórico-geográfico, digamos. Veremos que, apesar da distância que os separa, têm aspectos em comum, até na sua própria estrutura. O ensaio sobre Clarice trata só de textos curtos, de uma carta de Lúcio Cardoso a "Seco Estudo de Cavalos", extraordinária peça curta de "Onde Estivestes de Noite", além de trechos de crônicas sobre animais (uma sobre um filhote de baleia encalhado na praia do Leme).

Amor e ódio
Termina com um dos contos mais chocantes e misteriosos da autora, onde amor e ódio parecem inseparáveis, "O Búfalo", última peça de "Laços de Família". Santiago nos leva, como indica o título do ensaio, ao longo de um "bestiário" e mostra a função que desempenham esses vários animais no mundo imaginário de Clarice. Mas isso não se pode fazer mecanicamente -sobretudo não podemos separar essas figuras de conceitos mais abstratos -como "solidão", "liberdade", "felicidade", "medo" ou "gozo"- ou das idéias iluminadoras de pensadores como Hobbes ou Barthes ou do evolucionismo darwiniano. O resultado é um ensaio que deve ser lido e relido -como diz Santiago na última nota, ele "espera que a estratégia de leitura [....] tenha ficado clara". Com uma autora da "densidade autobiográfica" de Clarice (e, podemos acrescentar, em que os desníveis entre linguagem concreta e abstrata são tão grandes e contínuos), esse tipo de análise cuidadosa se faz imperativa. Diz Santiago que "sobram sugestões, faltam pesquisa e análise" -como noutras áreas da literatura brasileira, poderíamos acrescentar. Mas podia ter dito também que, sem as sugestões e a abertura e delicadeza de ensaios como este, sobram pesquisa e análise. A hibridez de "Tristes Trópicos", livro de viagens factual, especulativo e filosófico, atrai Santiago, nessa como noutras esferas -este ensaio vai fazer parte de um díptico, com outro sobre a viagem de Antonin Artaud ao México, assunto de um dos romances do autor, "Viagem ao México" (1995). Deleita-se com alguns dos paradoxos do livro -as palavras de abertura do capítulo sobre São Paulo, por exemplo, em que Lévi-Strauss cita um "espírito malicioso", que define a América como "uma terra que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização". Num paralelo brilhante, Santiago nos leva ao paradoxo de Zenão, na versão formulada por Borges e reinterpretado por ele, de Aquiles (o Novo Mundo) que não consegue ultrapassar a tartaruga (a Europa); a insistência estranha -perversa?- de que a cidade de Nova York não encontra sua medida nos homens que a construíram (como as cidades européias), mas numa paisagem, "um objeto cultural (re)construído pelos princípios da natureza".

O espaço "entre"
Quando nos deslocamos para a relação de Lévi-Strauss com pensadores como Derrida, Lévinas ou até Rousseau e Voltaire, continua sendo difícil definir posições e oposições. O escritor -preso numa viagem que talvez fosse simples produto do acaso, de um telefonema oferecendo-lhe um posto na incipiente Universidade de São Paulo, cidade supostamente rodeada de aldeias índias onde o etnógrafo encontraria farto material para as suas pesquisas- acaba ficando, como diz Santiago, "num espaço entre", "aquém do pensamento e além da sociedade" -espaço, poderíamos acrescentar, que Clarice habita do seu jeito. São essas áreas difíceis e instáveis em que os ensaios mais ambiciosos deste livro nos convidam a instalar-nos, a sentar, ler com cuidado e continuar a conversa.


JOHN GLEDSON é professor aposentado da Universidade de Liverpool (Inglaterra) e autor de "Machado de Assis - Ficção e História" (ed. Paz e Terra), entre outros.
ORA (DIREIS) PUXAR CONVERSA!
Autor: Silviano Santiago Editora: UFMG (tel. 0/xx/31/3499-4657) Quanto: R$ 57 (376 págs.)
NA INTERNET - Leia trecho www.folha.com.br/061735


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