São Paulo, domingo, 25 de junho de 2006

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Aventuras da história

Pensador francês central no século 20, Merleau-Ponty tem três obras publicadas no Brasil

BENTO PRADO JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Após a publicação das traduções de "O Visível e o Invisível" e de "A Fenomenologia da Percepção", o leitor brasileiro tem agora acesso direto a três novos livros de Merleau-Ponty: "A Estrutura do Comportamento" (1942), "As Aventuras da Dialética" (1955) e "Psicologia e Pedagogia da Criança" (aulas de 1949-1952, publicadas apenas em 2001). Sem dispormos ainda da totalidade da obra de um dos maiores filósofos franceses do século 20, ao lado de Bergson e de Sartre, já temos à mão uma importante parte dela, muito mais do que o suficiente para nos introduzirmos nesse pensamento cuja originalidade e cujo excepcional alcance são cada vez mais visíveis, a despeito das brumas que obscurecem, com a crescente escolarização da filosofia, o debate contemporâneo. Os três livros agora traduzidos marcam o início de seu itinerário filosófico e a "virada" que, no início da década de 50, o levaria a uma reformulação dos conceitos de natureza e de história e a uma nova concepção da "ontologia" -que podemos vislumbrar em sua última obra, inacabada em razão de sua morte precoce: "O Visível e o Invisível".

Novos instrumentos
De um lado, em "Psicologia e Pedagogia da Criança", Merleau-Ponty retoma a reflexão de "A Estrutura do Comportamento", sua primeira obra -que apontava para uma saída fenomenológica para a oscilação da psicologia entre o criticismo e o naturalismo-, lançando mão de novos instrumentos (como o do "estruturalismo" a contrapelo de sua versão "ideológica" que se impunha então na França). Sua interpretação da fenomenologia começava a afastar-se do estilo de uma "filosofia da consciência", permitindo-lhe a descoberta dos "intermundos" que não remetem ao sujeito ou ao objeto, mas ao "quiasma" que precede essa oposição. No fundo, e contra Heidegger, o "télos" do pensamento de Merleau-Ponty se encontra na idéia de uma ontologia "negativa", em que o ser só pode ser dito por um "lógos indireto" e em que a "physis" (recorrendo à idéia de natureza de Whitehead) não se opõe à subjetividade como objeto puro. O outro lado dessa metamorfose da idéia de natureza se mostra em "As Aventuras da Dialética", em que Merleau-Ponty desfaz os equívocos opostos e simétricos da reflexão dominante sobre a política e a história. Nosso ponto de partida não mais é a aparente tensão entre criticismo e naturalismo e a surpreendente cumplicidade que os une: parte-se aqui do fundo comum (a ser demolido) partilhado pelo "ultrabolchevismo" de Sartre e o "liberalismo" de Alain e Max Weber. Em livro anterior, "Humanismo e Terror", Merleau-Ponty ainda guardava uma concepção dialético-positiva da história, que lhe permitia justificar o argumento da "culpabilidade objetiva" das vítimas dos processos de Moscou. É bem essa "política da razão", já atacada por Alain, que é o alvo principal das "Aventuras da Dialética" -ou seja, uma política que supõe transparência perfeita do processo histórico, animado por uma teleologia que dissolve todas as ambigüidades da experiência e do juízo político. Mas tal crítica não o coloca na posição de Alain ou de Weber: não é por abandonar a dialética da razão que somos obrigados a optar pela tópica do entendimento ou pela clara oposição entre convicção e responsabilidade ou entre escolha livre e análise "científico-objetiva" da situação histórica.

Natureza e história
Aliás, ambos os lados, natureza e história, estão mais ligados do que parece. Logo no início do primeiro capítulo de "As Aventuras da Dialética", Merleau-Ponty mostra como, com Weber, nossas relações com a história permaneceriam, sem refazermos a filosofia, idênticas a nossas relações com a natureza: com efeito, a idéia dos "tipos ideais" não nos coloca num terreno diferente daquele da bipartição diltheyana entre "erklären" (explicar) e "verstehen" (compreender) e do "criticismo" que a subtende. "Criticismo" também subjacente ao "melhor marxismo" do século 20 -também impregnado de Weber- de que é necessário que nos desvencilhemos. Meio século depois de sua publicação, "As Aventuras da Dialética" não manteve apenas uma surpreendente atualidade; mais que isso, mostra como antecipava, "independentemente da consciência do autor", o núcleo oculto do debate contemporâneo sobre filosofia e política. Não porque, afastando-se do seu anterior "marxismo de espera", decrete o fim da oposição entre esquerda e direita, antecipando a vulgaridade da ideologia dos dias de hoje. Pelo contrário, continua a reservar seu lugar à "negatividade", sem a qual nos tornaríamos irresponsáveis conservadores. O essencial do livro, tanto no nível da política como no da filosofia, reside na sua antecipação do fim do stalinismo e na necessidade de repensar a esquerda, para mantê-la viva. Para fazê-lo, parece não haver outro caminho senão repensar as idéias de natureza e de história, colocando-as para além das alternativas do idealismo e do naturalismo assim como dos pragmatismos simétricos do neoliberalismo e do pseudo-revolucionarismo, num passo indispensável à retomada da ação crítica.


BENTO PRADO JR. é professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos (SP) e professor emérito da USP. É autor de "Alguns Ensaios" (ed. Paz e Terra), entre outros livros.
A ESTRUTURA DO COMPORTAMENTO
Autor: Maurice Merleau-Ponty Tradução: Márcia Valéria Martinez de Aguiar Editora: Martins Fontes Quanto: R$ 42,50 (376 págs.)
AS AVENTURAS DA DIALÉTICA
Autor: Maurice Merleau-Ponty Tradução: Claudia Berliner Editora: Martins Fontes Quanto: R$ 42,50 (322 págs.)
PSICOLOGIA E PEDAGOGIA DA CRIANÇA
Autor: Maurice Merleau-Ponty Tradução: Ivone C. Benedetti Editora: Martins Fontes Quanto: R$ 64 (584 págs.)


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