São Paulo, domingo, 25 de outubro de 1998

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A religiosa e poeta Juana Inés de la Cruz é tema de biografia escrita por Octavio Paz
Máquina do universo do

ELIANE ROBERT MORAES
especial para a Folha

Ao longo de sua história, os muros monacais abrigaram as mais distintas vocações. O modo de vida conventual não serviu apenas aos espíritos de elevado ideal religioso, mas favoreceu outras inclinações que, movidas por ambições profanas, foram igualmente seduzidas pelo rigor do silêncio e da clausura. De retiro dos místicos na Idade Média a refúgio dos libertinos na Idade Moderna, os conventos acumularam diversas funções, entre elas a de ter sido durante séculos um abrigo privilegiado da literatura.
Não foram poucos os que professaram a vocação literária no interior dos mosteiros. Os exemplos mais conhecidos são o de Santa Teresa D'Ávila e o de San Juan de la Cruz, que nos legaram notáveis meditações espirituais e poemas religiosos. Se o nome de sóror Juana Inés de la Cruz merece estar nessa lista pela excelência de sua obra, convém lembrar uma diferença significativa entre ela e essas grandes figuras místicas: foi a paixão pelas letras profanas, e não o desejo de união com Deus, que a levou ao abrigo do claustro.
Essa paixão é o centro luminoso da biografia que Octavio Paz dedicou à poeta mexicana, agora publicada no Brasil em excelente tradução de Wladir Dupont. O texto de Paz alcança um raro equilíbrio entre as diferentes matérias que compõem um ensaio ao mesmo tempo histórico, biográfico e crítico. De um lado, fornece informações preciosas sobre a complexa sociedade da Nova Espanha, propondo-lhe interpretações instigantes; de outro, consegue apresentar a não menos complexa vida de sóror Juana sem cair na tentação de resolver suas contradições; por fim, interpreta a enigmática obra de uma poeta barroca que escreveu de poemas eróticos a autos sacramentais, de homenagens cortesãs a epístolas teológicas.
Nascida em 1648, Juana Inés conseguiu superar sua desalentada condição de mulher -agravada pela falta de fortuna, de nome e de pai- graças a um rico devoto que proveu o dote necessário ao seu ingresso no Convento de São Jerônimo. A decisão de vestir o hábito representou, para ela, tanto a possibilidade de seguir a vocação intelectual quanto a de evitar a submissão aos deveres matrimoniais. Para quem cultivava tão pouca aptidão para os afazeres domésticos e tão grande ânsia de conhecimento, tal decisão não poderia ser mais sensata, como observa Paz, ao contestar os críticos que insistem na hipótese da conversão religiosa.
Os 26 anos que a poeta passou no convento, até sua morte em 1695, foram quase exclusivamente dedicados à vida intelectual, em meio a uma biblioteca de 4.000 volumes e uma valiosa coleção de instrumentos e objetos raros. Porém, se sua confortável cela lhe propiciava as condições necessárias à leitura e à escrita, o silêncio do claustro era interrompido com frequência pelas visitas dos vice-reis e de cortesãos eruditos que gostavam de conversar com a freira. As jerônimas não observavam as austeridades da vida ascética e gozavam de razoável liberdade: sóror Juana desfrutou dessas vantagens e, de sua cela-salão-biblioteca, projetou-se como figura de prestígio não só na Nova Espanha, mas também nas cortes do além-mar.
É justamente nessa tópica que o livro de Paz mostra seu vigor, pois, ao invés de idealizar a figura da religiosa, prefere humanizá-la. Assim, na contramão dos que cultuam a "beata embalsamada", o biógrafo apresenta as contradições da escritora viva: "Freira e hábil política, poeta e intelectual, enigma erótico e mulher de negócios, "criolla' e espanhola, apaixonada pelos segredos egípcios e pela poesia jocosa". São particularmente interessantes as passagens em que ele descreve o empenho da poeta em destacar-se na "arte da lisonja engenhosa": afeita a adulações e bajulações, sóror Juana escreveu uma infinidade de peças de ocasião -entre homenagens, epístolas e loas de elogio a seus protetores- que compõem mais da metade de sua obra. Contudo Paz não deixa de observar que essa literatura de encomenda era com frequência enigmática, cheia de citações eruditas e de alusões mitológicas.
De certa forma, as contradições de Juana Inés ecoam do próprio mundo em que ela viveu: a Nova Espanha seiscentista era uma sociedade estranha, a um só tempo devota e sensual, oscilando entre delírios fúnebres e luxuriosos. As condições sociais e físicas do vice-reinado pareciam favorecer ainda mais os contrastes típicos da sensibilidade barroca, marcando uma diferença com a Europa, que se traduzia também em termos literários. Se o barroco europeu foi pródigo em obras licenciosas -como as de Donne, Marino ou Quevedo-, os poemas eróticos de sóror Juana representam um exemplo único na época, ainda mais por terem sido escritos por uma mulher e freira.
Ao contrário da poesia de Quevedo -que propõe um inusitado diálogo entre a alma e o ânus-, os escritos sexuais da poeta sugerem uma superação da dualidade matéria-espírito por meio de uma paradoxal neutralização do corpo. Trata-se da afirmação de um erotismo espiritual, no qual o objeto sempre se rende às sombras do fantasma. Os conflitos da freira entre a castidade sexual e um potente desejo, de provável inclinação homossexual, são transfigurados numa poética que não cessa de evocar a androginia da alma. Poética platônica de fundo religioso, sem dúvida, mas cujo fervor e entusiasmo deixam entrever o incessante trabalho de uma poderosa libido sem função.
Mesmo tendo sido escrita por uma freira, essa vasta obra licenciosa não nos autoriza a estabelecer relações entre a religião e o erotismo. Diferentes das meditações de Santa Teresa D'Ávila -cuja mística nupcial insinua elementos sensuais- ou das cartas de Eloisa -que analisam o amor terrestre diante do amor divino-, a poesia sexual de sóror Juana limita-se a tratar de temáticas profanas, numa notável fidelidade a uma tradição laica da literatura erótica. A aspiração intelectual da poeta não se confundia, portanto, com a ânsia mística de um conhecimento atravessado pela luz divina; pelo contrário, como sublinha Paz, ela desejava conhecer, com a luz de sua razão, os opacos mistérios da "máquina do universo".
É surpreendente também que tais heresias tenham sido divulgadas numa sociedade tão temerosa dos tribunais do Santo Ofício. Os livros de sóror Juana conheceram diversas edições, publicadas sob o patrocínio dos mesmos protetores que lhe garantiam a impunidade. Contudo não deixaram de escandalizar os espíritos mais ortodoxos da época, entre eles o arcebispo da Nova Espanha -que cultivava um verdadeiro horror ao sexo feminino- e o austero confessor da freira. Com efeito, foram eles os principais artífices da perseguição que atingiu a poeta em seus últimos anos de vida, levando-a a abandonar por completo a vocação literária.
Armadilhas da fé, como quer o biógrafo, mas também armadilhas da literatura, que conferem a Juana Inés uma aura singular, tornando-a figura de interesse até os dias de hoje. Se alguns estudiosos do barroco acusam Paz de modernizar em demasia a obra da poeta -para ele o "Primero Sueño" prefigura a "modernidade mais moderna"-, fica difícil não concordar com certas observações suas a respeito da atualidade dessa história de vida, sobretudo quando percebe nela a insidiosa cumplicidade da vítima com o carrasco.
Nesse sentido, sóror Juana é inegavelmente "moderna". Num mundo em que os interesses privados pairam acima dos valores éticos, a figura de uma intelectual que, para conseguir um lugar ao sol, realizou as mais finas acrobacias -fossem "literárias" ou "diplomáticas"- não é nada estranha. Nem tampouco a de quem, como ela, foi tão hábil no exercício do "tráfico de influências". O que pode talvez surpreender nessa biografia é o fato de ela expor a falta de sentido que subjaz a tais manobras: o lamentável fim de sóror Juana mostra que, quando a civilidade se confunde com os jogos de vantagens pessoais, não há cumplicidade capaz de resistir aos conflitos de interesses.
Estranho destino o dessa freira literata, sobretudo se comparado ao de um escritor libertino como o Marquês de Sade, que pagou um alto preço por defender suas insensatas convicções, sem conceder uma só palavra aos que lhe ofereciam, entre outras vantagens, sua retirada da prisão. Se o claustro abrigou tanto a literatura de Sade quanto a de sóror Juana, cada qual teve uma cela à sua medida: a dele, quase religiosa; a dela, quase libertina.

A OBRA

Sorór Juana Inés de la Cruz - As Armadilhas da Fé - Octavio Paz. Tradução de Wladir Dupont. Ed. Mandarim (r. Raimundo Pereira de Magalhães, 3.305, CEP 05145-200, SP, tel. 011/839-5500). 712 págs. R$ 56,00.


Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade de São Paulo e autora, entre outros, de "Sade - A Felicidade Libertina" (Imago).



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