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A religiosa e poeta Juana Inés de la Cruz é tema de biografia escrita por Octavio Paz
Máquina do universo
do
ELIANE ROBERT MORAES
especial para a Folha
Ao longo de sua história, os muros monacais abrigaram as mais
distintas vocações. O modo de vida conventual não serviu apenas
aos espíritos de elevado ideal religioso, mas favoreceu outras inclinações que, movidas por ambições profanas, foram igualmente
seduzidas pelo rigor do silêncio e
da clausura. De retiro dos místicos
na Idade Média a refúgio dos libertinos na Idade Moderna, os conventos acumularam diversas funções, entre elas a de ter sido durante séculos um abrigo privilegiado da literatura.
Não foram poucos os que professaram a vocação literária no interior dos mosteiros. Os exemplos
mais conhecidos são o de Santa
Teresa D'Ávila e o de San Juan de
la Cruz, que nos legaram notáveis
meditações espirituais e poemas
religiosos. Se o nome de sóror Juana Inés de la Cruz merece estar
nessa lista pela excelência de sua
obra, convém lembrar uma diferença significativa entre ela e essas
grandes figuras místicas: foi a paixão pelas letras profanas, e não o
desejo de união com Deus, que a
levou ao abrigo do claustro.
Essa paixão é o centro luminoso
da biografia que Octavio Paz dedicou à poeta mexicana, agora publicada no Brasil em excelente tradução de Wladir Dupont. O texto
de Paz alcança um raro equilíbrio
entre as diferentes matérias que
compõem um ensaio ao mesmo
tempo histórico, biográfico e crítico. De um lado, fornece informações preciosas sobre a complexa
sociedade da Nova Espanha, propondo-lhe interpretações instigantes; de outro, consegue apresentar a não menos complexa vida
de sóror Juana sem cair na tentação de resolver suas contradições;
por fim, interpreta a enigmática
obra de uma poeta barroca que escreveu de poemas eróticos a autos
sacramentais, de homenagens
cortesãs a epístolas teológicas.
Nascida em 1648, Juana Inés
conseguiu superar sua desalentada condição de mulher -agravada pela falta de fortuna, de nome e
de pai- graças a um rico devoto
que proveu o dote necessário ao
seu ingresso no Convento de São
Jerônimo. A decisão de vestir o hábito representou, para ela, tanto a
possibilidade de seguir a vocação
intelectual quanto a de evitar a
submissão aos deveres matrimoniais. Para quem cultivava tão
pouca aptidão para os afazeres domésticos e tão grande ânsia de conhecimento, tal decisão não poderia ser mais sensata, como observa
Paz, ao contestar os críticos que
insistem na hipótese da conversão
religiosa.
Os 26 anos que a poeta passou no
convento, até sua morte em 1695,
foram quase exclusivamente dedicados à vida intelectual, em meio a
uma biblioteca de 4.000 volumes e
uma valiosa coleção de instrumentos e objetos raros. Porém, se
sua confortável cela lhe propiciava
as condições necessárias à leitura e
à escrita, o silêncio do claustro era
interrompido com frequência pelas visitas dos vice-reis e de cortesãos eruditos que gostavam de
conversar com a freira. As jerônimas não observavam as austeridades da vida ascética e gozavam de
razoável liberdade: sóror Juana
desfrutou dessas vantagens e, de
sua cela-salão-biblioteca, projetou-se como figura de prestígio
não só na Nova Espanha, mas
também nas cortes do além-mar.
É justamente nessa tópica que o
livro de Paz mostra seu vigor,
pois, ao invés de idealizar a figura
da religiosa, prefere humanizá-la.
Assim, na contramão dos que cultuam a "beata embalsamada", o
biógrafo apresenta as contradições da escritora viva: "Freira e
hábil política, poeta e intelectual,
enigma erótico e mulher de negócios, "criolla' e espanhola, apaixonada pelos segredos egípcios e
pela poesia jocosa". São particularmente interessantes as passagens em que ele descreve o empenho da poeta em destacar-se na
"arte da lisonja engenhosa": afeita a adulações e bajulações, sóror
Juana escreveu uma infinidade de
peças de ocasião -entre homenagens, epístolas e loas de elogio a
seus protetores- que compõem
mais da metade de sua obra. Contudo Paz não deixa de observar
que essa literatura de encomenda
era com frequência enigmática,
cheia de citações eruditas e de alusões mitológicas.
De certa forma, as contradições
de Juana Inés ecoam do próprio
mundo em que ela viveu: a Nova
Espanha seiscentista era uma sociedade estranha, a um só tempo
devota e sensual, oscilando entre
delírios fúnebres e luxuriosos. As
condições sociais e físicas do vice-reinado pareciam favorecer
ainda mais os contrastes típicos da
sensibilidade barroca, marcando
uma diferença com a Europa, que
se traduzia também em termos literários. Se o barroco europeu foi
pródigo em obras licenciosas
-como as de Donne, Marino ou
Quevedo-, os poemas eróticos de
sóror Juana representam um
exemplo único na época, ainda
mais por terem sido escritos por
uma mulher e freira.
Ao contrário da poesia de Quevedo -que propõe um inusitado
diálogo entre a alma e o ânus-, os
escritos sexuais da poeta sugerem
uma superação da dualidade matéria-espírito por meio de uma paradoxal neutralização do corpo.
Trata-se da afirmação de um erotismo espiritual, no qual o objeto
sempre se rende às sombras do
fantasma. Os conflitos da freira
entre a castidade sexual e um potente desejo, de provável inclinação homossexual, são transfigurados numa poética que não cessa de
evocar a androginia da alma. Poética platônica de fundo religioso,
sem dúvida, mas cujo fervor e entusiasmo deixam entrever o incessante trabalho de uma poderosa libido sem função.
Mesmo tendo sido escrita por
uma freira, essa vasta obra licenciosa não nos autoriza a estabelecer relações entre a religião e o
erotismo. Diferentes das meditações de Santa Teresa D'Ávila
-cuja mística nupcial insinua elementos sensuais- ou das cartas
de Eloisa -que analisam o amor
terrestre diante do amor divino-,
a poesia sexual de sóror Juana limita-se a tratar de temáticas profanas, numa notável fidelidade a
uma tradição laica da literatura
erótica. A aspiração intelectual da
poeta não se confundia, portanto,
com a ânsia mística de um conhecimento atravessado pela luz divina; pelo contrário, como sublinha
Paz, ela desejava conhecer, com a
luz de sua razão, os opacos mistérios da "máquina do universo".
É surpreendente também que
tais heresias tenham sido divulgadas numa sociedade tão temerosa
dos tribunais do Santo Ofício. Os
livros de sóror Juana conheceram
diversas edições, publicadas sob o
patrocínio dos mesmos protetores
que lhe garantiam a impunidade.
Contudo não deixaram de escandalizar os espíritos mais ortodoxos da época, entre eles o arcebispo da Nova Espanha -que cultivava um verdadeiro horror ao sexo feminino- e o austero confessor da freira. Com efeito, foram
eles os principais artífices da perseguição que atingiu a poeta em
seus últimos anos de vida, levando-a a abandonar por completo a
vocação literária.
Armadilhas da fé, como quer o
biógrafo, mas também armadilhas
da literatura, que conferem a Juana Inés uma aura singular, tornando-a figura de interesse até os
dias de hoje. Se alguns estudiosos
do barroco acusam Paz de modernizar em demasia a obra da poeta
-para ele o "Primero Sueño"
prefigura a "modernidade mais
moderna"-, fica difícil não concordar com certas observações
suas a respeito da atualidade dessa
história de vida, sobretudo quando percebe nela a insidiosa cumplicidade da vítima com o carrasco.
Nesse sentido, sóror Juana é inegavelmente "moderna". Num
mundo em que os interesses privados pairam acima dos valores
éticos, a figura de uma intelectual
que, para conseguir um lugar ao
sol, realizou as mais finas acrobacias -fossem "literárias" ou
"diplomáticas"- não é nada estranha. Nem tampouco a de
quem, como ela, foi tão hábil no
exercício do "tráfico de influências". O que pode talvez surpreender nessa biografia é o fato
de ela expor a falta de sentido que
subjaz a tais manobras: o lamentável fim de sóror Juana mostra que,
quando a civilidade se confunde
com os jogos de vantagens pessoais, não há cumplicidade capaz
de resistir aos conflitos de interesses.
Estranho destino o dessa freira
literata, sobretudo se comparado
ao de um escritor libertino como o
Marquês de Sade, que pagou um
alto preço por defender suas insensatas convicções, sem conceder uma só palavra aos que lhe
ofereciam, entre outras vantagens,
sua retirada da prisão. Se o claustro abrigou tanto a literatura de
Sade quanto a de sóror Juana, cada
qual teve uma cela à sua medida: a
dele, quase religiosa; a dela, quase
libertina.
A OBRA
Sorór Juana Inés de la Cruz - As Armadilhas da Fé - Octavio Paz. Tradução de Wladir
Dupont. Ed. Mandarim (r. Raimundo Pereira de Magalhães,
3.305, CEP 05145-200, SP, tel.
011/839-5500). 712 págs. R$
56,00.
Eliane Robert Moraes é professora de estética
e literatura na Pontifícia Universidade de São
Paulo e autora, entre outros, de "Sade - A Felicidade Libertina" (Imago).
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