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LIVROS
Historiadora procura as origens do mito do rei português D. Sebastião, desaparecido misteriosamente em 1578
O reino visionário
JEAN M. CARVALHO FRANÇA
especial para a Folha
Nos últimos anos, a história de
Portugal, especialmente o período
compreendido entre a viagem de
Vasco da Gama (1497) e o início do
reinado de Felipe 2º (1580), vem
sendo visitada com uma certa frequência por historiadores provenientes das chamadas "ex-colônias". Essas salutares incursões
pelo passado "metropolitano"
têm não somente funcionado como uma espécie de contraponto à
paixão e ao nacionalismo de uma
certa historiografia portuguesa,
como também, e sobretudo, colaborado para multiplicar as perspectivas sobre importantes acontecimentos da história lusitana.
Um bom exemplo do quão salutares podem ser essas incursões é o
livro "No Reino do Desejado", da
historiadora Jacqueline Hermann.
Estudiosa do messianismo luso-brasileiro, Hermann, nesse trabalho, se debruça sobre o processo
de construção (séculos 16 e 17) de
um dos mais intensos e duradouros mitos da cultura portuguesa, o
sebastianismo.
Contrariamente ao que fizeram
diversos historiadores lusitanos,
que abordaram a crença no retorno do rei desaparecido em Alcácer
Quibir "ora como fuga irracional
da realidade adversa, ora como
seita de fanáticos", Hermann
buscou compreender esse complexo fenômeno à luz das relações
socioculturais da época.
Num primeiro momento, a historiadora analisa aquela que é
considerada a "bíblia" do sebastianismo: as "Trovas" do sapateiro Gonçalo Annes Bandarra, produzidas entre 1530 e 1540. Essa
análise consiste, grosso modo, no
resgate do contexto cultural em
que o texto foi produzido. Oralidade, aspectos do maravilhoso
medieval, traços do messianismo
judaico, elementos da religiosidade cristã são alguns dos elementos
que a pesquisadora aponta como
substrato dessas curiosas trovas
que seriam, a partir do final do século 16, tomadas como "profecias" sebastianistas.
Uma vez examinado o "livro sagrado", Hermann põe em cena o
personagem principal da trama:
D. Sebastião. Não se trata, porém,
de um estudo biográfico, mesmo
porque o material disponível não
o permitiria. Segundo a autora, a
"dificuldade da historiografia
portuguesa em lidar com o resultado final do reinado do Desejado" condenou o personagem ao
ostracismo.
Daí a sua opção por "recolocar" o monarca no ambiente cortesão em que viveu, descrevendo
as expectativas que cercaram o seu
nascimento, especificando as querelas políticas e religiosas que envolveram a sua educação, assinalando as pressões que o jovem rei
sofreu para que se lançasse na desastrosa aventura de Alcácer Quibir e demarcando a sua complicada relação com Castela.
Dando sequência a esse "retrato
sociológico" do rei e da realeza, a
historiadora esquadrinha as "características da sacralidade" da
monarquia portuguesa, relacionando-as com as formulações
proféticas de Bandarra. Isso feito,
Hermann traz à cena algumas
"produções e elaborações discursivas sebastianistas", isto é, algumas das representações que deram
corpo à crença sebástica. De saída,
são apresentadas três figuras modelares do discurso erudito: D.
João de Castro, nobre responsável
pela publicação parcial das "Trovas" e crente de primeira hora no
retorno do rei "encoberto"; Manuel Bocarro Francês, cristão-novo que interpretou as "profecias"
de Bandarra à luz da cabala; e Padre Antônio Vieira, o profeta
maior do "Quinto Império".
A seguir, são dadas a conhecer
algumas "produções e elaborações" populares: falsos reis que se
fazem anunciar pelas cidades e vilas do reino; visionários que "revelam" a vinda do salvador, mulheres que dizem encontrar em sonhos o rei desaparecido e uma série de outros personagens. Entre
essas manifestações populares e
aquelas interpretações eruditas,
destaca a historiadora, as ligações
são estreitas e constantes, configurando um "cruzamento cultural
que se alimenta incessantemente".
Em linhas gerais, esse é o sebastianismo construído nas páginas
de "No Reino do Desejado", um
sebastianismo inserido na conturbada sociedade que o viu nascer,
um sebastianismo inseparável de
um Portugal que experimentava a
decadência depois do glorioso
"período dos descobrimentos",
um sebastianismo, enfim, com
raízes profundas na cultura (erudita e popular) lusitana.
Essa bem construída abordagem
da crença sebástica, no entanto,
comete pelo menos dois pequenos
pecados. Há, no corpo do texto,
uma excessiva explicitação do arcabouço teórico que orientou a
pesquisa, explicitação que cresce
na exata medida em que escasseia
a documentação primária utilizada. Excessivo é também o número
de críticas que a historiadora endereça aos colegas portugueses.
Que boa parte delas são justas, não
se questiona. Todavia, quando
Hermann lamenta a ausência de
estudos portugueses sobre esse ou
aquele ponto, interrogamo-nos se,
em alguns casos, não deveria ter a
própria autora reduzido a lacuna
que esperava ver preenchida por
outros.
A OBRA
No Reino do Desejado - Jacqueline Hermann. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 384 págs. R$ 28,00.
Jean M. Carvalho França é mestre em sociologia da cultura e doutor em literatura comparada
pela Universidade Federal de Minas Gerais.
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