São Paulo, domingo, 25 de outubro de 1998

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LIVROS
Historiadora procura as origens do mito do rei português D. Sebastião, desaparecido misteriosamente em 1578
O reino visionário

JEAN M. CARVALHO FRANÇA
especial para a Folha

Nos últimos anos, a história de Portugal, especialmente o período compreendido entre a viagem de Vasco da Gama (1497) e o início do reinado de Felipe 2º (1580), vem sendo visitada com uma certa frequência por historiadores provenientes das chamadas "ex-colônias". Essas salutares incursões pelo passado "metropolitano" têm não somente funcionado como uma espécie de contraponto à paixão e ao nacionalismo de uma certa historiografia portuguesa, como também, e sobretudo, colaborado para multiplicar as perspectivas sobre importantes acontecimentos da história lusitana.
Um bom exemplo do quão salutares podem ser essas incursões é o livro "No Reino do Desejado", da historiadora Jacqueline Hermann. Estudiosa do messianismo luso-brasileiro, Hermann, nesse trabalho, se debruça sobre o processo de construção (séculos 16 e 17) de um dos mais intensos e duradouros mitos da cultura portuguesa, o sebastianismo.
Contrariamente ao que fizeram diversos historiadores lusitanos, que abordaram a crença no retorno do rei desaparecido em Alcácer Quibir "ora como fuga irracional da realidade adversa, ora como seita de fanáticos", Hermann buscou compreender esse complexo fenômeno à luz das relações socioculturais da época.
Num primeiro momento, a historiadora analisa aquela que é considerada a "bíblia" do sebastianismo: as "Trovas" do sapateiro Gonçalo Annes Bandarra, produzidas entre 1530 e 1540. Essa análise consiste, grosso modo, no resgate do contexto cultural em que o texto foi produzido. Oralidade, aspectos do maravilhoso medieval, traços do messianismo judaico, elementos da religiosidade cristã são alguns dos elementos que a pesquisadora aponta como substrato dessas curiosas trovas que seriam, a partir do final do século 16, tomadas como "profecias" sebastianistas.
Uma vez examinado o "livro sagrado", Hermann põe em cena o personagem principal da trama: D. Sebastião. Não se trata, porém, de um estudo biográfico, mesmo porque o material disponível não o permitiria. Segundo a autora, a "dificuldade da historiografia portuguesa em lidar com o resultado final do reinado do Desejado" condenou o personagem ao ostracismo.
Daí a sua opção por "recolocar" o monarca no ambiente cortesão em que viveu, descrevendo as expectativas que cercaram o seu nascimento, especificando as querelas políticas e religiosas que envolveram a sua educação, assinalando as pressões que o jovem rei sofreu para que se lançasse na desastrosa aventura de Alcácer Quibir e demarcando a sua complicada relação com Castela.
Dando sequência a esse "retrato sociológico" do rei e da realeza, a historiadora esquadrinha as "características da sacralidade" da monarquia portuguesa, relacionando-as com as formulações proféticas de Bandarra. Isso feito, Hermann traz à cena algumas "produções e elaborações discursivas sebastianistas", isto é, algumas das representações que deram corpo à crença sebástica. De saída, são apresentadas três figuras modelares do discurso erudito: D. João de Castro, nobre responsável pela publicação parcial das "Trovas" e crente de primeira hora no retorno do rei "encoberto"; Manuel Bocarro Francês, cristão-novo que interpretou as "profecias" de Bandarra à luz da cabala; e Padre Antônio Vieira, o profeta maior do "Quinto Império".
A seguir, são dadas a conhecer algumas "produções e elaborações" populares: falsos reis que se fazem anunciar pelas cidades e vilas do reino; visionários que "revelam" a vinda do salvador, mulheres que dizem encontrar em sonhos o rei desaparecido e uma série de outros personagens. Entre essas manifestações populares e aquelas interpretações eruditas, destaca a historiadora, as ligações são estreitas e constantes, configurando um "cruzamento cultural que se alimenta incessantemente".
Em linhas gerais, esse é o sebastianismo construído nas páginas de "No Reino do Desejado", um sebastianismo inserido na conturbada sociedade que o viu nascer, um sebastianismo inseparável de um Portugal que experimentava a decadência depois do glorioso "período dos descobrimentos", um sebastianismo, enfim, com raízes profundas na cultura (erudita e popular) lusitana.
Essa bem construída abordagem da crença sebástica, no entanto, comete pelo menos dois pequenos pecados. Há, no corpo do texto, uma excessiva explicitação do arcabouço teórico que orientou a pesquisa, explicitação que cresce na exata medida em que escasseia a documentação primária utilizada. Excessivo é também o número de críticas que a historiadora endereça aos colegas portugueses. Que boa parte delas são justas, não se questiona. Todavia, quando Hermann lamenta a ausência de estudos portugueses sobre esse ou aquele ponto, interrogamo-nos se, em alguns casos, não deveria ter a própria autora reduzido a lacuna que esperava ver preenchida por outros.

A OBRA

No Reino do Desejado - Jacqueline Hermann. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 384 págs. R$ 28,00.


Jean M. Carvalho França é mestre em sociologia da cultura e doutor em literatura comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais.



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