São Paulo, domingo, 26 de abril de 2009

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Cozinho, logo existo

O historiador italiano Massimo Montanari explica à Folha como a gastronomia ajudou a criar a civilização

EUCLIDES SANTOS MENDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Para o historiador italiano Massimo Montanari, cozinhar foi uma das primeiras expressões ligadas à formação cultural das sociedades humanas.
Professor na Universidade de Bolonha, na Itália, Montanari pesquisa a história da alimentação e é autor de "Comida como Cultura", que está sendo lançado no Brasil.
Em entrevista à Folha, ele fala sobre os significados culturais que dão sentido à experiência de preparar e degustar alimentos -desde o surgimento da agricultura, nos primórdios da humanidade, até os tempos atuais.
No processo de reelaboração do ambiente natural como cultura, "o homem se torna dono do próprio destino, produz a sua comida, não depende mais (totalmente) da natureza", diz o historiador.
Mesmo os períodos de fome, argumenta, foram fundamentais na história da alimentação, ao permitir ao ser humano "identificar, sobretudo, alimentos duráveis que pudessem não apenas nutrir, mas também constituir reservas" e criar técnicas para a sua conservação.
"Tudo isso nasce como "cultura da fome", mas permite construir extraordinárias elaborações gastronômicas", aponta o historiador.

 

FOLHA - Como a cozinha ajudou a criar a civilização?
MASSIMO MONTANARI
- A cozinha é uma expressão importante, talvez a primeira, da evolução cultural e civil das sociedades humanas.
Entre as muitas atividades que os homens têm, cozinhar -ou seja, transformar os produtos naturais em algo diferente, que depois é comido- é exclusivo da espécie humana. É, portanto, símbolo da identidade humana.
Por isso, a comida crua sempre foi pensada pelos homens como [símbolo] não-cultural -e também em sentido polêmico, como no caso dos ascetas cristãos que refutam a civilização e as práticas de cozinha que a representam.

FOLHA - Quando e como a cozinha se tornou um espaço onde a natureza e a cultura passaram a ter uma relação em comum?
MONTANARI
- Quando e como: impossível dizê-lo, em termos de lugares e de tempos.
Digamos que ocorreu em todo lugar onde os homens começaram a elaborar um modelo de transformação da natureza, que chamaram civilização. Naturalmente, não existe cultura sem natureza. A cultura é a reelaboração da natureza.
Mas esse processo foi pensado pelos homens como uma oposição, na realidade, fictícia: a cultura contra a natureza. O sentido é: o homem se torna dono do próprio destino, produz a sua comida, não depende mais (totalmente) da natureza.
Esse fenômeno é muito antigo: também as sociedades de caçadores têm sua cultura, que significa conhecimento, saber. Constroem instrumentos (arcos, flechas) para realizar objetivos alimentares. Estudam o movimento dos animais etc.
É sobretudo com a invenção da agricultura que a ideia de transformar o mundo toma impulso. Isso ocorreu entre 10 mil e 6.000 anos atrás, em várias partes do mundo. Quer dizer: há pouquíssimo tempo. A agricultura nasce como atividade absolutamente inovadora, também no plano cultural.

FOLHA - Como os períodos de fome por que passou a humanidade modificaram a história da alimentação?
MONTANARI
- A fome levou a história da alimentação a muitas direções fundamentais. Identificar, sobretudo, alimentos duráveis, que pudessem não apenas nutrir, mas também constituir reservas. Logo, os cereais tiveram importância primária. Além disso, elaborar técnicas de conservação: salgar, defumar, colocar em conserva, no mel, no azeite etc.
Tudo isso nasce como "cultura da fome", mas permite construir extraordinárias elaborações gastronômicas.
O salame, o presunto, a geleia são um ponto mágico de encontro entre a cultura da fome e a cultura do prazer -que, ao longo da história, não viajam separadas, mas juntas.

FOLHA - De que modo a modernidade transformou a relação da sociedade com a comida?
MONTANARI
- A modernidade agiu de maneira positiva no plano tecnológico, aumentando a produção, melhorando os sistemas de transporte e de conservação.
Mas agiu em sentido negativo ao afrouxar os vínculos dos homens com o território e, acima de tudo -com a restrição da classe camponesa-, os saberes ligados à comida.
Acredito que o tema do conhecimento seja a chave para construir, no futuro, uma cultura da comida que valoriza a oportunidade do sistema industrial e da modernização, sem, no entanto, perder os saberes da comida.

FOLHA - O que é a anticozinha?
MONTANARI
- Anticozinha significa propor um modelo cultural em que cozinhar, procurar o prazer da comida e do corpo, se tornam um inimigo.
Na tradição cristã ocidental, existe uma forte tradição nesse sentido. A comida se torna a metáfora dos interesses materiais, aos quais se opõem aqueles espirituais.
Há também uma anticultura aparentemente não religiosa, aquela do "desinteresse" de quem pensa a comida como algo de supérfluo em relação aos reais interesses da vida.
Mas também aqui, creio, existem posturas penitentes que querem negar o direito do homem a experimentar e praticar o prazer.

FOLHA - Assim como a enologia, a gastronomia está se tornando um negócio, um grande marketing?
MONTANARI
- Sim, a comida é um negócio, uma enorme moda. Isso pode nos deixar perplexos no plano cultural, porque cada moda arrisca desviar a atenção real dos problemas.
Mas, pessoalmente, considero que também a moda tem um aspecto positivo. Pois significa que hoje se reconhece na comida um valor primário, e isso, no aspecto cultural, é uma conquista, mesmo quando vem "declinada" de modo vulgar e interessado, como pura questão de marketing.

FOLHA - O prêmio "S. Pellegrino World's 50 Best Restaurants" escolheu somente um restaurante latino-americano entre os melhores do mundo, ao mesmo tempo em que seis espanhóis também o receberam. Como explicar esses extremos?
MONTANARI
- Prefiro não comentar. Em geral, creio que são operações de poder com escasso conteúdo de "verdade".


COMIDA COMO CULTURA
Autor:
Massimo Montanari
Editora: Ed. Senac SP (tel. 0/ xx/ 11/ 2187-4450)
Quanto: R$ 45 (208 págs.)



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