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Cozinho, logo existo
O historiador italiano Massimo Montanari explica à Folha como a gastronomia ajudou a criar
a civilização
EUCLIDES SANTOS MENDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Para o historiador italiano Massimo Montanari, cozinhar foi
uma das primeiras
expressões ligadas à
formação cultural das sociedades humanas.
Professor na Universidade
de Bolonha, na Itália, Montanari pesquisa a história da alimentação e é autor de "Comida
como Cultura", que está sendo
lançado no Brasil.
Em entrevista à Folha, ele
fala sobre os significados culturais que dão sentido à experiência de preparar e degustar
alimentos -desde o surgimento da agricultura, nos primórdios da humanidade, até os
tempos atuais.
No processo de reelaboração
do ambiente natural como cultura, "o homem se torna dono
do próprio destino, produz a
sua comida, não depende mais
(totalmente) da natureza", diz
o historiador.
Mesmo os períodos de fome,
argumenta, foram fundamentais na história da alimentação,
ao permitir ao ser humano
"identificar, sobretudo, alimentos duráveis que pudessem não apenas nutrir, mas
também constituir reservas" e
criar técnicas para a sua conservação.
"Tudo isso nasce como "cultura da fome", mas permite
construir extraordinárias elaborações gastronômicas",
aponta o historiador.
FOLHA - Como a cozinha ajudou a
criar a civilização?
MASSIMO MONTANARI - A cozinha
é uma expressão importante,
talvez a primeira, da evolução
cultural e civil das sociedades
humanas.
Entre as muitas atividades
que os homens têm, cozinhar
-ou seja, transformar os produtos naturais em algo diferente, que depois é comido- é exclusivo da espécie humana. É,
portanto, símbolo da identidade humana.
Por isso, a comida crua sempre foi pensada pelos homens
como [símbolo] não-cultural
-e também em sentido polêmico, como no caso dos ascetas
cristãos que refutam a civilização e as práticas de cozinha que
a representam.
FOLHA - Quando e como a cozinha
se tornou um espaço onde a natureza e a cultura passaram a ter uma relação em comum?
MONTANARI - Quando e como:
impossível dizê-lo, em termos
de lugares e de tempos.
Digamos que ocorreu em todo lugar onde os homens começaram a elaborar um modelo de
transformação da natureza,
que chamaram civilização. Naturalmente, não existe cultura
sem natureza. A cultura é a reelaboração da natureza.
Mas esse processo foi pensado pelos homens como uma
oposição, na realidade, fictícia:
a cultura contra a natureza. O
sentido é: o homem se torna
dono do próprio destino, produz a sua comida, não depende
mais (totalmente) da natureza.
Esse fenômeno é muito antigo: também as sociedades de
caçadores têm sua cultura, que
significa conhecimento, saber.
Constroem instrumentos (arcos, flechas) para realizar objetivos alimentares. Estudam o
movimento dos animais etc.
É sobretudo com a invenção
da agricultura que a ideia de
transformar o mundo toma impulso. Isso ocorreu entre 10 mil
e 6.000 anos atrás, em várias
partes do mundo. Quer dizer:
há pouquíssimo tempo. A agricultura nasce como atividade
absolutamente inovadora,
também no plano cultural.
FOLHA - Como os períodos de fome
por que passou a humanidade modificaram a história da alimentação?
MONTANARI - A fome levou a
história da alimentação a muitas direções fundamentais.
Identificar, sobretudo, alimentos duráveis, que pudessem não
apenas nutrir, mas também
constituir reservas. Logo, os cereais tiveram importância primária. Além disso, elaborar técnicas de conservação: salgar,
defumar, colocar em conserva,
no mel, no azeite etc.
Tudo isso nasce como "cultura da fome", mas permite construir extraordinárias elaborações gastronômicas.
O salame, o presunto, a geleia
são um ponto mágico de encontro entre a cultura da fome e a
cultura do prazer -que, ao longo da história, não viajam separadas, mas juntas.
FOLHA - De que modo a modernidade transformou a relação da sociedade com a comida?
MONTANARI - A modernidade
agiu de maneira positiva no
plano tecnológico, aumentando a produção, melhorando os
sistemas de transporte e de
conservação.
Mas agiu em sentido negativo ao afrouxar os vínculos dos
homens com o território e, acima de tudo -com a restrição da
classe camponesa-, os saberes
ligados à comida.
Acredito que o tema do conhecimento seja a chave para
construir, no futuro, uma cultura da comida que valoriza a
oportunidade do sistema industrial e da modernização,
sem, no entanto, perder os saberes da comida.
FOLHA - O que é a anticozinha?
MONTANARI - Anticozinha significa propor um modelo cultural em que cozinhar, procurar o
prazer da comida e do corpo, se
tornam um inimigo.
Na tradição cristã ocidental,
existe uma forte tradição nesse
sentido. A comida se torna a
metáfora dos interesses materiais, aos quais se opõem aqueles espirituais.
Há também uma anticultura
aparentemente não religiosa,
aquela do "desinteresse" de
quem pensa a comida como algo de supérfluo em relação aos
reais interesses da vida.
Mas também aqui, creio,
existem posturas penitentes
que querem negar o direito do
homem a experimentar e praticar o prazer.
FOLHA - Assim como a enologia, a
gastronomia está se tornando um
negócio, um grande marketing?
MONTANARI - Sim, a comida é
um negócio, uma enorme moda. Isso pode nos deixar perplexos no plano cultural, porque
cada moda arrisca desviar a
atenção real dos problemas.
Mas, pessoalmente, considero que também a moda tem um
aspecto positivo. Pois significa
que hoje se reconhece na comida um valor primário, e isso, no
aspecto cultural, é uma conquista, mesmo quando vem
"declinada" de modo vulgar e
interessado, como pura questão de marketing.
FOLHA - O prêmio "S. Pellegrino
World's 50 Best Restaurants" escolheu somente um restaurante latino-americano entre os melhores do
mundo, ao mesmo tempo em que
seis espanhóis também o receberam. Como explicar esses extremos?
MONTANARI - Prefiro não comentar. Em geral, creio que são
operações de poder com escasso conteúdo de "verdade".
COMIDA COMO CULTURA
Autor: Massimo Montanari
Editora: Ed. Senac SP (tel. 0/ xx/
11/ 2187-4450)
Quanto: R$ 45 (208 págs.)
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