São Paulo, domingo, 26 de maio de 2002

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José Miguel Wisnik

O gol de Romário contra a Holanda, na Copa de 94, desafia o senso comum e o senso incomum. Gostei de ficar sabendo, na época, que Tostão, então comentarista da TV Bandeirantes, teria pedido, nos bastidores, que repetissem o lance durante 15 minutos seguidos para que ele, Tostão, tentasse entendê-lo. E tenho certeza de que o gol, ainda assim, resiste ao entendimento.
Bebeto cruza rasteiro da esquerda para o centro da área, onde Romário já se projeta frontal e livre da marcação. Ao interceptar a trajetória da bola, o atacante dobra a perna esquerda, como quem vai chutar com ela, mas chuta na verdade com o lado de fora do pé direito, depois de saltar, numa fração de segundo, sobre essa mesma perna. Nada na força do hábito, corporal ou visual, diria que o chute viria dali, quanto mais tão límpido, certeiro e instantâneo. Um comentarista esportivo, acho que americano, comparou o movimento, com propriedade, a uma ferroada fatal. Podemos falar, também, em um raio de saci-pererê em céu azul, de uma objetividade atordoante.
Gols como esse são lances de pura precisão poética, intraduzíveis no ramerrão da prosa. Numa rigorosa elipse paradoxal, Romário chuta não chutando. E o pasmo da página em branco? No terceiro gol do mesmo jogo, na falta cobrada por Branco, Romário passa instintivamente através da bola sem tocá-la e sem se deixar tocar, seguido cegamente pelo marcador medusado, num embaralhamento das linhas de sentido que dá um curto-circuito na expectativa do goleiro. No segundo gol, Romário, impedido, vem voltando tão aparentemente alheio, diante de uma bola lançada em jogo, que toda a defesa holandesa também pára, num equívoco fático, que deixa o caminho praticamente aberto para a entrada legal de Bebeto.
Perícia e estúcia geniais de quem se apresenta e ausenta e sabe estar não estando, nos três momentos, em uma outra dimensão do tempo do jogo. Tudo isso se refere ao segundo maior artilheiro do futebol brasileiro em todos os tempos, de uma longevidade inequívoca e surpreendente. Acredito que o realismo terra-a-terra não sabe mesmo o que está perdendo.


José Miguel Wisnik é músico, compositor e professor de literatura brasileira na USP. É autor de "O Som e o Sentido" (Companhia das Letras) e "O Coro dos Contrários" (ed. Duas Cidades).


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