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O novo lugar do Brasil
Nenhum governo que tomar posse em 2011 terá força política para alterar o padrão em formação do novo lugar do Brasil no sistema mundial
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Modelo de inserção internacional do país ultrapassa disputas políticas e é impulsionado por razões econômicas que unem lulistas e tucanos
JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O ano eleitoral de
2010 prenuncia
conjecturas para
os temas da agenda nacional. Os defensores da manutenção da
atual coalizão no poder ensaiam um discurso afiado acerca do que merece ser modificado para garantir a gestão da
quadra histórica que se avizinha. Os advogados da alternância de poder inflamam o discurso
mudancista. Propõem correções de rumo nas políticas públicas, das contas-correntes ao combate à leniência
diante da corrupção até revisões nos programas de distribuição de renda.
As clivagens ideológicas vão
sendo desenhadas, embora os
atores ainda busquem posicionar-se melhor no teatro. A política externa, como política
pública do Estado democrático, não é exceção. Há sinais de
acirramento de posições, na
imprensa e nos discursos políticos recentes, em torno do ativismo diplomático brasileiro,
classificado pelos seus críticos
como além de nossas possibilidades e desproporcional aos
meios parcos que temos para
interferir na agenda global.
A acomodação da Venezuela
no Mercosul, a questão paraguaia [que envolve a renegociação do contrato de gestão da
energia produzida pela usina
de Itaipu] e as querelas em torno das perdas do Brasil em processos de indicação de candidatos nacionais para órgãos do
sistema multilateral ganharam
fôlego e servem de pretexto ao
início do debate já instalado
acerca da política exterior do
governo que tomará posse em
janeiro de 2011.
Livros e artigos acadêmicos
recentes sugerem proposições
taxonômicas, definições ideológicas de atores e visões alternativas à política externa de
Lula. Não faltam cientistas políticos ávidos por resumir em
poucas categorias analíticas as
complexidades da formação da
inserção internacional do Brasil. Vai ser preciso ir separando
o joio do trigo nos próximos
meses.
Em duas dimensões, creio
que o debate pode melhorar
sua qualidade. Em primeiro lugar, será preciso agregar nas investigações as categorias não
propriamente diplomáticas para o entendimento da inserção
internacional do país.
A diplomacia é instrumento
da política externa, que, embora seja política de Estado, é derivada de forças profundas que
vão além das visões ideológicas
dos chamados diplomatas "lulistas" ou dos embaixadores
aposentados do "tucanato"
paulista.
Essa divisão é artificial e
mesmo insuficiente para o entendimento das causalidades
que operam na base da construção da política pública chamada política externa. Reduzir
o debate a tal dimensão é futrica, não é ciência. Cadeiras serão sempre trocadas no Itamaraty a cada governo. E isso é republicano. É como deve ser o
Estado democrático.
Potência sul-americana
O adensamento das transformações econômicas que levaram o país ao mundo e o mundo
ao Brasil é a matriz da nossa inserção internacional mais arrojada dos últimos anos.
A internacionalização da
economia brasileira, mesmo
que em parte gerada na cola da
onda global, implicou redução
de vulnerabilidade econômica
externa, normalização do patamar na régua da globalização
assimétrica, mas também crescente presença de empresas
privadas e públicas baseadas no
Brasil. Esses elementos são determinantes para o impulso da
afirmação crescente da autonomia decisória em política externa. É nesse ambiente que se
localiza a retórica diplomática
em curso no Itamaraty.
A dimensão logística do Estado nacional é igualmente adensamento adequado ao esforço
de diversificação de parceiros
no mundo complexo em que vivemos. Essas duas dimensões
representam áreas de consenso
nas mais vivas e ativas correntes econômicas e sociais envolvidas no novo paradigma da inserção internacional do Brasil.
Esse modelo veio para ficar
para além de conservação do
bloco de poder atual ou de
eventual alternância de poder.
Ele concilia perfeitamente os
liberais com os nacionalistas,
os regionalistas com os globalistas e os brasileiros com o
mundo.
Um exemplo é possível ser
apresentado, entre outros possíveis. Embora possua raízes
históricas e conceituais na formação da política externa, a dimensão sul-americana da ação
externa do Brasil é renovada no
quadro da ampliação do raio de
interesses econômicos na vizinhança.
É por essa razão que as instruções das indústrias e dos exportadores paulistas são de
aproveitar as brechas dos ganhos na América do Sul, Venezuela inclusive, e em regiões
periféricas como o continente
africano. Os dados da balança
comercial e dos investimentos
externos diretos realizados pelo Brasil são claros.
O regionalismo realista não
é, portanto, uma opção ou escolha, é um desígnio histórico. Há
mais continuidade do que ruptura nesse processo. Há mais
consenso real nessa matéria do
que dizem os atores em suas
entrevistas, parte deles tomados por razões mais subjetivas,
eventualmente corporativas ou
por perda de espaços no processo decisório.
A diferença que pode haver é
de método, não de substância.
Setores políticos sugerem mais
cautela e recalcitrância nos
projetos de integração na região, como aquele percebido
pelo governador [de São Paulo]
José Serra, potencial candidato
da oposição. É crítico do ativismo integracionista e do ritmo
indutor do Brasil na região.
Mas não divergem PT e
PSDB no consenso essencial de
que o país deve estar de olho no
seu entorno por ser necessário
ao equilíbrio da região, como
potência regional e econômica
que é o Brasil. A Fiesp não aceitaria bem um afastamento do
Brasil do seu entorno.
Jogo internacional
Há ainda uma segunda ordem de questões que devem vir
na análise da política externa
do Brasil. O Brasil não está solto na ordem global. É necessário investigar a própria natureza do sistema internacional do
início do século 21 e suas implicações para a inserção internacional do Brasil.
Nenhum governo que tomar
posse em 2011 terá força política para alterar o padrão em formação do novo lugar do Brasil
no sistema mundial.
O Brasil cresce como ator
global e como país que não apenas importa regras do sistema
internacional, geralmente produzidas pelos países hegemônicos ou pelas potências estratégicas globais.
O país foi convocado a também ser formulador de conceitos e normas para o funcionamento do sistema, ainda que
precária seja a regulação dos
regimes internacionais.
É ululante que a nova responsabilidade carrega riscos e
dificuldades para o Estado nacional. Cuidado, consultas internas, consensos congressuais, mais diplomacia pública,
mais debate intelectual, mais
investimento estratégico e
mais estudo são necessários.
Essas adaptações, no entanto, não são questões ideológicas
ou derivadas apenas de percepções domésticas e partidárias.
Não teremos a chance de, nos
próximos anos, rever os termos
do jogo. Já estamos no meio dele, não há como voltar atrás.
O Brasil e outros viram seus
estatutos elevados na sociedade internacional. A China, já
em outro patamar, não é quase
mais do Sul. A Índia, a Rússia e
mesmo países com alguma hegemonia regional, como a África do Sul, passaram a ser convocados para a difícil construção de regras. Nenhuma nova
coalizão de poder no Brasil terá
interesse ou meios para mudar
essa vertente inexorável do novo padrão histórico da inserção
internacional do Brasil.
Conformamo-nos gradualmente, por agregação e não por
ruptura, como um país do Sul
mais moderno nas relações internacionais do início do século
21, menos vitimizado, conectado ao Norte, atuando em redes
conectadas e sem complexos
coloniais.
Interesses e valores do Brasil
no mundo oscilam em torno
desses consensos, internos e
externos, e sem os quais perde
força o entendimento da política externa do Brasil em processo eleitoral.
Em síntese, embora as eleições venham aí, e alguns desejem esquadrinhar a política externa, lamento dizer que há
mais consenso entre os atores
internos do que eles se atrevem
a declarar. E as categorias analíticas que separam de forma
estanque o processo, a dinâmica e a complexidade da formação da política externa brasileira estão fadadas ao insucesso.
Necessitamos melhorar a qualidade do debate.
JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA é professor
titular de relações internacionais na Universidade de Brasília e organizador de "História das Relações Internacionais Contemporâneas" (ed. Saraiva), entre outros livros.
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