São Paulo, domingo, 26 de julho de 2009

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O novo lugar do Brasil


Nenhum governo que tomar posse em 2011 terá força política para alterar o padrão em formação do novo lugar do Brasil no sistema mundial

Modelo de inserção internacional do país ultrapassa disputas políticas e é impulsionado por razões econômicas que unem lulistas e tucanos

JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O ano eleitoral de 2010 prenuncia conjecturas para os temas da agenda nacional. Os defensores da manutenção da atual coalizão no poder ensaiam um discurso afiado acerca do que merece ser modificado para garantir a gestão da quadra histórica que se avizinha. Os advogados da alternância de poder inflamam o discurso mudancista. Propõem correções de rumo nas políticas públicas, das contas-correntes ao combate à leniência diante da corrupção até revisões nos programas de distribuição de renda.
As clivagens ideológicas vão sendo desenhadas, embora os atores ainda busquem posicionar-se melhor no teatro. A política externa, como política pública do Estado democrático, não é exceção. Há sinais de acirramento de posições, na imprensa e nos discursos políticos recentes, em torno do ativismo diplomático brasileiro, classificado pelos seus críticos como além de nossas possibilidades e desproporcional aos meios parcos que temos para interferir na agenda global.
A acomodação da Venezuela no Mercosul, a questão paraguaia [que envolve a renegociação do contrato de gestão da energia produzida pela usina de Itaipu] e as querelas em torno das perdas do Brasil em processos de indicação de candidatos nacionais para órgãos do sistema multilateral ganharam fôlego e servem de pretexto ao início do debate já instalado acerca da política exterior do governo que tomará posse em janeiro de 2011.
Livros e artigos acadêmicos recentes sugerem proposições taxonômicas, definições ideológicas de atores e visões alternativas à política externa de Lula. Não faltam cientistas políticos ávidos por resumir em poucas categorias analíticas as complexidades da formação da inserção internacional do Brasil. Vai ser preciso ir separando o joio do trigo nos próximos meses.
Em duas dimensões, creio que o debate pode melhorar sua qualidade. Em primeiro lugar, será preciso agregar nas investigações as categorias não propriamente diplomáticas para o entendimento da inserção internacional do país.
A diplomacia é instrumento da política externa, que, embora seja política de Estado, é derivada de forças profundas que vão além das visões ideológicas dos chamados diplomatas "lulistas" ou dos embaixadores aposentados do "tucanato" paulista.
Essa divisão é artificial e mesmo insuficiente para o entendimento das causalidades que operam na base da construção da política pública chamada política externa. Reduzir o debate a tal dimensão é futrica, não é ciência. Cadeiras serão sempre trocadas no Itamaraty a cada governo. E isso é republicano. É como deve ser o Estado democrático.

Potência sul-americana
O adensamento das transformações econômicas que levaram o país ao mundo e o mundo ao Brasil é a matriz da nossa inserção internacional mais arrojada dos últimos anos.
A internacionalização da economia brasileira, mesmo que em parte gerada na cola da onda global, implicou redução de vulnerabilidade econômica externa, normalização do patamar na régua da globalização assimétrica, mas também crescente presença de empresas privadas e públicas baseadas no Brasil. Esses elementos são determinantes para o impulso da afirmação crescente da autonomia decisória em política externa. É nesse ambiente que se localiza a retórica diplomática em curso no Itamaraty.
A dimensão logística do Estado nacional é igualmente adensamento adequado ao esforço de diversificação de parceiros no mundo complexo em que vivemos. Essas duas dimensões representam áreas de consenso nas mais vivas e ativas correntes econômicas e sociais envolvidas no novo paradigma da inserção internacional do Brasil.
Esse modelo veio para ficar para além de conservação do bloco de poder atual ou de eventual alternância de poder.
Ele concilia perfeitamente os liberais com os nacionalistas, os regionalistas com os globalistas e os brasileiros com o mundo.
Um exemplo é possível ser apresentado, entre outros possíveis. Embora possua raízes históricas e conceituais na formação da política externa, a dimensão sul-americana da ação externa do Brasil é renovada no quadro da ampliação do raio de interesses econômicos na vizinhança.
É por essa razão que as instruções das indústrias e dos exportadores paulistas são de aproveitar as brechas dos ganhos na América do Sul, Venezuela inclusive, e em regiões periféricas como o continente africano. Os dados da balança comercial e dos investimentos externos diretos realizados pelo Brasil são claros.
O regionalismo realista não é, portanto, uma opção ou escolha, é um desígnio histórico. Há mais continuidade do que ruptura nesse processo. Há mais consenso real nessa matéria do que dizem os atores em suas entrevistas, parte deles tomados por razões mais subjetivas, eventualmente corporativas ou por perda de espaços no processo decisório.
A diferença que pode haver é de método, não de substância. Setores políticos sugerem mais cautela e recalcitrância nos projetos de integração na região, como aquele percebido pelo governador [de São Paulo] José Serra, potencial candidato da oposição. É crítico do ativismo integracionista e do ritmo indutor do Brasil na região.
Mas não divergem PT e PSDB no consenso essencial de que o país deve estar de olho no seu entorno por ser necessário ao equilíbrio da região, como potência regional e econômica que é o Brasil. A Fiesp não aceitaria bem um afastamento do Brasil do seu entorno.

Jogo internacional
Há ainda uma segunda ordem de questões que devem vir na análise da política externa do Brasil. O Brasil não está solto na ordem global. É necessário investigar a própria natureza do sistema internacional do início do século 21 e suas implicações para a inserção internacional do Brasil.
Nenhum governo que tomar posse em 2011 terá força política para alterar o padrão em formação do novo lugar do Brasil no sistema mundial.
O Brasil cresce como ator global e como país que não apenas importa regras do sistema internacional, geralmente produzidas pelos países hegemônicos ou pelas potências estratégicas globais. O país foi convocado a também ser formulador de conceitos e normas para o funcionamento do sistema, ainda que precária seja a regulação dos regimes internacionais.
É ululante que a nova responsabilidade carrega riscos e dificuldades para o Estado nacional. Cuidado, consultas internas, consensos congressuais, mais diplomacia pública, mais debate intelectual, mais investimento estratégico e mais estudo são necessários.
Essas adaptações, no entanto, não são questões ideológicas ou derivadas apenas de percepções domésticas e partidárias.
Não teremos a chance de, nos próximos anos, rever os termos do jogo. Já estamos no meio dele, não há como voltar atrás.
O Brasil e outros viram seus estatutos elevados na sociedade internacional. A China, já em outro patamar, não é quase mais do Sul. A Índia, a Rússia e mesmo países com alguma hegemonia regional, como a África do Sul, passaram a ser convocados para a difícil construção de regras. Nenhuma nova coalizão de poder no Brasil terá interesse ou meios para mudar essa vertente inexorável do novo padrão histórico da inserção internacional do Brasil.
Conformamo-nos gradualmente, por agregação e não por ruptura, como um país do Sul mais moderno nas relações internacionais do início do século 21, menos vitimizado, conectado ao Norte, atuando em redes conectadas e sem complexos coloniais.
Interesses e valores do Brasil no mundo oscilam em torno desses consensos, internos e externos, e sem os quais perde força o entendimento da política externa do Brasil em processo eleitoral.
Em síntese, embora as eleições venham aí, e alguns desejem esquadrinhar a política externa, lamento dizer que há mais consenso entre os atores internos do que eles se atrevem a declarar. E as categorias analíticas que separam de forma estanque o processo, a dinâmica e a complexidade da formação da política externa brasileira estão fadadas ao insucesso.
Necessitamos melhorar a qualidade do debate.


JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA é professor titular de relações internacionais na Universidade de Brasília e organizador de "História das Relações Internacionais Contemporâneas" (ed. Saraiva), entre outros livros.


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