|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de Fuga
Em busca da pulga perdida
Muitos cineastas, em seus filmes, citam outros, mas sempre aqueles que a história consagrou; Tarantino, ao contrário, suga forças de filmes desprezados
|
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
O centro de São Paulo, há
40 anos, era o lugar dos
cinemas. Grandes palácios, o Ipiranga, o Marabá, o
Marrocos. Elegantes, intelectuais, o Bijou, o Regina, o Coral:
neste só passavam produções
francesas. Havia ainda os pulgueiros, como o Oásis, que tinham programas duplos, dois
filmes pelo preço de um.
Eram os mais baratos. Misturavam fitas velhas com outras, mais recentes, de série B.
As películas arrebentavam e
eram coladas pelos projecionistas, que assim fabricavam
uma nova montagem, aleatória, cheia de soluços. Apareciam riscos verticais intermináveis, em curiosa dança sobre
a tela.
"Death Proof" ["À Prova de
Morte"], filme de Tarantino já
lançado nos EUA e na Europa
[e ainda sem previsão de estréia no Brasil].
Nele, o diretor retoma o tom
e o tipo de história freqüentes
nas "grindhouse", que eram,
numa certa medida, os pulgueiros norte-americanos.
"À Prova de Morte" recria as
perturbações, riscos, manchas
das antigas fitas maltratadas.
Satura e envelhece as cores.
Refaz o mesmo estilo negligente e canhestro, cheio de zooms
bruscos, de movimentos desajeitados da câmera, que, na origem, eram um não-estilo, um
estilo involuntário. Emprega
dublês, recusando os efeitos digitalizados de agora. O espectador que ele era transforma isso
tudo em recorrências estilísticas e estéticas.
Alturas
A concepção de "À Prova de
Morte" encontra paralelo em
duas práticas artísticas muito
altas: a da referência ao modelo
clássico que permite restaurar
a grandeza antiga em modo novo (por exemplo, Camões em
relação a Virgílio, Racine a Eurípides); e a da busca proustiana pela memória graças ao artifício da arte.
O Virgílio ou o Eurípides de
Tarantino são os filmes de série
B vistos em pulgueiros. Sua
Madeleine são os riscos, os cortes acidentais, as cores passadas, a brutalidade ingênua da
direção, todos os efeitos aleatórios de antes que ele fabrica hoje de modo intencional.
São também os bumbuns das
garotas com os shorts cavados,
as perseguições malucas de automóveis.
Nisso, há algo de deslocado.
Referências, em arte, costumam ser prestigiosas. Elas têm
a função de enobrecer a obra
recente ou de sublinhar a cultura do artista que a faz. Muitos
cineastas, em seus filmes, citam outros, mas sempre aqueles que a história consagrou.
Funcionam, por vezes, como sinais que garantem foros de nobreza intelectual.
Tarantino, ao contrário, suga
forças de filmes desprezados.
Ele o faz com sinceridade.
Afasta qualquer tom paródico,
qualquer pose superior. Impõe,
a si mesmo e a seu público, os
velhos pulgueiros como fonte
genuína de inspiração. Eleva-os à posição de modelos, numa
restituição que conforta sua
memória estética.
"À Prova de Morte", como
"Jackie Brown", parece se passar nos anos 1970, mas alguns
detalhes, como um telefone celular, são indícios do presente
que reforçam, ainda mais, a fusão com o passado.
Sobrado
"À Prova de Morte" elimina a
cisão tão corrente entre culturas inferior e superior. Abala
um preconceito comum e estéril que distingue "cultura de
massa" e "cultura elevada", "divertimento" e "arte", o andar de
baixo e o de cima.
Amarfanhado
Nos tempos do vinil, John
Cage, compositor de vanguarda, dizia que os barulhos parasitas nos discos velhos se incorporavam esteticamente à escuta. Um quarteto de Mozart com
chiados, craques, pulos, provocados nas agulhas por acidentes diversos, que delícia!
jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: + Dez Próximo Texto: Biblioteca Básica - Grande Sertão: Veredas Índice
|