São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2007

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Ponto de Fuga

Em busca da pulga perdida


Muitos cineastas, em seus filmes, citam outros, mas sempre aqueles que a história consagrou; Tarantino, ao contrário, suga forças de filmes desprezados

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O centro de São Paulo, há 40 anos, era o lugar dos cinemas. Grandes palácios, o Ipiranga, o Marabá, o Marrocos. Elegantes, intelectuais, o Bijou, o Regina, o Coral: neste só passavam produções francesas. Havia ainda os pulgueiros, como o Oásis, que tinham programas duplos, dois filmes pelo preço de um. Eram os mais baratos. Misturavam fitas velhas com outras, mais recentes, de série B.
As películas arrebentavam e eram coladas pelos projecionistas, que assim fabricavam uma nova montagem, aleatória, cheia de soluços. Apareciam riscos verticais intermináveis, em curiosa dança sobre a tela.
"Death Proof" ["À Prova de Morte"], filme de Tarantino já lançado nos EUA e na Europa [e ainda sem previsão de estréia no Brasil].
Nele, o diretor retoma o tom e o tipo de história freqüentes nas "grindhouse", que eram, numa certa medida, os pulgueiros norte-americanos.
"À Prova de Morte" recria as perturbações, riscos, manchas das antigas fitas maltratadas. Satura e envelhece as cores.
Refaz o mesmo estilo negligente e canhestro, cheio de zooms bruscos, de movimentos desajeitados da câmera, que, na origem, eram um não-estilo, um estilo involuntário. Emprega dublês, recusando os efeitos digitalizados de agora. O espectador que ele era transforma isso tudo em recorrências estilísticas e estéticas.

Alturas
A concepção de "À Prova de Morte" encontra paralelo em duas práticas artísticas muito altas: a da referência ao modelo clássico que permite restaurar a grandeza antiga em modo novo (por exemplo, Camões em relação a Virgílio, Racine a Eurípides); e a da busca proustiana pela memória graças ao artifício da arte.
O Virgílio ou o Eurípides de Tarantino são os filmes de série B vistos em pulgueiros. Sua Madeleine são os riscos, os cortes acidentais, as cores passadas, a brutalidade ingênua da direção, todos os efeitos aleatórios de antes que ele fabrica hoje de modo intencional. São também os bumbuns das garotas com os shorts cavados, as perseguições malucas de automóveis. Nisso, há algo de deslocado.
Referências, em arte, costumam ser prestigiosas. Elas têm a função de enobrecer a obra recente ou de sublinhar a cultura do artista que a faz. Muitos cineastas, em seus filmes, citam outros, mas sempre aqueles que a história consagrou.
Funcionam, por vezes, como sinais que garantem foros de nobreza intelectual. Tarantino, ao contrário, suga forças de filmes desprezados. Ele o faz com sinceridade.
Afasta qualquer tom paródico, qualquer pose superior. Impõe, a si mesmo e a seu público, os velhos pulgueiros como fonte genuína de inspiração. Eleva-os à posição de modelos, numa restituição que conforta sua memória estética.
"À Prova de Morte", como "Jackie Brown", parece se passar nos anos 1970, mas alguns detalhes, como um telefone celular, são indícios do presente que reforçam, ainda mais, a fusão com o passado.

Sobrado
"À Prova de Morte" elimina a cisão tão corrente entre culturas inferior e superior. Abala um preconceito comum e estéril que distingue "cultura de massa" e "cultura elevada", "divertimento" e "arte", o andar de baixo e o de cima.

Amarfanhado
Nos tempos do vinil, John Cage, compositor de vanguarda, dizia que os barulhos parasitas nos discos velhos se incorporavam esteticamente à escuta. Um quarteto de Mozart com chiados, craques, pulos, provocados nas agulhas por acidentes diversos, que delícia!


jorgecoli@uol.com.br


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