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Corpo e espírito
Björk fala do novo CD, "Volta", e diz que os EUA estão voltando
"a ser humanos"
STÉPHANE DAVET
No fim de março,
num pequeno restaurante elegante
que costuma freqüentar em Reikjavik, Björk recebeu a reportagem do "Le Monde" depois de
passar a manhã em seu veleiro.
De quimono, collant colorido
e sapatos de caminhada, a islandesa de traços mais lapões
que viquingues, que ocupa um
lugar central na música atual,
seguirá depois para um lugar
perto do porto, para ensaiar
com seu grupo a adaptação ao
palco das faixas de "Volta", seu
mais novo CD [selo Universal].
PERGUNTA - Voltar à Islândia é se
reabastecer mais perto da natureza?
BJÖRK - Vivi aqui até os 27 anos
e ainda passo a metade do meu
tempo [aqui]. Para mim, a vida
perto da natureza é normal. A
vida urbana é que uma evasão,
uma coisa exótica, como pode
ser a Disneylândia. Quem gostaria de viver lá todos os dias?
A civilização ocidental tende
a pensar que a vida perto da natureza é uma fantasia, uma utopia. Eu penso o contrário. Uma
parte de minha família, aliás,
come o que pesca, colhe e caça.
PERGUNTA - De onde vem a canção
"Earth Intruders", que parece ter
uma dimensão fantasmagórica?
BJÖRK - Estive na Indonésia, a
pedido da Unicef, um ano depois do tsunami. Fiquei marcada por essa viagem. Por causa
da diferença de horário e do
chamado à oração, eu acordava
às cinco da manhã. Saía para
andar nas ruas. Ainda havia um
cheiro de lama e de morte. Pessoas cavavam para encontrar
restos de parentes, roupas.
No avião de volta a Nova
York, sonhei que um maremoto humano varria meu avião e a
Casa Branca, tomava o poder e
trazia a justiça de volta ao planeta. Depois, no estúdio, fiz a
letra de "Earth Intruders" como um tsunami de palavras.
PERGUNTA - "Volta" é um álbum
que ecoa os tumultos mundiais?
BJÖRK - É principalmente um
álbum alegre. Raramente me
senti tão feliz e sólida. Talvez
seja por isso que falo dos outros. Vivemos uma época agitada, alguma coisa boa pode surgir. Pessoas que não se interessavam pela política hoje se interessam.
Depois dos choque do 11 de
Setembro e da reeleição de
[George W.] Bush, muitos problemas voltaram à superfície.
Hoje, nos EUA e na Europa,
compreende-se que a Guerra
do Iraque foi um erro. O complexo de superioridade dos
americanos sofreu um golpe.
Estão voltando a ser humanos.
PERGUNTA - "Vespertine" e "Medúlla", seus discos anteriores, pareciam mais interessados no intelecto que no corpo. "Volta" é mais físico?
BJÖRK - Eu sempre tentei unir
o corpo e o espírito. Na época
de "Medúlla", eu acabara de ter
um bebê, estava amamentando, portanto era físico, mas
muito introvertido.
Hoje minha filha tem quatro
anos e estou sem dúvida mais
inclinada a apreender fisicamente o mundo exterior. Talvez seja uma maneira de recuperar meu corpo. Sempre gostei de trabalhar com ritmos.
PERGUNTA - Os metais têm um lugar importante neste álbum. Por
que recrutar uma seção de metais
de dez islandesas?
BJÖRK - Já havia um bom número de metais em "Drawing
Restraint 9" [trilha original do
filme de seu companheiro, o artista Matthew Barney], mas
utilizados de modo mais abstrato. Antes compus com um
sampler, depois cheguei a usar
dez instrumentistas. Também
começamos a pensar na turnê.
Parecia claro que, entre os músicos e os técnicos, haveria
muitos homens. Então decidi
fazer um teste na Islândia somente com garotas! E deu certo. Elas são geniais!
PERGUNTA - Acha que a inovação é
o combustível da sua criação?
BJÖRK - Provavelmente sou
mais alimentada pelo tédio. Tenho a capacidade de concentração de uma adolescente. Às vezes digo a mim mesma que seria melhor gravar vários discos
com a mesma instrumentação,
mas não tenho paciência para
isso. Quando compreendo como as coisas funcionam, preciso passar para outro projeto.
PERGUNTA - Você se tornou um ícone da música, da moda e das artes
visuais. Era um de seus objetivos?
BJÖRK - Sempre tive um desejo
ardente de me exprimir. Se tenho consciência de um dever a
cumprir, é como mulher. Devo
perseverar nessa missão que o
acaso me deu e tentar atingir
meu pleno potencial. Porque,
desde que era menina, escutei
histórias de todas essas mulheres incrivelmente talentosas
que não puderam se realizar
por milhares de razões.
Este texto foi publicado no jornal "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .
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