São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2007

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Corpo e espírito

Björk fala do novo CD, "Volta", e diz que os EUA estão voltando "a ser humanos"

STÉPHANE DAVET

No fim de março, num pequeno restaurante elegante que costuma freqüentar em Reikjavik, Björk recebeu a reportagem do "Le Monde" depois de passar a manhã em seu veleiro.
De quimono, collant colorido e sapatos de caminhada, a islandesa de traços mais lapões que viquingues, que ocupa um lugar central na música atual, seguirá depois para um lugar perto do porto, para ensaiar com seu grupo a adaptação ao palco das faixas de "Volta", seu mais novo CD [selo Universal].  

PERGUNTA - Voltar à Islândia é se reabastecer mais perto da natureza?
BJÖRK
- Vivi aqui até os 27 anos e ainda passo a metade do meu tempo [aqui]. Para mim, a vida perto da natureza é normal. A vida urbana é que uma evasão, uma coisa exótica, como pode ser a Disneylândia. Quem gostaria de viver lá todos os dias?
A civilização ocidental tende a pensar que a vida perto da natureza é uma fantasia, uma utopia. Eu penso o contrário. Uma parte de minha família, aliás, come o que pesca, colhe e caça.

PERGUNTA - De onde vem a canção "Earth Intruders", que parece ter uma dimensão fantasmagórica?
BJÖRK
- Estive na Indonésia, a pedido da Unicef, um ano depois do tsunami. Fiquei marcada por essa viagem. Por causa da diferença de horário e do chamado à oração, eu acordava às cinco da manhã. Saía para andar nas ruas. Ainda havia um cheiro de lama e de morte. Pessoas cavavam para encontrar restos de parentes, roupas.
No avião de volta a Nova York, sonhei que um maremoto humano varria meu avião e a Casa Branca, tomava o poder e trazia a justiça de volta ao planeta. Depois, no estúdio, fiz a letra de "Earth Intruders" como um tsunami de palavras.

PERGUNTA - "Volta" é um álbum que ecoa os tumultos mundiais?
BJÖRK
- É principalmente um álbum alegre. Raramente me senti tão feliz e sólida. Talvez seja por isso que falo dos outros. Vivemos uma época agitada, alguma coisa boa pode surgir. Pessoas que não se interessavam pela política hoje se interessam.
Depois dos choque do 11 de Setembro e da reeleição de [George W.] Bush, muitos problemas voltaram à superfície. Hoje, nos EUA e na Europa, compreende-se que a Guerra do Iraque foi um erro. O complexo de superioridade dos americanos sofreu um golpe. Estão voltando a ser humanos.

PERGUNTA - "Vespertine" e "Medúlla", seus discos anteriores, pareciam mais interessados no intelecto que no corpo. "Volta" é mais físico?
BJÖRK
- Eu sempre tentei unir o corpo e o espírito. Na época de "Medúlla", eu acabara de ter um bebê, estava amamentando, portanto era físico, mas muito introvertido.
Hoje minha filha tem quatro anos e estou sem dúvida mais inclinada a apreender fisicamente o mundo exterior. Talvez seja uma maneira de recuperar meu corpo. Sempre gostei de trabalhar com ritmos.

PERGUNTA - Os metais têm um lugar importante neste álbum. Por que recrutar uma seção de metais de dez islandesas?
BJÖRK
- Já havia um bom número de metais em "Drawing Restraint 9" [trilha original do filme de seu companheiro, o artista Matthew Barney], mas utilizados de modo mais abstrato. Antes compus com um sampler, depois cheguei a usar dez instrumentistas. Também começamos a pensar na turnê.
Parecia claro que, entre os músicos e os técnicos, haveria muitos homens. Então decidi fazer um teste na Islândia somente com garotas! E deu certo. Elas são geniais!

PERGUNTA - Acha que a inovação é o combustível da sua criação?
BJÖRK
- Provavelmente sou mais alimentada pelo tédio. Tenho a capacidade de concentração de uma adolescente. Às vezes digo a mim mesma que seria melhor gravar vários discos com a mesma instrumentação, mas não tenho paciência para isso. Quando compreendo como as coisas funcionam, preciso passar para outro projeto.

PERGUNTA - Você se tornou um ícone da música, da moda e das artes visuais. Era um de seus objetivos?
BJÖRK
- Sempre tive um desejo ardente de me exprimir. Se tenho consciência de um dever a cumprir, é como mulher. Devo perseverar nessa missão que o acaso me deu e tentar atingir meu pleno potencial. Porque, desde que era menina, escutei histórias de todas essas mulheres incrivelmente talentosas que não puderam se realizar por milhares de razões.


Este texto foi publicado no jornal "Le Monde". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .


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