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FILOSOFIA
O filósofo alemão Karl-Otto Apel expõe seus argumentos contra o relativismo
filosófico atual
Como escapar do blablablá
LUIZ FELIPE PONDÉ
especial para a Folha
O filósofo Karl-Otto Apel vive
em uma pequena cidade nos arredores de Frankfurt (Alemanha).
A atmosfera desse lugar causa seguramente um estranhamento
para alguém acostumado com a
"promiscuidade antropológica"
de cidades como Nova York, São
Paulo ou Paris.
A sensação que se respira nesse
silêncio é que se está protegido do
universo ruidoso e agressivamente contingente do qual brota um
pensamento corrosivo como o
pragmatismo. Todavia tal violência epistemológica do pragmatismo norte-americano não é garantia evidente de sua inconsistência
filosófica. Para Apel é exatamente
esta sua guerra: encontrar em
meio à devastação causada por
pensadores como Heidegger, Gadamer, Wittgenstein e Rorty os
rastros de alguma luz que nos leve
de volta à "episteme" platônica ou
à Razão kantiana.
Percebe-se como ele se bate
contra a idéia de que a moral possa se dissolver no mundo sombrio
do senso comum vadio contemporâneo, no qual o obsessivo desejo de "felicidade" devora qualquer drama moral. Apel é um anti-relativista convicto, embora
aceite e reconheça o valor da crítica relativista em todos os seus
sentidos.
Como ultrapassar a semiótica, o
pragmatismo, a hermenêutica e o
historicismo racionalmente? Pela
prática de uma pragmática transcendental baseada em uma racionalidade argumentativa não-estratégica. Para Apel a comunicação como pura possibilidade já
depende de critérios éticos, do
contrário ela fracassa, isto é, perde-se a possibilidade de produzir
qualquer sentido mínimo. Faz-se
necessário o respeito pelo Outro:
o parceiro da comunicação está
inscrito nas condições de possibilidade (filosofia transcendental)
de materialização da Razão (que
estaria encarnada no uso da linguagem, por isso uma pragmática). "Argumento, logo existo".
Um outro a priori da Razão Pura.
Para o pragmatismo rortiano o
que falta em pensadores como
Apel e Habermas é "estômago"
para a absoluta contingência e por
isso insistem nessa obsessão por
filosofias transcendentais. Para
Apel (autor de "Estudos de Moral
Moderna", Ed. Vozes), quando o
homem aceita trocar alegremente
a "verdade" pelo "útil" ou "eficiente", ele na realidade selou sua
sorte: redução de sua capacidade
cognitiva e racional. Trata-se de
uma ameaça direta à verticalidade
do Homo sapiens.
Supor que a racionalidade estratégica (ainda que cheia de
"boas intenções ianques") possa
ser uma forma válida de se enfrentar a contingência ontológica
é condenar-nos à barbárie. De
qualquer forma, ouvir hoje alguém que busca quebrar uma certa unanimidade ruidosa acerca do
caráter "sagrado" da "eficiência"
como "virtude (pseudo) teologal"
que substitui a "verdade" -essa
coisa arcaica- é já saudável em
alguma medida, pois, se está correto dizer como Nelson Rodrigues que "toda unanimidade é
burra", é urgente discordarmos
para sermos menos idiotas.
Folha - Sua primeira tese foi
sobre Martin Heidegger e sua
preocupação então era muito ligada à hermenêutica e a Hans-Georg Gadamer?
Karl Apel - Sim. Comecei por
Heidegger e minha intenção era
fazer hermenêutica. Quando vi
então os primeiros resultados do
trabalho de Gadamer caí em
mim! Percebi que não era aquilo
que eu queria, embora meu interesse intelectual estivesse ligado
ao triângulo Heidegger/Gadamer/Wittgenstein...
Folha - A crítica de um "logos"
um tanto ingênuo? O senhor
concordaria com a idéia de que,
se analisarmos sua obra e sua
vida, poder-se-ia dizer que na
sua atividade de filósofo se encontram unidas sua história
existencial e suas preocupações
puramente conceituais?
Apel - Claro! É impossível não
ver que em mim o imperativo de
pensar a responsabilidade de um
homem pelo Outro e o problema
da ética existencialista irracional
de que cada um tem o direito de
buscar a si mesmo estão profundamente ligados. Isto é: o imperativo ético kantiano de buscar uma
ética válida em mim se torna uma
angústia existencial. Durante a
Segunda Guerra, fui voluntário;
naquela época não tínhamos uma
percepção clara do papel desastroso que teria a Alemanha na
guerra...
Lembro-me de um soldado alemão desertor que foi fuzilado
diante de meus olhos. Antes de
morrer, ele amaldiçoou Hitler, dizendo que na Alemanha não havia mais lugar para se viver como
indivíduo. O olhar dele me marcou profundamente. De alguma
forma comecei ali a despertar e
senti um sentimento de responsabilidade pelo destino daquele soldado.
Folha - O senhor diria que sua
obra é uma tentativa de responder ao impasse rortiano de que
os vocabulários que lidam com
problemas morais universais
não apresentam conexões conceituais, consistentes logicamente com os vocabulários
existenciais? Resumindo: Kant
não dialogaria com Kierkegaard
ou Heidegger?
Apel - Exatamente. Rorty é um
querido amigo. Ele é muito engraçado como pessoa, você sabe, tem
um humor fantástico. Diz o tempo todo: "Vamos escrever romances". Onde estão os seus romances? Só vejo ensaios filosóficos excelentes. "A verdade é a contingência!" Sou alguém que antes de
tudo espera contribuir para combater exatamente o que meu amigo Rorty representa: o relativismo, o pragmatismo.
Folha - Entre o binômio "sagrado" de hoje em dia, Wittgenstein/Heidegger, e o binômio "que esqueceu o Ser" e que
"não conheceu o relativismo
pragmático da linguagem", Platão/Kant, o senhor fica com o
segundo?
Apel - Sem nenhuma dúvida.
Mas um Platão e um Kant que "leram" o primeiro binômio que você colocou e abandonaram o "logos" ingênuo. Seria necessário ler
esses autores relativistas e fazer a
crítica deles em vez de criar modas paralisantes do pensamento,
como Derrida -sei que ele não é
só isso. É o que eu chamo de pragmática transcendental: assimilar a
crítica relativista (de todos os tipos) e buscar as condições de possibilidade da operação racional,
que se torna assim consciente de
seus determinantes históricos.
Veja: a crítica pragmática de que
os significados das palavras são
relativos ao meio político-social
que utiliza essas palavras (as formas de vida e os jogos de linguagem de que falam os wittgensteinianos), ou seja, a tal saída de cena
da metafísica como critério da
verdade para a entrada da política
e da contingência histórica como
critério, como diria meu amigo
Rorty, é um dado fundamental.
Não reconhecer o peso (e a angústia) da "verdade" que trouxe o
pragmatismo americano é uma
ilusão perigosíssima!
Todavia (e aí incorro no "pecado europeu", como diz Rorty, eu e
o Habermas somos grandes "pecadores"), não se pode simplesmente ficar paralisado diante da
vitória da "doxa" sobre a "episteme". É a morte do pensamento, e
é uma ilusão achar que o homem
pode sobreviver à morte do pensamento! Esse problema me parece crucial: os relativistas contemporâneos, principalmente os
pragmáticos, que são os mais radicais, não percebem que o valor
de sua "descoberta" está na crítica
que ela faz do solipsismo cognitivo e epistemológico da teoria do
conhecimento moderno (na realidade começa com Santo Agostinho).
Descartes, Kant, Husserl, todos
erraram quando pensaram que
era um tipo de "eu penso" solitário que poderia gerar uma racionalidade fundante para qualquer
"ciência". Proponho abandonar o
"eu penso" pelo "eu argumento".
E no plano moral ainda é mais
evidente tal fato: a moral, em sua
essência, não trata da realidade
individual e solitária de um homem. E essa é a grande liberação
da razão que trouxe Habermas
para os desesperados de Frankfurt: a Razão não é só evidentemente estratégica, e esta não é radicalmente racional. A razão está
concretamente presente na linguagem. Existem condições de
possibilidade universais que sustentam qualquer argumentação
séria possível, sem as quais o argumentador cai em autocontradição performativa. A filosofia
transcendental é que deve lançar
luz sobre essa questão.
Folha - Seria como dizer que,
na luta contra a "doxa", Platão
deveria escrever o "Heidegger",
o "Wittgenstein" e o "Rorty"?
Como se dá essa impossibilidade de ultrapassar a necessidade
universal da racionalidade a
priori?
Apel - Rorty diz: "Vamos deixar
essa história de querer produzir
conceitos universais". A menos
que ele esteja blefando, e aí é um
problema de não credibilidade
ética cognitiva (como diria Habermas), ele pressupõe que "vamos..." está alicerçado sobre argumentos que possuem o que os
analíticos chamam "validity
claims" (consistência material e
referencial das asserções). Ele sustenta que a saída é desistir da
"verdade"...
Folha - Trata-se de um exclusão pragmática da verdade?
Apel - Isso mesmo. Mas, sustentando a exclusão da "verdade", já
se sustentam os pressupostos argumentativos que possibilitam
defender esta idéia, a começar pelas palavras como "abandonar",
"conceitos", "validade" etc. Até
mesmo a letra "a". Negar isso é
cair em autocontradição performativa. Na realidade ninguém,
nem o segundo Wittgenstein,
nem Rorty, nem qualquer outro
representante do "linguistic-pragmatic-hermeneutic-turn"
pode renunciar ao recurso lógico-intelectual público para expor
suas teses relativistas acerca da
não validade universal das propostas filosóficas. No "público" já
está implícita a racionalidade discursiva. Assim sendo, os relativistas recorrem a esquemas não-relativistas da argumentação para
"provar" a não-racionalidade da
argumentação. É contradição
performática. Esse tipo de procedimento é um verdadeiro símbolo da atividade conceitual dos
pragmáticos não-transcendentais.
Folha - Mas como o senhor
responde à racionalidade estratégica (a questão "desesperada"
dos frankfurtianos)? Podemos
muito bem reconhecer que existe uma racionalidade imanente
à linguagem -assim como reconhecemos a racionalidade "físico-química"- e ainda assim a
instrumentalizarmos a partir de
nossa "razão cínica", como diz
Peter Sloterdijk. O senhor não
estaria sendo ingênuo, como diz
o Rorty?
Apel - Isso me lembra a eterna
questão de Dostoiévski: "Se a alma é mortal e Deus não existe, tudo é permitido". Em outras palavras, por que devo ser moral?
Folha - O problema indicado
por Dostoiévski aponta exatamente para a impossibilidade
de fundar uma ética no nível de
uma argumentação circular ou
imanente. Sem sair do mundo
da "corrupção" e do "temporário" não se chega a um imperativo universalmente válido.
Apel - Para que haja comunicação é necessário que o Outro fale e
reconheça o que eu falo. Nesse eixo já existe a assunção mínima de
que há um campo democrático e
de respeito na argumentação sem
o qual não existe comunicação. É
por isso que afirmo que é um tipo
de racionalidade que demanda
um outro tipo de binômio cognitivo: sujeito/co-sujeito e não sujeito/objeto, como nas teorias solipsistas modernas. É uma validade
epistemológica intersubjetiva e
não uma busca de objetividade
ingenuamente neutra, como nos
propõe uma ciência cega.
Os cientistas estão imersos em
uma comunidade comunicacional real, do contrário não conseguem nem mesmo fazer a hipótese "acontecer". Se um grupo de
pessoas discute algo com a intenção de chegar a uma conclusão,
quem roubar no jogo destrói a argumentação. Não se trata de uma
"adesão" volitiva irracional de tipo popperiano, mas de uma adesão racional cognitiva: se roubarmos no jogo, acaba a argumentação, e a cognição buscada se desfaz. Sem esse campo democrático
de respeito, toda fala é blablablá...
É a argumentação que deve ser o
modelo transcendental (sentido
kantiano) para a fundação de
uma ética atualmente (o que chamo de ética da discussão), em um
mundo pós-metafísico, sem Deus
e cheio de almas mortais que se
inter-relacionam não mais dentro
de esquemas culturais grupais fechados (que sustentavam a ética
solidária no passado), mas por
meio de gigantescas redes tecnológicas e comerciais impessoais.
Folha - Seria então o modelo
argumentativo -linguagem
normativa- a forma de suplantar a sensação pós-heideggeriana e pós-wittgensteiniana do
relativismo paralisante?
Apel - Sim. Retomando o que
dizia antes sobre a relação íntima
de minha vida com o impasse
moral relativista, fica clara minha
guerra contra a idéia de que se
possa ficar na consciência da temporalidade do "dasein" como horizonte ou mesmo da linguagem
pragmática imanente como "limite". Sem "eidos" não se pensa,
ainda que esse "eidos" tenha em
algum nível determinantes político-sociais e históricos, como bem
dizem os pragmáticos americanos (o fundo contingencial da historicidade).
Folha - O senhor identificaria
um certo "esquecimento do "logos'" em Heidegger, assim como ele identificou o "esquecimento do Ser"?
Apel - Sim. A verdade é "alethéia", mas também (e antes, logicamente) é "logos", do contrário
mergulhamos no silêncio ou no
ruído.
Luiz Felipe Pondé é doutor em filosofia e
professor do programa de estudos pós-graduados em ciências da religião da PUC-SP
(Pontifícia Universidade Católica) e da Universidade de Tel Aviv (Israel).
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