São Paulo, Domingo, 26 de Setembro de 1999
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FILOSOFIA
O filósofo alemão Karl-Otto Apel expõe seus argumentos contra o relativismo filosófico atual
Como escapar do blablablá

LUIZ FELIPE PONDÉ
especial para a Folha

O filósofo Karl-Otto Apel vive em uma pequena cidade nos arredores de Frankfurt (Alemanha). A atmosfera desse lugar causa seguramente um estranhamento para alguém acostumado com a "promiscuidade antropológica" de cidades como Nova York, São Paulo ou Paris.
A sensação que se respira nesse silêncio é que se está protegido do universo ruidoso e agressivamente contingente do qual brota um pensamento corrosivo como o pragmatismo. Todavia tal violência epistemológica do pragmatismo norte-americano não é garantia evidente de sua inconsistência filosófica. Para Apel é exatamente esta sua guerra: encontrar em meio à devastação causada por pensadores como Heidegger, Gadamer, Wittgenstein e Rorty os rastros de alguma luz que nos leve de volta à "episteme" platônica ou à Razão kantiana.
Percebe-se como ele se bate contra a idéia de que a moral possa se dissolver no mundo sombrio do senso comum vadio contemporâneo, no qual o obsessivo desejo de "felicidade" devora qualquer drama moral. Apel é um anti-relativista convicto, embora aceite e reconheça o valor da crítica relativista em todos os seus sentidos.
Como ultrapassar a semiótica, o pragmatismo, a hermenêutica e o historicismo racionalmente? Pela prática de uma pragmática transcendental baseada em uma racionalidade argumentativa não-estratégica. Para Apel a comunicação como pura possibilidade já depende de critérios éticos, do contrário ela fracassa, isto é, perde-se a possibilidade de produzir qualquer sentido mínimo. Faz-se necessário o respeito pelo Outro: o parceiro da comunicação está inscrito nas condições de possibilidade (filosofia transcendental) de materialização da Razão (que estaria encarnada no uso da linguagem, por isso uma pragmática). "Argumento, logo existo". Um outro a priori da Razão Pura.
Para o pragmatismo rortiano o que falta em pensadores como Apel e Habermas é "estômago" para a absoluta contingência e por isso insistem nessa obsessão por filosofias transcendentais. Para Apel (autor de "Estudos de Moral Moderna", Ed. Vozes), quando o homem aceita trocar alegremente a "verdade" pelo "útil" ou "eficiente", ele na realidade selou sua sorte: redução de sua capacidade cognitiva e racional. Trata-se de uma ameaça direta à verticalidade do Homo sapiens.
Supor que a racionalidade estratégica (ainda que cheia de "boas intenções ianques") possa ser uma forma válida de se enfrentar a contingência ontológica é condenar-nos à barbárie. De qualquer forma, ouvir hoje alguém que busca quebrar uma certa unanimidade ruidosa acerca do caráter "sagrado" da "eficiência" como "virtude (pseudo) teologal" que substitui a "verdade" -essa coisa arcaica- é já saudável em alguma medida, pois, se está correto dizer como Nelson Rodrigues que "toda unanimidade é burra", é urgente discordarmos para sermos menos idiotas.

Folha - Sua primeira tese foi sobre Martin Heidegger e sua preocupação então era muito ligada à hermenêutica e a Hans-Georg Gadamer?
Karl Apel -
Sim. Comecei por Heidegger e minha intenção era fazer hermenêutica. Quando vi então os primeiros resultados do trabalho de Gadamer caí em mim! Percebi que não era aquilo que eu queria, embora meu interesse intelectual estivesse ligado ao triângulo Heidegger/Gadamer/Wittgenstein...

Folha - A crítica de um "logos" um tanto ingênuo? O senhor concordaria com a idéia de que, se analisarmos sua obra e sua vida, poder-se-ia dizer que na sua atividade de filósofo se encontram unidas sua história existencial e suas preocupações puramente conceituais?
Apel -
Claro! É impossível não ver que em mim o imperativo de pensar a responsabilidade de um homem pelo Outro e o problema da ética existencialista irracional de que cada um tem o direito de buscar a si mesmo estão profundamente ligados. Isto é: o imperativo ético kantiano de buscar uma ética válida em mim se torna uma angústia existencial. Durante a Segunda Guerra, fui voluntário; naquela época não tínhamos uma percepção clara do papel desastroso que teria a Alemanha na guerra...
Lembro-me de um soldado alemão desertor que foi fuzilado diante de meus olhos. Antes de morrer, ele amaldiçoou Hitler, dizendo que na Alemanha não havia mais lugar para se viver como indivíduo. O olhar dele me marcou profundamente. De alguma forma comecei ali a despertar e senti um sentimento de responsabilidade pelo destino daquele soldado.

Folha - O senhor diria que sua obra é uma tentativa de responder ao impasse rortiano de que os vocabulários que lidam com problemas morais universais não apresentam conexões conceituais, consistentes logicamente com os vocabulários existenciais? Resumindo: Kant não dialogaria com Kierkegaard ou Heidegger?
Apel -
Exatamente. Rorty é um querido amigo. Ele é muito engraçado como pessoa, você sabe, tem um humor fantástico. Diz o tempo todo: "Vamos escrever romances". Onde estão os seus romances? Só vejo ensaios filosóficos excelentes. "A verdade é a contingência!" Sou alguém que antes de tudo espera contribuir para combater exatamente o que meu amigo Rorty representa: o relativismo, o pragmatismo.

Folha - Entre o binômio "sagrado" de hoje em dia, Wittgenstein/Heidegger, e o binômio "que esqueceu o Ser" e que "não conheceu o relativismo pragmático da linguagem", Platão/Kant, o senhor fica com o segundo?
Apel -
Sem nenhuma dúvida. Mas um Platão e um Kant que "leram" o primeiro binômio que você colocou e abandonaram o "logos" ingênuo. Seria necessário ler esses autores relativistas e fazer a crítica deles em vez de criar modas paralisantes do pensamento, como Derrida -sei que ele não é só isso. É o que eu chamo de pragmática transcendental: assimilar a crítica relativista (de todos os tipos) e buscar as condições de possibilidade da operação racional, que se torna assim consciente de seus determinantes históricos.
Veja: a crítica pragmática de que os significados das palavras são relativos ao meio político-social que utiliza essas palavras (as formas de vida e os jogos de linguagem de que falam os wittgensteinianos), ou seja, a tal saída de cena da metafísica como critério da verdade para a entrada da política e da contingência histórica como critério, como diria meu amigo Rorty, é um dado fundamental. Não reconhecer o peso (e a angústia) da "verdade" que trouxe o pragmatismo americano é uma ilusão perigosíssima!
Todavia (e aí incorro no "pecado europeu", como diz Rorty, eu e o Habermas somos grandes "pecadores"), não se pode simplesmente ficar paralisado diante da vitória da "doxa" sobre a "episteme". É a morte do pensamento, e é uma ilusão achar que o homem pode sobreviver à morte do pensamento! Esse problema me parece crucial: os relativistas contemporâneos, principalmente os pragmáticos, que são os mais radicais, não percebem que o valor de sua "descoberta" está na crítica que ela faz do solipsismo cognitivo e epistemológico da teoria do conhecimento moderno (na realidade começa com Santo Agostinho).
Descartes, Kant, Husserl, todos erraram quando pensaram que era um tipo de "eu penso" solitário que poderia gerar uma racionalidade fundante para qualquer "ciência". Proponho abandonar o "eu penso" pelo "eu argumento". E no plano moral ainda é mais evidente tal fato: a moral, em sua essência, não trata da realidade individual e solitária de um homem. E essa é a grande liberação da razão que trouxe Habermas para os desesperados de Frankfurt: a Razão não é só evidentemente estratégica, e esta não é radicalmente racional. A razão está concretamente presente na linguagem. Existem condições de possibilidade universais que sustentam qualquer argumentação séria possível, sem as quais o argumentador cai em autocontradição performativa. A filosofia transcendental é que deve lançar luz sobre essa questão.

Folha - Seria como dizer que, na luta contra a "doxa", Platão deveria escrever o "Heidegger", o "Wittgenstein" e o "Rorty"? Como se dá essa impossibilidade de ultrapassar a necessidade universal da racionalidade a priori?
Apel -
Rorty diz: "Vamos deixar essa história de querer produzir conceitos universais". A menos que ele esteja blefando, e aí é um problema de não credibilidade ética cognitiva (como diria Habermas), ele pressupõe que "vamos..." está alicerçado sobre argumentos que possuem o que os analíticos chamam "validity claims" (consistência material e referencial das asserções). Ele sustenta que a saída é desistir da "verdade"...

Folha - Trata-se de um exclusão pragmática da verdade?
Apel -
Isso mesmo. Mas, sustentando a exclusão da "verdade", já se sustentam os pressupostos argumentativos que possibilitam defender esta idéia, a começar pelas palavras como "abandonar", "conceitos", "validade" etc. Até mesmo a letra "a". Negar isso é cair em autocontradição performativa. Na realidade ninguém, nem o segundo Wittgenstein, nem Rorty, nem qualquer outro representante do "linguistic-pragmatic-hermeneutic-turn" pode renunciar ao recurso lógico-intelectual público para expor suas teses relativistas acerca da não validade universal das propostas filosóficas. No "público" já está implícita a racionalidade discursiva. Assim sendo, os relativistas recorrem a esquemas não-relativistas da argumentação para "provar" a não-racionalidade da argumentação. É contradição performática. Esse tipo de procedimento é um verdadeiro símbolo da atividade conceitual dos pragmáticos não-transcendentais.

Folha - Mas como o senhor responde à racionalidade estratégica (a questão "desesperada" dos frankfurtianos)? Podemos muito bem reconhecer que existe uma racionalidade imanente à linguagem -assim como reconhecemos a racionalidade "físico-química"- e ainda assim a instrumentalizarmos a partir de nossa "razão cínica", como diz Peter Sloterdijk. O senhor não estaria sendo ingênuo, como diz o Rorty?
Apel -
Isso me lembra a eterna questão de Dostoiévski: "Se a alma é mortal e Deus não existe, tudo é permitido". Em outras palavras, por que devo ser moral?

Folha - O problema indicado por Dostoiévski aponta exatamente para a impossibilidade de fundar uma ética no nível de uma argumentação circular ou imanente. Sem sair do mundo da "corrupção" e do "temporário" não se chega a um imperativo universalmente válido.
Apel -
Para que haja comunicação é necessário que o Outro fale e reconheça o que eu falo. Nesse eixo já existe a assunção mínima de que há um campo democrático e de respeito na argumentação sem o qual não existe comunicação. É por isso que afirmo que é um tipo de racionalidade que demanda um outro tipo de binômio cognitivo: sujeito/co-sujeito e não sujeito/objeto, como nas teorias solipsistas modernas. É uma validade epistemológica intersubjetiva e não uma busca de objetividade ingenuamente neutra, como nos propõe uma ciência cega.
Os cientistas estão imersos em uma comunidade comunicacional real, do contrário não conseguem nem mesmo fazer a hipótese "acontecer". Se um grupo de pessoas discute algo com a intenção de chegar a uma conclusão, quem roubar no jogo destrói a argumentação. Não se trata de uma "adesão" volitiva irracional de tipo popperiano, mas de uma adesão racional cognitiva: se roubarmos no jogo, acaba a argumentação, e a cognição buscada se desfaz. Sem esse campo democrático de respeito, toda fala é blablablá... É a argumentação que deve ser o modelo transcendental (sentido kantiano) para a fundação de uma ética atualmente (o que chamo de ética da discussão), em um mundo pós-metafísico, sem Deus e cheio de almas mortais que se inter-relacionam não mais dentro de esquemas culturais grupais fechados (que sustentavam a ética solidária no passado), mas por meio de gigantescas redes tecnológicas e comerciais impessoais.

Folha - Seria então o modelo argumentativo -linguagem normativa- a forma de suplantar a sensação pós-heideggeriana e pós-wittgensteiniana do relativismo paralisante?
Apel -
Sim. Retomando o que dizia antes sobre a relação íntima de minha vida com o impasse moral relativista, fica clara minha guerra contra a idéia de que se possa ficar na consciência da temporalidade do "dasein" como horizonte ou mesmo da linguagem pragmática imanente como "limite". Sem "eidos" não se pensa, ainda que esse "eidos" tenha em algum nível determinantes político-sociais e históricos, como bem dizem os pragmáticos americanos (o fundo contingencial da historicidade).

Folha - O senhor identificaria um certo "esquecimento do "logos'" em Heidegger, assim como ele identificou o "esquecimento do Ser"?
Apel -
Sim. A verdade é "alethéia", mas também (e antes, logicamente) é "logos", do contrário mergulhamos no silêncio ou no ruído.


Luiz Felipe Pondé é doutor em filosofia e professor do programa de estudos pós-graduados em ciências da religião da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica) e da Universidade de Tel Aviv (Israel).

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