São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

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+ brasil 505 d.C.

Distantes quanto à qualidade de vida, Brasil e Itália enfrentam problemas parecidos no combate ao crime organizado

Terra nostra

Boris Fausto

Brasil e Itália, aparentemente, aproximam-se mais no passado do que no presente. A principal e óbvia referência ao passado diz respeito ao fenômeno da imigração em massa, que deixou tanta influência no Sul do Brasil e no Estado de São Paulo, a ponto de sua capital ser chamada, na virada do século 20, de "cidade italiana". Ao mesmo tempo, nos dias de hoje, se a integração de gostos culinários, de acentos lingüísticos, de inúmeros sobrenomes trazem marca de origem, a Itália pareceria bem distante do Brasil, em termos de desenvolvimento. Para ficar em um só exemplo, em 2001, o Brasil figurava em 65º lugar e, a Itália, em 21º, no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), criado pela ONU. Entretanto, como ocorre em outros casos, nem tudo se reduz à quantificação. Muitos traços, sejam de ordem socioeconômica, sejam de ordem cultural, aproximam os dois países. Alguns deles são decorrentes da globalização, da introdução de novas tecnologias, de alterações do comportamento, sendo comuns, portanto, ao mundo ocidental; outros são mais específicos e suscitam mais interrogações. Incluem-se entre os traços mais gerais o desemprego, a informalidade nas relações de trabalho, o consumismo, a queda da taxa de natalidade etc. Entre os mais específicos, figuram as desigualdades regionais, o clientelismo associado à corrupção, o quase domínio da mídia televisiva por duas empresas privadas, os problemas da gestão administrativa governamental etc. Seleciono do leque de aproximações o tema da corrupção, tomando como base, para o caso italiano, o excelente livro de Paul Ginsborg, "Italy and Its Discontents" (algo como A Itália e Suas Inquietações, ed. Palgrave Macmillan), publicado em 2001. É claro que práticas corruptoras, envolvendo figuras públicas e do mundo privado, não são comuns apenas ao Brasil e à Itália, pois têm uma variável e longa presença mundial. Mas, guardadas as diferenças, uma incursão no caso italiano pode ser elucidativa dos dilemas do combate à corrupção nos dois países e das alternativas institucionais que vêm sendo discutidas no Brasil de hoje. Deixo de lado o tema complexo da origem das práticas delituosas para me concentrar na questão de seu combate -um esforço que vem sendo empreendido em ambos os países, embora com resultados limitados. Não por acaso, quando no Brasil se iniciaram ações mais sistemáticas contra certas práticas ilícitas -lavagem de dinheiro, tráfico de armas e de drogas, favorecimento em licitações e em negócios do Estado em geral-, houve seguidas referências à operação "mani puliti" (mãos limpas), desencadeada pelos quadros mais jovens da Promotoria Pública da Itália, a partir de 1992.

Aberrante ilegalidade
Antes, ao longo dos anos 80, como observa Ginsborg, dois fatos novos destacaram-se na vida social italiana: de um lado, o crescimento de uma aberrante ilegalidade, não restrita apenas à Máfia; de outro, a firme determinação de combatê-la, demonstrada por setores minoritários do governo. Essa determinação, aliás, levou à morte do general de carabineiros e governador da Sicília, Carlo Alberto dalla Chiesa, e de sua mulher, assassinados em Palermo, em setembro de 1982. A ofensiva anticorrupção foi bloqueada por decisões judiciais, assim como pelas iniciativas do governo socialista, liderado por Bettino Craxi. Craxi -diga-se de passagem- foi um triste exemplo de um personagem que, partindo de posições de esquerda, acabou processado e condenado por práticas de corrupção, refugiando-se em Túnis, onde morreu. Mas, a partir de um escândalo que explodiu em Milão, em 1992, a ofensiva contra a chamada "Tangentopoli" (cidade da corrupção) se estendeu a todo o país. A operação "mani puliti" produziu significativos resultados e não se deteve diante de figuras importantes dos meios políticos e empresariais italianos, alcançando os "intocáveis" por definição. No início, teve um formidável apoio da opinião pública e alguns promotores ganharam justificado prestígio, como foi o caso de Antonio di Pietro. Seu nome apareceu nos muros e monumentos de Milão com frases do gênero "Di Pietro, você é melhor que Pelé". Teve também seus heróis, alguns anônimos, outros bem conhecidos, como Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, assassinados pela Máfia em Palermo (1992) com diferença de poucos meses. Ao mesmo tempo, a ofensiva contra a corrupção foi acompanhada de alguns erros e excessos, entre eles o incentivo à politização do Judiciário, a inculpação de inocentes e o vazamento precipitado de informações aos meios de comunicação. Nas discussões da época, figurou o alcance da competência investigatória da Promotoria Pública, diante dos dispositivos do novo Código de Processo Penal, que tratou de restringi-la.

Declínio da investigação
Com o tempo, as pressões para pôr fim ou amenizar as investigações vieram de todos os lados, inclusive de setores médios da sociedade que tinham aplaudido o ataque aos figurões, mas se sentiram desconfortáveis quando muitas de suas práticas, entre elas a evasão fiscal, passaram a ser reprimidas. A trajetória de Di Pietro, embora seja um caso excepcional, simboliza o declínio da ofensiva investigatória. Após demitir-se de seu cargo, Di Pietro ensaiou uma incursão na carreira política no auge da popularidade, mas foi obstado por uma obscura investigação, indicando não propriamente ilicitude, mas certas transações não transparentes entre ele e seus amigos.
Comparar termo a termo a conjuntura vivida pelo Brasil e pela Itália não faz sentido. Mas as aproximações são evidentes, e, por isso mesmo, o caso italiano nos permite vislumbrar melhor as possibilidades e os limites da luta contra a corrupção. Luta hoje muito difícil na Itália, sob o comando de Silvio Berlusconi [premiê italiano], cujas práticas são conhecidas e que foi figura central no ataque a magistrados intitulados por ele "investigadores de toga vermelha". Luta também muito difícil no surpreendente Brasil de Lula, embora Lula e Berlusconi não sejam a mesma coisa.


Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 505 d.C." (depois de Cabral), do Mais!.


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