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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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+ brasil 504 d.C.

Eleição de Arnold Schwarzenegger neutraliza a luta pelo poder e impede o desvendamento da realidade social

A negação da política

José Arthur Giannotti

Não é à toa que se escreveram milhares de páginas a respeito da vitória do ator Arnold Schwarzenegger nas eleições para o governo do Estado da Califórnia. No final das contas, não exemplifica de forma mais ostensiva um dos modos de fazer política numa sociedade do espetáculo? Nos dias de hoje, quase tudo o que é precisa aparecer como se estivesse sendo encenado, e a política, considerada desde os gregos uma das formas do aparecer, se converte num momento muito particular do grande palco em que se converteu a televisão mundial. Não é de menosprezar o fato de que o mundo nos aparece primeiramente como tudo aquilo que a televisão nos é capaz de dizer. O que é o "reality show" senão a demonstração de que até mesmo uma situação concreta e vivida pode ser apresentada como se fosse momento de ficção? O noticiário mostra ao vivo um atentado ou uma batida da polícia como se fossem janelas para o mundo, mas nenhum desses fatos teria sentido histórico-social se não fosse dito, comentado, filmado, enfim, traduzido pelas linguagens da mídia. E, dentre elas, não é a televisiva que tende a dar a pauta para todas as outras?

Imperialismo da imagem
Tudo se passa como se houvesse uma inversão na maneira pela qual a palavra se relaciona com seu significado referente, porquanto o fato somente ganha sentido social à medida que aparece como aquilo que a imagem mostra. Bem sei que a linguagem configura o mundo, que as cores existem, por exemplo, como percepções diferenciadas, à medida que são ditas segundo uma escala, que pode ir da mais simples, como aquela que separa segundo o branco, o preto e o cinza, até as mais complexas, capazes de dizer os matizes mais sutis. Isso no nível da lógica do sensível, pois essa questão fica aquém da linguagem e da prática científica, que transforma as diferentes cores em diferentes comprimentos de onda.
Mas o mundo, convertido no referente da imagem televisionada, tende a se apresentar mediante aquele travejamento determinado pelas técnicas e pela linguagem desse meio. Tudo se passa como se fosse forma de produção midiática. Mais do que uma sociedade do espetáculo, porém, não vivemos transpassando uma teia de imagens posta a serviço de determinados poderes globalizantes?
Não há dúvida de que esse imperialismo da imagem é contrabalançado por outros recursos de informação, pelo modo por que nós mesmos percebemos e pensamos as coisas, pela diversidade do que é dito pelos outros meios, pelas contradições que eles nos mostram e assim por diante. Mas a televisão se tornou objeto tão familiar, tão presente nos momentos mais diversos de nossas vidas, que tende a dominar os modos reflexivos de nosso estar no mundo. O Estado sempre procurou exercer, de forma mais rígida ou mais branda, o controle da opinião pública. Mas é sintomático que, salvo engano meu, tenham sido os militares os primeiros a compreender a necessidade de formatar sistematicamente a imagem da guerra. Não poderiam deixar a mídia, particularmente a televisão, trabalhar segundo suas leis próprias, seja determinando o evento segundo as condições e potencialidades de seu meio específico, seja conformando a notícia para vir a ser boa mercadoria. A guerra, transformada em espetáculo, desenrolando-se na sala de visita como se fosse um jogo, ainda conserva seu lado de horror e assim pode servir de base a movimentos pacifistas. Não é o que aconteceu na Guerra do Vietnã? Depois dela ficou evidente a necessidade de evitar a todo custo que a televisão mostre os horrores da "guerra limpa". O massacre da população civil poreja pela imagem composta. Daí o acordo entre o complexo militar e o Estado com as grandes cadeias de televisão, sempre carentes de grandes subsídios. Não foi possível montar a invasão do Iraque como se fosse narrativa épica? Em outras palavras, como uma ficção, desprovida de dimensão declarativa. Os partidos políticos logo trataram de seguir por esses caminhos, associando-se aos monopólios da mídia já constituídos, comprando produtores e espaço na televisão. É natural que, procurando novas aberturas, se interessem por aqueles que já possuem capital televisivo. Quantas vezes já tramaram fazer de Silvio Santos ou de outras figuras conhecidas candidato ao governo do Estado e, até mesmo, à Presidência da República? Esse processo é diferente do que acontece quando um profissional da mídia ingressa na política, pois então ele se prepara para o exercício do poder, fazendo alianças, configurando adversários e, sobretudo, aprendendo a negociar. O personagem televisivo, ao contrário, vem jejuno para a arte da política, principalmente porque suas alianças são eventuais, configurando-se no processo das eleições. Não se estabelece entre ele e o partido um jogo de má-fé, pelo qual um imagina servir-se do outro fora do travejamento propriamente partidário? O principal é ganhar as eleições, depois, para governar, cada um imagina poder controlar o outro. Ora, esse recurso de apelar para um ator fora do jogo partidário nega a política em dois planos. Em primeiro lugar, aumenta o grau de imprevisão do processo de governar, pois um amador ascende a uma posição de mando sem preparo para decidir sobre questões complexas e incapaz de escolher auxiliares dos quais não pode fazer uma avaliação correta. Em segundo lugar, e esse me parece o lado mais perigoso, o ator, transformado em líder, termina impondo à política um viés autoritário, negando o jogo entre aliados e adversários para dela fazer processo de concessão de autoridade para "salvar" o país. Até que ponto esse recurso a um personagem configurado num meio diferente da própria política altera suas práticas? Ela sempre foi o lugar da palavra. Até mesmo na guerra os generais costumavam arengar suas tropas. É bem verdade que as transmissões radiofônicas, ainda no domínio da palavra, passaram a fazer parte da vida cotidiana do político, e até mesmo presidentes da República costumam manter programas periódicos nos quais encenam um diálogo com a população. Mas o rádio compete em faixa própria, mantém com seu público certo grau de intimidade, tendendo, por isso, a ser regional. É sintomático que os radialistas sejam incentivados a chegar, no máximo, à condição de deputado federal. Se Anthony Garotinho [atual secretário de Segurança Pública do Estado do Rio] veio do rádio, ele se configurou como político pelo jogo da própria política.

Estetização da política
Somente a televisão, principalmente nos períodos eleitorais, desenha a figura do político na sua plena generalidade, só ela faz de sua imagem algo mais denso do que sua própria pessoa. Desde os tempos da democracia ateniense, sabemos que a política está ligada a um balanço de aparências, o político se dirigindo à ágora mais para convencer do que para depurar a verdade. Nos momentos de crise, o poder podia ser delegado a um ditador, mas sempre com poderes definidos e por tempo determinado. Que a história esteja pontuada de aventureiros que assumem o poder, conquistam o apoio do povo e governam a seu bel-prazer é sabido de todos. Mas foi com o fascismo e com o nazismo, como observa Walter Benjamin, que a política foi estetizada, justamente para encobrir a violência que o totalitarismo foi capaz de desencadear. A estetização contemporânea, entretanto, vai além. De um lado, porque é kitsch, de outro, porque transforma o líder num fantoche, fantasiado de santo salvador. É possível dizer tudo de Hitler e de Stálin -Mussolini é figura duvidosa-, menos que não eram personalidades carismáticas e poderosas, capazes de realizar, por conta própria, o mal que fizeram.
Que mal ou bem pode implementar Arnold Schwarzenegger? O da incúria, a neutralização do jogo político, isto é, dessa luta pelo poder que aos poucos poderia desvendar aspectos do real, mas que cada partido tenta agora enquadrar num único molde para poder transformá-lo a seu modo. Schwarzenegger condensa numa imagem toda essa diversidade, nega o jogo, vale dizer, a negociação paciente, a mudança de aspecto, o risco e as zonas de indefinição. A prática política é substituída por uma aparência de prática, embora sob essa aparência continue a velha luta partidária, agora truncada, porém, de suas relações com seus públicos diversos, tornando-se expressão única de um poder anônimo e sem rosto. À concentração da diversidade dos aspectos do jogo político num ator transformado em imagem corresponde o fortalecimento de um poder que nega a diversidade, pretende aparecer como o bem contra o mal.
Ao dirigir-se a uma população indiscriminada, alinhavada numa figura imprecisa graças a sua reificação na imagem do ator-político, esse poder visa, sem aglutinar a população numa praça, sem fazer com que marche como se fosse um exército, a mobilizá-la na sua multiplicidade e dispersão, para que não se constitua como tal, para que não aja a não ser para dizer sim.
Os grupos diferenciados se tornam neutros conforme se identificam a uma imagem neutra, pensada, porém, como se fosse dotada de poderes sobrenaturais. Estetização kitsch que, em vez de servir de véu de uma violência que se esconde, serve de pano de fundo para o exercício de um poder que não legitima o adversário. Poder total, mas virtualmente invisível, já que trata de ser exercido por um fantoche.


José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve mensalmente na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).


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