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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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EM SEU NOVO TRABALHO, PREVISTO PARA SAIR NESTA SEMANA, O CRÍTICO LUIZ COSTA LIMA DISCUTE A REPRESENTAÇÃO DO HORROR A PARTIR DA EXPERIÊNCIA COLONIAL, EM AUTORES COMO JOSEPH CONRAD E GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

OS DISCURSOS DA OPRESSÃO

Manuel da Costa Pinto
Colunista da Folha

O poeta Haroldo de Campos costumava dizer que o Brasil tem grandes críticos literários, mas apenas um autêntico teórico da literatura: Luiz Costa Lima. A afirmação tem um sentido preciso. À diferença de ensaístas como Antonio Candido, João Alexandre Barbosa ou João Adolfo Hansen (que desenvolvem modelos de leitura de determinados autores ou períodos), a característica principal de Costa Lima sempre foi a criação de novos conceitos, aquilo que Haroldo de Campos identificou como "paixão da teoria (no sentido grego, etimológico, da palavra, que a aparenta a teatro e nos faz pensar num palcocênico de idéia em movimento dialético)".
Até o momento, o "palcocênico" de Costa Lima vinha sendo ocupado por dois tópicos dominantes: a mímesis (a interpretação da realidade contida nas representações literárias) e o "controle do imaginário" (os diferentes modos pelos quais a cultura ocidental circunscreveu a literatura a um espaço limitado do imaginário social e individual).
Agora, surge um novo ator em cena: a representação do horror provocado pela experiência colonial, tema do livro "O Redemunho do Horror - As Margens do Ocidente", que será lançado nesta quinta-feira, dia 30, na Livraria do Museu (tel. 0/xx/21/2205-0603), no Rio de Janeiro, às 19h30.
Dividido em três partes, o livro enfoca relatos que apreendem os momentos mais traumáticos da expansão ocidental: a aventura marítima portuguesa (em narrativas de viajantes que oscilam entre historiografia e ficção), o neocolonialismo inglês (presente nos romances de Joseph Conrad) e a "autocolonização" latino-americana (como podemos ler, por exemplo, em Gabriel García Márquez).
Essa abordagem temática, porém, não significa uma capitulação diante da voga dos estudos culturais. Ao contrário, um de seus propósitos foi "mostrar aos praticantes dos estudos culturais que, antes de se pretender dar conta do tratamento ficcional de um tema qualquer, há de se investir em uma teoria do discurso ficcional": não há uma relação mecânica entre fato e ficção, mas diferentes formas de reprodução -e, portanto, de produção- da realidade.
Nesse sentido, "O Redemunho do Horror" pode ser lido como o mais novo capítulo desse grande romance sobre a mímesis que Costa Lima escreve incessantemente -e sobre o qual nos fala a seguir.


No prefácio de "O Redemunho do Horror", o sr. afirma que o principal propósito do livro é investigar as representações literárias da "experiência do horror provocado pela presença sistemática do branco em terras distantes". Qual a singularidade desse horror que emerge da experiência colonial?
O tempo moderno não inventou a experiência do horror; sistematizou-a enquanto progressivamente expansiva. Conforme se infere sobretudo de Tucídides, nos tempos antigos o horror ou tinha uma escala bastante local -as expedições de uma cidade contra outra, frequentes, mas assistemáticas- ou decorria da força de um império, no caso o persa, ou de um proto-império logo abortado, como o ateniense. Em ambos os casos, era geograficamente pontual -uma cidade ou o conjunto das terras dos helenos. Com o Império Romano, o horror se estende quase aos limites do mundo conhecido (lembre-se o começo de "O Coração das Trevas").
Só que este era pequeno quanto às dimensões do planeta. Depois da queda de Roma, no Ocidente, a extrema fragmentação do poder não permite mais do que guerras locais, chegando no máximo às Cruzadas. O horror moderno é impensável sem o Estado ou o Estado-nação.

O sr. distingue o horror nas terras marginais (provocado por condições sociais) do horror gerado na Europa e nos EUA (motivado pela angústia). Não teria faltado uma categoria que contemplasse o Holocausto ou Shoah, considerado por historiadores como o horror em si?
Não julguei necessário mais do que uma referência de passagem ao Shoah porque não pretendia escrever uma história do horror e já havia dedicado parte do quarto capítulo de "Mímesis - Desafio ao Pensamento" ao Holocausto . O que aqui digo serve de horizonte para todo o livro: a diferença entre o horror metropolitano -que não analiso- e o horror colonial é apenas tendencial e não-rígida.
Não diria pois que o Holocausto encarna o horror em si, mas apenas antecipa a comunicação entre as formas modernas de horror, o dominantemente físico e o dominantemente psíquico. Para os contemporâneos, o Holocausto é a modalidade mais aguda do horror porque nenhuma racionalidade o explica. Nas palavras do historiador Dan Diner -em "Probing the Limits of Representation" (1992)-, é a "contra-racionalidade". Embora se possa considerá-lo uma terceira forma de horror, prefiro vê-lo como o extremo da confluência a que parecem tender suas formas modernas: em seu caso, um Estado "metropolitano" que esmaga suas próprias minorias.


Ainda quando bem-intencionados, os estudos culturais são um exercício amadorístico de história, sociologia e antropologia, cumprido a pretexto de um texto "literário"


O sr. diz que, para não cair no sociologismo, é preciso conciliar a abordagem temática do horror com a noção de que o texto é "um produto de configuração da linguagem". Esse tratamento configuraria um "topos" [lugar-comum ou tema recorrente na história da literatura]?
Os "topoi" eram definidos a partir da abordagem retórica da linguagem. Para que o horror seja legitimamente visto como "topos" será preciso uma abordagem que combine a configuração formal com a conjuntura histórico-social. A fim de diminuir o risco de um sociologismo documentalista, será preciso insistir em que essa outra abordagem só será viável se o analista for capaz de entender o texto como atualização de uma formação discursiva.
Por formação discursiva entendo um conjunto de enunciados que visa a certa meta -na história, a veracidade documentável do que houve; na ficção, a exploração de uma estória possível etc.-, que condiciona certos modos de expressão.
Nos casos referidos -os discursos da história e da ficção-, há sempre um trabalho sobre a linguagem. A preocupação com a linguagem não é, portanto, privilégio da literatura. Daí o interesse na comparação entre dois "historiadores", Barros e Diogo do Couto: tratando de um mesmo episódio, utilizando os mesmos dados factuais, eles os configuram de maneiras distintas porque os selecionam segundo óticas diversas. Nenhum dos dois é ficcional (!), nem um melhor do que o outro. Sem esse cuidado, continuar-se-á confundindo documentalismo e ficção, história e verdade factual. Suas consequências, entre nós, continuam desastrosas.

Nesse sentido, "O Redemunho do Horror" é uma resposta aos estudos culturais?
Sim, enfaticamente. Ainda quando bem-intencionados, os estudos culturais são um exercício amadorístico de história, sociologia e antropologia, cumprido a pretexto de um texto "literário". Além do aspecto polêmico, tratei de concretizar o modo como o socioistórico se infiltra no texto (ficcional ou histórico). Daí a importância da reflexão inicial sobre as formas discursivas.

Por que é importante distinguir o estatuto discursivo de obras como "Ásia" (João de Barros), "Década IV" (Diogo do Couto) e "Peregrinação" (Fernão Mendes Pinto) antes de avaliar a importância de seu testemunho?
O termo "testemunho" é empobrecedor se não se distinguem as diferentes formações discursivas a que os textos encaminham. Sem essa distinção, o que fiz se reduziria a algo como: "a chegada dos brancos à África e à Ásia elevou o horror à escala mundial". O que me importava não era a experiência temática em si, senão mostrar como ela difere de acordo com o tipo de texto com que se lida.
No caso, a historiografia nascente com Barros e Couto mostrava uma Ásia diferentemente modelada da formulada pelo livro de Mendes Pinto, inclassificável, perturbador da ordem discursiva porque não era história nem romance -gênero então ignorado, que era apenas vagamente anunciado.

O salto temporal que leva o leitor dos cronistas da expansão portuguesa ao império inglês (com Conrad) vincula o "redemunho do horror" à aventura colonial, vista da perspectiva do colonizador. Por que a inclusão de uma seção latino-americana? Quais os critérios de escolha de seus autores (Hudson, Carpentier, García Márquez)?
A seção latino-americana tem por protagonista o colonizado que se converteu em autocolonizador; o que, numa perspectiva mundial, no entanto supunha a permanência, sob outro modo, do colonizado. A expansão do redemunho até a América Latina supõe portanto uma figura mais complicada: o ex-colonizado -agora colonizador- que permanece colonizado. Os critérios foram meramente empíricos.
Os autores não foram escolhidos por sua estrita qualidade, mas sim pelo realce que dão ao horror e o modo como o tratam. William Henry Hudson, pouco conhecido no Brasil, me importava como o europeu aclimatado que escondia o ficcional no documental. García Márquez ocupa o outro extremo: o nativo que tematiza ficcionalmente a experiência do colonizado que se transforma em colonizador, mantendo-se colonizado. Entre um e outro, Carpentier abria o caminho contra o documentalismo de que, no século 19 latino-americano, apenas Machado escapara. Não fosse por questão de tamanho, teria ainda analisado Juan Rulfo.

Em seu livro, a experiência do horror se dá menos como experiência do "oprimido" do que como reconhecimento que o opressor faz de si mesmo. Por que o sr. não analisa a "história dos vencidos"?
Os relatos de colonizados na América Latina que conheço podem ser interessantes como documentos históricos. Mas não me interessei pelo horror como historiador ou antropólogo, e sim como alguém que se empenha em ver como o ficcional trabalha o social; como o ficcional é uma modalidade discursiva, volta a tríade básica: sociedade-formação discursiva-ficção. Esse tripé inicial visa a se opor à concepção documentalista de literatura, que permanece dominante entre nós.

Apesar do título de seu livro fazer menção a Guimarães Rosa, estão ausentes dele autores brasileiros -ausência que o sr. atribui ao fato de que "na literatura brasileira, antes ou depois de Rosa, quando o horror aparece, é gerado por motivos simplesmente internos". Entretanto "Os Sertões" não seria um caso de manifestação do horror da "endocolonização"?
Destaco duas partes na pergunta: (a) surpreendeu-me verificar que, na ficção brasileira, fora os poucos exemplos que assinalo, o horror é antes visto como uma experiência engendrada por motivos endógenos. Como se, no imaginário brasileiro, o país fosse visto à semelhança de uma unidade auto-suficiente. Só recentemente os romances de Milton Hatoum e Bernardo Carvalho o conectam ao sistema dominante no Ocidente.
Em vez de tentar uma explicação para essa espantosa singularidade, limito-me, no momento, a assinalá-la; (b) é certo que a endocolonização denunciada por "Os Sertões" não se confunde com o horror interno. Vejo-o, porém, como uma modalidade sua: ambos dependem do não-cumprimento, entre nós, do modelo socioeconômico do Ocidente exitoso.
O fato é que Euclides da Cunha, embora trate os agentes da República como mercenários da indústria bélica estrangeira, não esteve preocupado em relacionar o drama de Canudos com a articulação do Brasil oficial com o capitalismo. Não por acaso, a antropologia biológica que adotava o impediu de ver a conexão entre o que se passava dentro do país e as relações que ele mantinha com o sistema que o punha (e põe) em suas margens.
Repensar então a experiência moderna do horror tem, portanto, um propósito teórico -pensar o estatuto da ficção produzido e consumido nas margens- e um propósito político -considerar a sobrecarga da marginalidade na própria apreciação do que aqui se faz. Para isso, além do indispensável planejamento econômico, é fundamental que se invista no repensar a cultura -terreno em que continuamos como baratas tontas.

Sua obra vem se desenvolvendo como uma indagação continuada sobre a mímesis, sobre a linguagem literária entendida como "produção de diferenças". De que modo essa reflexão sobre o "horror" se relaciona com o problema da mímesis?
Em livros anteriores, esforcei-me em fazer uma releitura da mímesis, mostrando-a, ao contrário de seu entendimento habitual, como produto da tensão entre uma semelhança esperada e uma diferença alcançada. A obra fundada no princípio da mímesis não imita, não se conforma a algo existente, porque o elemento de semelhança apenas abre o caminho para a expressão da diferença. A ficção da mímesis não repõe a estrutura social, senão que explora possibilidades, a partir da semelhança das situações atualizadas em uma e outra.
Ora, neste livro, procuro mostrar o estabelecimento simultâneo de diferenças entre os processos da mímesis efetuada na metrópole ou em suas margens. Operacionalmente, isso se fez por uma mudança de abordagem: menos teórica do que terra-a-terra. Mas é um terra-a-terra que supõe a teorização antes empreendida.

O Redemunho do Horror
456 págs., preço não definido
de Luiz Costa Lima. Ed. Planeta (al. Ministro Rocha Azevedo, 346, 8º andar, CEP 01410-000, SP, tel. 0/xx/11/3088-2588).


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