São Paulo, Domingo, 26 de Dezembro de 1999


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Uma comédia surrealista


Editor-executivo da área política da "Veja" durante o governo Collor aponta falhas e omissões em "Notícias do Planalto", de Mario Sergio Conti, diretor de redação da revista na mesma época


por Paulo Moreira Leite

Debruçado sobre as relações entre Fernando Collor e a imprensa, o livro "Notícias do Planalto", de Mario Sergio Conti, recebeu o mesmo tratamento superficial e apressado oferecido ao personagem que o inspirou. Sem ler suas 719 páginas, muitos jornalistas resenharam o índice onomástico: pesquisaram nomes conhecidos e conferiram os trechos correspondentes. Não se fez uma leitura pausada e refletida, mas uma avaliação a partir de fragmentos.
Escrito pelo diretor de redação da "Veja" na época do caso Collor, o livro é uma tristeza. Em episódios decisivos as testemunhas básicas não foram ouvidas nem se conferiram informações divergentes. O livro descreve cenas verdadeiras de forma incorreta, narra como verdadeiros fatos que são fictícios. Como reconstituição histórica, "Notícias do Planalto" é uma comédia surrealista. Como visão ética e política, uma catástrofe.
Mario Sergio desperdiçou a chance de fazer uma boa reportagem sobre um episódio marcante da vida do país porque deixou o livro se corromper por suas amizades, relações pessoais e pessoais-profissionais, mesquinharias, baixarias, recalques, pequenas e grandes vinganças. Embora não conte nenhuma história nova bem amarrada, de vez em quando "Notícias do Planalto" apresenta uma novidade ou outra. Mas é parcial demais para servir como obra de referência. Como balanço final, é a prova de uma verdade há muito sabida no jornalismo: a amizade e a proximidade excessiva com os poderosos são o caminho mais comum e mais eficaz para a impostura e a falsidade, o erro e a arrogância.
O livro assume uma postura rastejante quando fala dos proprietários dos meios de comunicação, num servilismo que envergonha as relações trabalhistas depois da Lei Áurea. Um dos patrões é chamado de "impetuoso" e "cauteloso" ao mesmo tempo. Sobre outro, diz-se que seu sorriso "agrada às mulheres". Verdade que esses empresários merecem elogios. Não só porque empregam pessoas esquisitas, como os jornalistas, mas porque se arriscam a fazer jornais e revistas -em vez de vender salchichas- num país onde a liberdade de expressão é uma planta precária.
Mas o livro não precisava exagerar a ponto de ficar evidente a vontade de puxar o saco -ponto de partida para a renúncia a qualquer apuração honesta. Também não precisava esconder fatos desagradáveis e conhecidos. É injusto colocar Roberto Civita e Domingo Alzugaray, Octavio Frias e Roberto Marinho no mesmo patamar. Cada um tem seu talento, sua vocação, sua postura. Frias teve visão para examinar Collor com olhares críticos desde o início. Civita teve coragem para publicar a entrevista do irmão Pedro quando outros guardavam depoimento semelhante na gaveta.

Retrato escandaloso Com a turma da Dinda, já do outro lado da fronteira da legalidade, a vontade de distribuir agrados é a mesma, ou até maior, em termos relativos, quando se considera a natureza intrínseca do objeto dos elogios. Cláudio Humberto, o porta-voz do bateu-levou, é elogiado porque não aproveitou uma excelente oportunidade para fazer uma chantagem contra um jornalista.
O retrato do tesoureiro PC Farias é escandaloso. Mario Sergio afirma que PC tinha "três características essenciais: o pendor pela aventura, a vontade de apostar e ganhar e uma autoconfiança irrefreável". Outro traço era "sua confiabilidade: jamais deixou de honrar um compromisso". Quanto aos negócios, sustenta que "era um capitalista nato, um empresário em ascensão numa região miserável". É o fim do mundo. Já houve quem romantizasse o comunismo, quem preferisse o milagre da ditadura militar e até o caminho valorizado de Gustavo Franco. Mario Sergio romantiza a corrupção e o corrupto.
Entrevistado por Boris Casoy, ele defendeu a tese ambígua de que PC só arrancava dinheiro dos empresários porque tinha "muito charme". Boris, que é amigo de Mario Sergio, gostou do livro, mas não perdeu o juízo e lembrou que PC "tinha a chave do cofre".
Bondoso com os homens de dinheiro, mesmo quando se trata de criminosos, Mario Sergio permite-se uma postura mais distanciada quando fala dos jornalistas. Aquele grupo de repórteres que fez um trabalho pioneiro e já reconhecido recebe aplausos -sempre justos.
O livro também guarda palmas para um grupo de amigos do autor. São grandes jornalistas, felizmente. Pagando um tributo caro aos amigos dos amigos, no entanto, o livro abre espaço até para quem já fez estelionato com reportagens alheias. Como quem tem amigos também tem inimigos, um profissional como Ricardo Noblat, crítico duro e claro de Collor, degolado do "Jornal do Brasil" logo após o segundo turno, nem sequer é mencionado.

Massa de perdigueiros Outros jornalistas, mesmo os que tiveram um papel de relevo na cobertura, são tratados com desprezo, piadinhas, psicologia de botequim e comentários grosseiros. Há vários profissionais injustiçados: seu papel na cobertura foi reduzido, trabalhos de sua autoria acabaram atribuídos a outras pessoas. O livro ignora aquela massa de perdigueiros que cobriu o impeachment como uma epopéia coletiva, aliada ao baixo escalão da Polícia Federal, ao Ministério Público e aos sindicatos de bancários, tornando impossível uma virada do jogo a favor de Collor.
Mario Sergio cobriu o impeachment em sua cadeira de diretor de redação. Dependia dos repórteres para se manter informado sobre as denúncias e costumava exigir dos subordinados que revelassem de onde vinham suas histórias. Em confiança, eles abriam os nomes. Lendo o livro, descobriram que tomaram uma rasteira: o diretor abriu suas fontes. Dando a entender que o trabalho de apuração é tão fácil como forçar repórteres a revelar fontes na sala do chefe, Mario Sergio escreve, várias vezes, que o empresário fulano e o político sicrano "passaram" tal notícia para o jornalista beltrano -como se estivesse falando de artigo que se encomenda pelo correio.
"Notícias do Planalto" contém erros nas grandes histórias e também nos casos pequenos. O melhor exemplo está no caso mais importante, que envolve a edição do debate entre Collor e Lula pela Globo no segundo turno da campanha.
Sempre se considerou que, em última análise, o empresário Roberto Marinho, dono da TV Globo, era o responsável pela edição do debate. Primeiro, porque Marinho é o dono da Globo, tem uma conhecida vocação de animal político e já se definira a favor de Collor. Segundo, porque os profissionais que fizeram o serviço foram premiados, assumindo a direção do jornalismo da emissora. Terceiro, porque o próprio Roberto Marinho assistiu a uma primeira versão do debate, que não evidenciava a supremacia de Collor, e determinou que o trabalho fosse refeito.
Mario Sergio, que costuma se apresentar como amigo de Roberto Marinho, tenta sustentar que tudo foi obra do segundo escalão da Globo e consome páginas e páginas para demonstrar isso. Não convence e, no fim, agarra-se a um formalismo: como o regulamento da emissora que obrigava a distribuição de tempo igual para os dois candidatos não havia sido revogado pela diretoria, ela não pode ser responsabilizada.
Depois que o livro foi publicado, o jornalista Fernando Barros e Silva, da Folha, resolveu conferir. Descobriu que Mario Sergio não fez a lição de casa. Não ouviu uma testemunha chave: o jornalista Ronald Carvalho, que editou o debate. Esse depoimento amarra uma história que desmente a grande tese do livro. Se durante o dia Roberto Marinho determinou que o serviço fosse refeito, à noite telefonou para dar os parabéns.
Quem chegar à página 607 de "Notícias do Planalto" poderá ler a narrativa de um caso menor: uma discussão na redação da "Veja". É um trecho no qual Mario Sergio capricha na retórica realista: descreve ameaças, cobranças, pontos de interrogação e pontos de exclamação. A seguir, o livro de Mario Sergio descreve um diálogo de Mario Sergio com um editor que, em razão dessa discussão, pedira demissão.
O trecho termina com Mario Sergio contando que, graças a sua conversa, a demissão não se concretizou. O episódio não teria importância, em si, a não ser para demonstrar outro problema: a cena descrita acima é inteiramente falsa. Tudo: a briga, a discussão, o pedido de demissão, a pacificação. Mario Sergio Conti misturou situações e épocas diferentes. Não conferiu e publicou. Também acrescentou diálogos dramáticos -pura invenção.

Armário de esqueletos Com uma leitura atenta do livro descobre-se que essa falta de rigor não é obra do acaso. Uma revelação de Mario Sergio, que não tem relação direta com o caso Collor, esclarece a natureza frouxa de seu método de trabalho. Na página 101, ele conta que um profissional da "Veja", Elio Gaspari, é o verdadeiro autor daquela célebre frase de Joãozinho Trinta: "O povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual". Jornalistas podem e devem arrumar a declaração de um entrevistado, para torná-la mais clara e mesmo mais afiada. Podem até sugerir uma frase que ajude a desenvolver o raciocínio da pessoa. Mas não é disso que Mario Sergio está falando.
Para ele, a frase publicada pela "Veja" continua sendo de Elio Gaspari, e não de Joãozinho. Mario Sergio está dizendo, sem empregar todas as letras, que a revista cometeu uma fraude. É a sua opinião. A postura, contudo, é sintomática: nenhum constrangimento. Para ele, tudo ficou "nos limites das normas jornalísticas, na medida em que ninguém era forçado a encampar uma declaração. O seu fim último era levar um fato novo ao leitor". Com esse critério -ninguém é forçado a encampar uma declaração-, o livro define seu limite ético, uma forma de tolerância. O que ele chama de "fato novo" não é fato nem é novo.
É uma espécie de licença para inventar -basta que fique tudo combinado com a fonte. A regra é o sonho das assessorias, que sempre quiseram apresentar seus clientes mais inteligentes, mais apresentáveis, mais bonitos. Elas gostam de mostrar o que inventam. Os jornalistas lutam para fazer o contrário: mostrar apenas o que acontece.
Ao tocar na frase de Joãozinho, Mario Sergio abre um armário cheio de esqueletos. Em certa época os jornalistas da "Veja" eram autorizados a criar frases e pedir autorização das fontes para publicá-las em seu nome.
Algumas fontes, mais próximas, até autorizavam a publicação sem consulta -estavam certas de que jamais seriam prejudicadas com uma frase fora do tom e, ao mesmo tempo, poderiam ver seu nome divulgado. Vários profissionais da revista, inclusive o autor destas linhas, tem sua responsabilidade nesse comportamento. "Notícias do Planalto" não só perde a chance de fazer uma boa discussão sobre o tema como insiste em dizer que é assim mesmo.
Jornalistas erram muito. Existe uma fórmula geral para evitar erros: conferir sempre, depois mais uma vez, uma terceira. Os jornalistas alegam que nem sempre têm tempo para esse trabalho. Mas quem conversa com eles percebe que quase nunca falta tempo. Falta humildade e sobra arrogância.
O leitor que quiser saber de onde Mario Sergio tirou a versão para relatar determinado episódio ficará perdido. Com raríssimas exceções, o livro não informa suas fontes. Desde o século 19 se sabe que a diferença entre obra histórica e relato de memória são as fontes do pesquisador -documentos abertos à consulta, depoimentos arquivados, registros.
Citar fontes não é implicância acadêmica, mas uma conquista dos historiadores. Graças a elas, tornou-se possível relatar fatos que a história oficial tentava ignorar. Os historiadores fazem o possível para apresentar as fontes de suas pesquisas como se deve: no pé da página, logo depois da citação. O leitor agradece. É por meio da fonte que se julga a veracidade de um relato.
Quando há duas versões discordantes, a citação permite ao historiador explicar por que deu crédito a uma versão e não à outra. O leitor julga com sua consciência. A partir das notas de rodapé os profissionais do ramo fazem a crítica das fontes -que é o método pelo qual os historiadores estudam história.
Em "Notícias do Planalto" fica tudo escondido no fim do livro, onde há uma lista de obras consultadas e outra de fontes entrevistadas. Não dá para saber quem foi ouvido durante uma hora e quem falou durante um minuto, ao telefone. Não se sabe se Mario Sergio gravou as conversas ou tomou notas, distraído. Em geral o leitor nem sequer é avisado de que há mais de uma versão para um mesmo acontecimento. Também não é informado sobre qual fonte tem mais isenção e credibilidade para dar um depoimento.

O encoberto Um personagem misterioso de "Notícias do Planalto" é o autor. Não é fácil saber o que Mario Sergio fez em horas difíceis. Critica com tanta desenvoltura a cobertura da campanha de 1989 que parece que era correspondente no Alasca. Era redator-chefe, braço direito do diretor de redação e mais bem colocado do que ninguém para fazer sugestões, apresentar críticas e comprar brigas. Preferiu o silêncio.
Um mês e meio depois de publicar a entrevista de Pedro Collor, a "Veja" jogou a toalha. Numa conjuntura em que os empresários temiam que as investigações da CPI chegassem a suas empresas e em que o Planalto pretendia acabar com a apuração de qualquer maneira, Mario Sergio publicou uma capa ideal para enterrar o caso: anunciava o fim da crise política, prevendo que Collor ficaria em seu cargo. Servindo de coveiro da CPI, deixou a redação atônita com a decisão, mas nunca explicou o que tinha acontecido. Eis um grande episódio para uma reportagem sobre o impeachment explicar: quem o convenceu a disparar uma bomba suicida? Sofreu alguma pressão, ameaça? Imaginava-se que fosse aproveitar o livro para esclarecer. Ele não gasta dez linhas no caso.


Paulo Moreira Leite é jornalista, correspondente da "Gazeta Mercantil" em Washington; foi editor-executivo da área política da "Veja" durante o caso Collor.


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