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Quincas diante de si mesmo
Linhas deixadas por Machado são para ser pensadas
e salvadas no disco rígido
de nossa vida e memória
CARLOS HEITOR CONY
COLUNISTA DA FOLHA
Freitas, personagem
secundário de
"Quincas Borba",
define-se como "arquiteto de ruínas".
Outro Freitas, meu amigo
Edgard Freitas Jr., me lembra que Machado não é para
ser lido, mas pensado.
Por isso mesmo, dando
razão aos dois Freitas, ao
personagem e ao amigo,
sempre que me perguntam
qual é o romance que mais
aprecio na literatura brasileira, digo sempre que é
"Quincas Borba", continuação quase natural das "Memórias Póstumas de Brás
Cubas".
Comecei a percorrer o labirinto-enigma de Machado
pelo óbvio "Dom Casmurro". Durante uns 20 anos
considerava o drama de
Bentinho e Capitu como o
ponto alto da ficção nacional. Depois, passei a gostar
mais do "Brás Cubas", aquele capítulo final dos "não" é
uma das melhores páginas
da literatura universal. Somente na maturidade, depois de algumas releituras,
cheguei ao "Quincas Borba". E fiquei com ele para
sempre.
Não entendo de crítica literária, por isso me limitarei a transcrever algumas linhas que assinalei no texto ao longo de várias releituras. Como disse um dos
Freitas citados acima, são
para ser pensadas e salvadas
no disco rígido de nossa vida e memória.
"O maior pecado, depois
do pecado, é a publicação do
pecado. Em todo caso, é
mais seguro crer no pior. O
silêncio é um tumulto. A
moral é uma, os pecados são
diferentes. Que sabe a aranha a respeito de Mozart?
Ignorar era um benefício.
(A suspeita) vinha de si
mesmo ou de fora? Há entre
o céu e a terra muitas mais
ruas do que sonha a tua filosofia -ruas transversais."
Pedir-lhe perdão. De quê?
"Não sabia, mas queria ser
perdoado. Acabou por escrever todos os livros que
lera. Conversar com os seus
botões. Os botões operam
sincronicamente conosco;
formam uma espécie de senado, cômodo e barato, que
vota sempre as nossas moções. Minha vida é uma
imagem fiel da minha cara,
e vice-versa. Aqui é que o
ciúme trouxe ao nosso amigo uma dentada de sangue.
O desejo de saber tudo era,
em resumo, esperança de
descobrir que não havia nada. Tão certo é que a paisagem depende do ponto de
vista, e que o melhor modo
de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão."
"Ao vencedor, as batatas!
Tinha-as esquecido de todo,
a fórmula e a alegoria. De
repente, como se as sílabas
houvessem ficado no ar, intactas, aguardando alguém
que as pudesse entender,
uniu-as, recompôs a fórmula, e proferiu-a com a mesma ênfase daquele dia em
que a tomou por lei da vida e
da verdade. Não se lembrava inteiramente da alegoria;
mas a palavra deu-lhe o sentido vago da luta e da vitória: Ao vencedor, as batatas!"
Paro com as citações. Poderiam ser muitas, como
"os morangos adúlteros", os
"olhos amotinados", que me
parecem mais reveladores
do que os olhos oblíquos e
dissimulados de Capitu.
Gosto especialmente de
certas pontuações que são
freqüentes em "Quincas
Borba": sem público, diante
de si mesmo. A alma espanada. É muito; é demais.
Toda nada.
Machado tem sido criticado por desprezar a paisagem. Coelho Neto dizia que
as casas de Machado não tinham quintais -aliás, é o
que não faltava nos romances tradicionais daquele
tempo, sobretudo nos de
José de Alencar e do próprio Coelho Neto. Para explicar esse desprezo machadiano pela paisagem, Gilberto Freyre, este sim, um
apóstolo de quintais, observou que Machado não abria
janelas para não se deparar
com o morro fatal, onde
nascera.
Não aprecio pensamentos sofisticados. Prefiro os
de Quincas Borba, não o filósofo mas o cão que deu título ao livro: "Não dorme,
recolhe as idéias (...) Mas já
são muitas idéias, -são
idéias demais; em todo o caso, são idéias de cachorro,
poeira de idéias".
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