São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A ilha da razão

Vizinha ao Rio de Janeiro, mas distante do centro da capital, Itaguaí tem nome e geografia condizentes com a função de cenário de "O Alienista"

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

A centenária Biblioteca Municipal Machado de Assis, em Itaguaí, recebeu novas instalações em 2006. Prospera o município que sedia um dos principais portos de exportação de minério do Brasil. Nos tempos de Machado de Assis, Itaguaí não era um lugar tão desenvolvido. Itaguaí não era um lugar, era um nome.
A cidade era um nome distante. Hoje, com cerca de 95 mil habitantes, celebrizada por "O Alienista" e citada de passagem em outras páginas machadianas, Itaguaí é mais conhecida pelos cariocas de Santa Cruz (extremo oeste do Rio) como uma boa parada para consertos e borracharia nas oficinas espalhadas a caminho do porto.
Cem anos atrás, a cidade do Rio de Janeiro não havia chegado tão perto: o centro fica a cerca de 70 quilômetros dali. Em "O Alienista" a viagem requer uma comitiva e não se cogita ir e voltar no mesmo dia.
O misto de isolamento e proximidade em relação à capital fazia de Itaguaí um terreno conveniente para a história de ficção em que uma população inteira é submetida ao exame psiquiátrico e sua maioria é internada por insanidade -mesmo que Machado só conhecesse o lugar por ouvir falar.

Lucro
Apesar de serem facilmente encontráveis referências à estada de Machado em solo itaguaiense, não há documentos que atestem sua passagem por lá. Diz-se até mesmo que o escritor teria morado em Itaguaí.
"Isso é ridículo, sem fundamento. Ele pode até ter conhecido Itaguaí, mas não existe registro", diz Ubiratan Machado, que pesquisa a vida do escritor e é autor de livros como "Bibliografia Machadiana" (Edusp). A própria prefeitura, que reproduz em seu sítio (www.itaguai.rj.gov.br/historia.asp) a lenda de que Machado morou na Casa Verde, declara à reportagem não haver provas documentais.
Assim como o escritor pode se apropriar de um nome de cidade para fazer ficção, itaguaienses não perderam a chance de identificar uma Casa Verde. "Não era verde, na realidade, mas possuía janelas verdes, tal qual no conto", afirma Thomaz Amorim, doutor em literatura comparada que foi à cidade em busca do edifício.
Autêntica fonte de inspiração machadiana ou inspirada simulação, o casarão não rendeu lucro ao "turismo machadiano". Com um PIB per capita de R$ 26.788, maior do que os do Rio (R$ 19.524) ou de São Paulo (R$ 24.083, valores de 2005), o município tem outras necessidades. A casa teria sido demolida para a construção de uma agência bancária.

O nome
Alguém com conhecimentos de história pode tentar identificar em quem especificamente Machado pensava ao criar uma cidade de loucos; qualquer leitor sabe que, além da crítica específica, há um assunto universal.
E a biblioteca Machado de Assis ajuda a entender como a pequena cidade se prestava à escrita alegórica. Um mapa na parede mostra a geografia local: a foz do rio Itaguaí formando um delta, isolando uma porção de terra diante da baía de Sepetiba. "Tem material sobre a história de Itaguaí?" A bibliotecária puxa da própria mesa um fichário com cópias de livros, jornais e material governamental.
Lêem-se interpretações divergentes para o nome da cidade: "Tagoahy, água amarela"; "Itaguay, lago entre pedras". Eduardo Navarro, professor de tupi na USP, critica as traduções, preferindo aquela em que "ita" é pedra, "ku'a" é enseada e "y" é água ou rio - "rio da enseada de pedras". Mas diz não acreditar que tal etimologia pudesse "estar implícita num texto sem uma nota explicativa do escritor", mesmo numa época em que os leitores tinham mais afinidade com o idioma.
"A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente", diz Simão Bacamarte, o alienista. No texto de Machado de Assis, na geografia e na língua essa cidade fica perto, mas para chegar lá é preciso ultrapassar um limite.


Texto Anterior: Quincas diante de si mesmo
Próximo Texto: O altar e o trono
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.