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A ilha da razão
Vizinha ao Rio de Janeiro, mas distante do centro da capital, Itaguaí tem nome e geografia condizentes com a função de cenário de "O Alienista"
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
A centenária Biblioteca Municipal Machado de Assis, em
Itaguaí, recebeu novas instalações em
2006. Prospera o município
que sedia um dos principais
portos de exportação de minério do Brasil. Nos tempos de
Machado de Assis, Itaguaí não
era um lugar tão desenvolvido.
Itaguaí não era um lugar, era
um nome.
A cidade era um nome distante. Hoje, com cerca de 95
mil habitantes, celebrizada por
"O Alienista" e citada de passagem em outras páginas machadianas, Itaguaí é mais conhecida pelos cariocas de Santa Cruz
(extremo oeste do Rio) como
uma boa parada para consertos
e borracharia nas oficinas espalhadas a caminho do porto.
Cem anos atrás, a cidade do
Rio de Janeiro não havia chegado tão perto: o centro fica a
cerca de 70 quilômetros dali.
Em "O Alienista" a viagem requer uma comitiva e não se cogita ir e voltar no mesmo dia.
O misto de isolamento e proximidade em relação à capital
fazia de Itaguaí um terreno
conveniente para a história de
ficção em que uma população
inteira é submetida ao exame
psiquiátrico e sua maioria é internada por insanidade -mesmo que Machado só conhecesse o lugar por ouvir falar.
Lucro
Apesar de serem facilmente
encontráveis referências à estada de Machado em solo itaguaiense, não há documentos
que atestem sua passagem por
lá. Diz-se até mesmo que o escritor teria morado em Itaguaí.
"Isso é ridículo, sem fundamento. Ele pode até ter conhecido Itaguaí, mas não existe registro", diz Ubiratan Machado,
que pesquisa a vida do escritor
e é autor de livros como "Bibliografia Machadiana"
(Edusp). A própria prefeitura,
que reproduz em seu sítio
(www.itaguai.rj.gov.br/historia.asp) a lenda de que Machado morou na Casa Verde,
declara à reportagem não haver
provas documentais.
Assim como o escritor pode
se apropriar de um nome de cidade para fazer ficção, itaguaienses não perderam a
chance de identificar uma Casa
Verde. "Não era verde, na realidade, mas possuía janelas verdes, tal qual no conto", afirma
Thomaz Amorim, doutor em literatura comparada que foi à
cidade em busca do edifício.
Autêntica fonte de inspiração machadiana ou inspirada
simulação, o casarão não rendeu lucro ao "turismo machadiano". Com um PIB per capita
de R$ 26.788, maior do que os
do Rio (R$ 19.524) ou de São
Paulo (R$ 24.083, valores de
2005), o município tem outras
necessidades. A casa teria sido
demolida para a construção de
uma agência bancária.
O nome
Alguém com conhecimentos
de história pode tentar identificar em quem especificamente
Machado pensava ao criar uma
cidade de loucos; qualquer leitor sabe
que, além da crítica específica,
há um assunto universal.
E a biblioteca Machado de
Assis ajuda a entender como a
pequena cidade se prestava à
escrita alegórica. Um mapa na
parede mostra a geografia local:
a foz do rio Itaguaí formando
um delta, isolando uma porção
de terra diante da baía de Sepetiba. "Tem material sobre a história de Itaguaí?" A bibliotecária puxa da própria mesa um fichário com cópias de livros, jornais e material governamental.
Lêem-se interpretações divergentes para o nome da cidade: "Tagoahy, água amarela";
"Itaguay, lago entre pedras".
Eduardo Navarro, professor de
tupi na USP, critica as traduções, preferindo aquela em que
"ita" é pedra, "ku'a" é enseada e
"y" é água ou rio - "rio da enseada de pedras". Mas diz não
acreditar que tal etimologia pudesse "estar implícita num texto sem uma nota explicativa do
escritor", mesmo numa época
em que os leitores tinham mais
afinidade com o idioma.
"A loucura, objeto dos meus
estudos, era até agora uma ilha
perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente", diz Simão Bacamarte,
o alienista. No texto de Machado de Assis, na geografia e na
língua essa cidade fica perto,
mas para chegar lá é preciso ultrapassar um limite.
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