São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2008

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O ALTAR E O TRONO

Na novela, Machado de Assis faz da discussão sobre razão e loucura uma alegoria dos conflitos políticos do Império

IVAN TEIXEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Consensualmente, pensa-se que "O Alienista" (1882) fala da loucura como condição para satirizar o positivismo. Sustenta-se também que o texto ridiculariza a centralização do poder.
Em outra perspectiva, é possível interpretar a novela como paródia da luta pelo controle social, singularizada em momento agudo da disputa entre a igreja e a ciência, que dominam as verdadeiras hipóteses de comando -na narrativa, a política (vereadores e povo) nada mais faz do que se desgastar em gestos de retórica inoperante.
De modo mais amplo, trata-se de uma resposta alegórico-humorística a um conjunto de questões do Segundo Reinado: dissidências entre o Estado e a igreja; consolidação da psiquiatria no Brasil; discussões sobre a unidade do Império.
Fiel a certa diretriz internacionalista da Igreja Católica, o bispo de Olinda, dom Vital de Oliveira, proibiu, em 1872, a presença de maçons nas irmandades de sua jurisdição, no que foi seguido por dom Antônio de Macedo, em Belém. O Estado manifestou-se contra os interditos episcopais.
Como os bispos relutassem em sobrepor a Coroa ao Vaticano, o Conselho de dom Pedro 2º condenou-os a quatro anos de prisão. O Vaticano protestou, e a população brasileira ficou dividida. Houve mobilização política e cultural, até que, em 1875, os prelados foram anistiados. O imperador ter-se-ia, então, declarado "vencido, mas não convencido".
Os caricaturistas das revistas ilustradas produziram intenso discurso anticlerical. Rafael Bordalo Pinheiro, sintetizando o desfecho da crise, publicara uma charge em que o imperador recebe golpes de Pio 9º, com a legenda: "Afinal... deu a mão à palmatória!".
Sete anos após o conflito, Machado de Assis entrou no debate por meio da alegoria de "O Alienista", empregando o ceticismo irônico contra todas as forças em jogo, particularmente contra a Igreja Católica.
A novela pode ser entendida como uma variante verbal das caricaturas do período, das quais se pode tomar a de Bordalo Pinheiro como símbolo, graças a seu poder de síntese.
Nas veladas insinuações da autoridade do padre Lopes sobre Simão Bacamarte, vislumbra-se o interminável debate entre a teologia e a ciência, empenhadas com igual obstinação em apresentar a melhor hipótese sobre a origem do mundo e os meios de governá-lo.
Na trama, a igreja não só vigia como procura orientar os movimentos da ciência. Esse pormenor, aliás, será um dos enigmas da narrativa, que, em meio ao crescente prestígio da ciência, como que esconde, para revelar, a camaleônica autoridade da igreja sobre aquela noção que se projeta até o final do texto, quando o vigário pronunciará o veredicto sobre a insanidade do alienista.
Bacamarte, impondo-se como o mais elevado grau de racionalidade civil, será metáfora não só de d. Pedro 2º, mas do governo ilustrado da razão. Sua face cômica decorre do exagero da convicção no poder moderador do juízo, propriedade que, não obstante, torna-o primeiro e único na cidade.
Padre Lopes, por outro lado, será interpretado como encarnação das infiltrações dos arranjos de corte e do suposto bom senso, orientados para o controle da população. As alusões contra a igreja não pretendem caricaturar sua disposição para o mando, mas ironizar os artifícios empregados para dissimular essa disposição.
Apesar do zelo do clero contra a ciência, padre Lopes não resiste ao segundo conceito de loucura da novela e é internado na Casa Verde. Mas, como a terapia lhe oferecesse a hipótese de uma fraude vantajosa, reduz-se imediatamente à normalidade do vicio e é solto.
O alienista, por suspeitar que ele próprio seja a única pessoa com retidão de caráter em Itaguaí, põe-se à prova diante de um conselho presidido pelo padre Lopes. O vigário não hesita em denunciar as invulgares qualidades éticas do médico -o que o obriga a se internar como anormal, por correto.
Assim como, na narrativa da história, o Vaticano triunfou sobre o imperador, não se pode negar que a novela termina pela vitória da teologia.
Após encarcerar a ciência na Casa Verde, padre Lopes, que antes elogiara as virtudes do médico, impõe-se o trabalho de espalhar o boato de que jamais houvera outro louco em Itaguaí a não ser o alienista.
No limite, o livro insinua o princípio de que o poder deve emanar da razão, encarnada em feixe ideal de forças concêntricas de virtudes absolutas, que se associam à ciência, à isenção e à verdade, concebidas como adequação do logos à práxis. Mas, como o mundo vive às avessas, essa noção também não resiste ao riso.


IVAN TEIXEIRA é professor de literatura brasileira na Escola de Comunicações e Artes da USP e na Universidade do Texas, em Austin.


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