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O ALTAR E O TRONO
Na novela, Machado de Assis faz da discussão sobre razão e loucura uma alegoria dos conflitos políticos do Império
IVAN TEIXEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Consensualmente,
pensa-se que "O
Alienista" (1882) fala
da loucura como
condição para satirizar o positivismo. Sustenta-se
também que o texto ridiculariza a centralização do poder.
Em outra perspectiva, é possível interpretar a novela como
paródia da luta pelo controle
social, singularizada em momento agudo da disputa entre a
igreja e a ciência, que dominam
as verdadeiras hipóteses de comando -na narrativa, a política (vereadores e povo) nada
mais faz do que se desgastar em
gestos de retórica inoperante.
De modo mais amplo, trata-se de uma resposta alegórico-humorística a um conjunto de
questões do Segundo Reinado:
dissidências entre o Estado e a
igreja; consolidação da psiquiatria no Brasil; discussões sobre
a unidade do Império.
Fiel a certa diretriz internacionalista da Igreja Católica, o
bispo de Olinda, dom Vital de
Oliveira, proibiu, em 1872, a
presença de maçons nas irmandades de sua jurisdição, no
que foi seguido por dom Antônio de Macedo, em Belém. O
Estado manifestou-se contra
os interditos episcopais.
Como os bispos relutassem
em sobrepor a Coroa ao Vaticano, o Conselho de dom Pedro
2º condenou-os a quatro anos
de prisão. O Vaticano protestou, e a população brasileira ficou dividida. Houve mobilização política e cultural, até que,
em 1875, os prelados foram
anistiados. O imperador ter-se-ia, então, declarado "vencido,
mas não convencido".
Os caricaturistas das revistas
ilustradas produziram intenso
discurso anticlerical. Rafael
Bordalo Pinheiro, sintetizando
o desfecho da crise, publicara
uma charge em que o imperador recebe golpes de Pio 9º,
com a legenda: "Afinal... deu a
mão à palmatória!".
Sete anos após o conflito,
Machado de Assis entrou no
debate por meio da alegoria de
"O Alienista", empregando o
ceticismo irônico contra todas
as forças em jogo, particularmente contra a Igreja Católica.
A novela pode ser entendida
como uma variante verbal das
caricaturas do período, das
quais se pode tomar a de Bordalo Pinheiro como símbolo,
graças a seu poder de síntese.
Nas veladas insinuações da
autoridade do padre Lopes sobre Simão Bacamarte, vislumbra-se o interminável debate
entre a teologia e a ciência, empenhadas com igual obstinação
em apresentar a melhor hipótese sobre a origem do mundo e
os meios de governá-lo.
Na trama, a igreja não só vigia como procura orientar os
movimentos da ciência. Esse
pormenor, aliás, será um dos
enigmas da narrativa, que, em
meio ao crescente prestígio da
ciência, como que esconde, para revelar, a camaleônica autoridade da igreja sobre aquela
noção que se projeta até o final
do texto, quando o vigário pronunciará o veredicto sobre a
insanidade do alienista.
Bacamarte, impondo-se como o mais elevado grau de racionalidade civil, será metáfora
não só de d. Pedro 2º, mas do
governo ilustrado da razão. Sua
face cômica decorre do exagero
da convicção no poder moderador do juízo, propriedade que,
não obstante, torna-o primeiro
e único na cidade.
Padre Lopes, por outro lado,
será interpretado como encarnação das infiltrações dos arranjos de corte e do suposto
bom senso, orientados para o
controle da população. As alusões contra a igreja não pretendem caricaturar sua disposição
para o mando, mas ironizar os
artifícios empregados para dissimular essa disposição.
Apesar do zelo do clero contra a ciência, padre Lopes não
resiste ao segundo conceito de
loucura da novela e é internado
na Casa Verde. Mas, como a terapia lhe oferecesse a hipótese
de uma fraude vantajosa, reduz-se imediatamente à normalidade do vicio e é solto.
O alienista, por suspeitar que
ele próprio seja a única pessoa
com retidão de caráter em Itaguaí, põe-se à prova diante de
um conselho presidido pelo padre Lopes. O vigário não hesita
em denunciar as invulgares
qualidades éticas do médico
-o que o obriga a se internar
como anormal, por correto.
Assim como, na narrativa da
história, o Vaticano triunfou
sobre o imperador, não se pode
negar que a novela termina pela vitória da teologia.
Após encarcerar a ciência na
Casa Verde, padre Lopes, que
antes elogiara as virtudes do
médico, impõe-se o trabalho de
espalhar o boato de que jamais
houvera outro louco em Itaguaí a não ser o alienista.
No limite, o livro insinua o
princípio de que o poder deve
emanar da razão, encarnada
em feixe ideal de forças concêntricas de virtudes absolutas,
que se associam à ciência, à
isenção e à verdade, concebidas
como adequação do logos à
práxis. Mas, como o mundo vive às avessas, essa noção também não resiste ao riso.
IVAN TEIXEIRA é professor de literatura brasileira na Escola de Comunicações e Artes da USP
e na Universidade do Texas, em Austin.
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