São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2005

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O escritor cubano Guillermo Cabrera Infante, morto na última segunda-feira em Londres, onde se exilara desde 1966, pintou a agitação e a angústia em seu país natal por meio da crítica social e do arrojo lingüístico

Havana sob luzes e sombras

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Convidado a escrever este artigo em cima da hora, de imediato me digo que aceitá-lo será uma irresponsabilidade. Logo, entretanto, me desdigo: prestar uma homenagem póstuma a Guillermo Cabrera Infante (1929-2005) é uma dívida pessoal ou, mais do que minha, de um grupo de amigos agora dispersos.
Na década de 1970, aqueles que não tinham condições de se exilar -eu próprio não tinha direito a passaporte- nem confiavam na eficácia da resistência armada, dispunham de poucos meios de defesa. A todo instante alguém desaparecia.


A noite esfuziante é o contra- ponto ao horror do dia


Entre aqueles poucos meios, estava o entusiasmo provocado pela leitura de alguns ficcionistas latino-americanos. De orientações político-literárias diversas -Borges, Rulfo, Carpentier, Macedonio Fernández-, sua pluralidade aumentava com os cubanos -Virgilio Piñera, Lezama Lima, Cabrera Infante e, por alguns de seus contos, o depois supermaldito Reinaldo Arenas.
Por certo que o boom do romance latino-americano, estimulado pelos editores espanhóis, ajudava a circulação de seus nomes, mas não o explicava. A leitura que deles fazíamos não era de passatempo ou de fuga. Ao contrário, dava ao grupo de amigos a convicção de que o continente destroçado por ditaduras mostrava um vigor, uma capacidade de renovação que era uma alternativa para a apatia ou o desespero. As forças que sua leitura provocava eram por certo frágeis ou, no instante da bala, insignificantes. Ante metralhadoras em riste, que significa o estímulo das palavras? Mas a nós, então jovens candidatos a intelectuais, elas nos eram preciosas.
E o próprio fato de que, com exceção de Carpentier, não fossem "companheiros de viagem" ou, no caso dos cubanos, fossem ou houvessem se tornado persona non grata ao regime avivava o sentido de que a resistência de que participávamos não se esgotava em uma meta imediata. Não se trata de agora minimizar a luta política contra os regimes que nos sufocavam. Ela era a imediata e, a seu favor, sabíamos ser muito pequena nossa colaboração.
Mas, ao lado dela ou sob ela, como uma camada paralela e subterrânea, aqueles ficcionistas nos faziam intuir que a capacidade de inovação, de sátira ou de recusa dos slogans oficiais nos fazia perceber que o continente mostrava uma disposição inovadora, que se chocava contra as trevas espessas do momento e de séculos. As ditaduras manietavam o continente, serviçais aos interesses dos que se diziam paladinos da liberdade e da civilização cristã. Mas ele estivera manietado desde antes e, o que não poderíamos imaginar, continuaria, sob formas mais sutis, a estar depois.
Os ficcionistas que líamos nos davam condições de compreender um quadro que nos obrigava à leitura de outros autores, filósofos, historiadores, antropólogos.
Dentre os nomes que acima recordo, o contraste maior era entre a ficcionalização de questões metafísicas, realizada por Borges, a experimentação labiríntica da linguagem de Lezama e a irreverência insuflada pelas práticas cotidianas contra o castelhano castiço de "Três Tristes Tigres", de Cabrera Infante. Já o "traba lenguas" de seu título o anunciava. Mas como entendê-lo senão como uma brincadeira "literária"?
Talvez nos ajudasse a desfazer o equívoco aquilo que circulava sobre seu autor. Havia feito parte dos representantes da cultura oficial do "fidelismo", estivera na direção do "Instituto del Cine", a paixão pelo cinema não o abandonará e dirigira a revista literária "Lunes de la Revolución", até o seu fechamento, em 1961. No ano seguinte, fora adido cultural na Bélgica. Em 1965, sabia-se que havia regressado a Cuba para assistir o enterro de sua mãe -pelo menos, não fora proibido, como mais recentemente seria García Márquez, a pretexto de defendê-lo- e, logo depois, renunciou à carreira diplomática e se exilou em Londres. Com o exílio, baixou sua verve. Cabrera permaneceu o autor dos "Três Tristes Tigres".
A informação que tínhamos -e não disponho de tempo para melhorá-la- indicava que aderira à Revolução Cubana, que participara de seus quadros, das lutas entre direções culturais divergentes e... perdera. Embora ainda espere conhecer melhor o que houve, aqueles dados nos bastavam para ler o sentido dos jogos de linguagem dos "Três Tristes Tigres" como algo que não era só brincadeira.
Abriam-se, na verdade, duas frentes: uma primeira, de ordem estritamente política, sobre a qual estávamos grosseiramente informados e que estava incluída na própria condução da linguagem: a narrativa em meandros, que não respeitava fetiches e tabus, que trastrocava nomes conhecidos em formas hilárias -Des Carter, Ortega und Gasset, Unámonos-, que, a propósito do assassinato de Trótski, já por si um assunto tabu, pastichava o estilo de outros escritores cubanos -contendo estopins que só sabíamos haver estourado sobre o próprio escritor.
A segunda frente, correlata, dizia respeito à própria carpintaria narrativa. Seus capítulos são curtos, e a abertura de um dos mais importantes -"Ella cantaba boleros"- mostra um pouco de seu padrão: "A vida é um caos concêntrico? Não sei, somente sei que minha vida era um caos noturno com um único centro que era Las Vegas -entenda-se, o nome de um cabaré (LCL.)-, e, no centro do centro, um copo de rum e água ou rum e gelo ou rum e soda e ali estava a partir das 12 (...)".

Gíria cubana
A oralidade desrespeita a pontuação e se processa como um movimento contínuo, que, no exemplo traduzido, não se mostra com perfeição, seja porque corto a frase pelo meio, seja porque a passagem não emprega os cubanismos, que me obrigavam a comprar um repertório de gíria cubana.
Não há propriamente uma trama; os "agentes da narrativa" são meras peças da noite de Havana. Ou a noite é o vaso de que extravasa um delírio criativo incessante. E, no entanto, esse salto de cabaré a cabaré, a constante irreverência combinada aos torneios da linguagem popular, às aliterações, trocadilhos, pastiches e paródias, em vez de remeterem a exemplos como os de Rabelais, Lewis Carroll, Joyce e (por que não?) Céline, provoca um contraste inesperado: toda a soltura que já se declarava na "Advertência" -"este livro está em cubano"- não se encerra numa alegria inebriante, de quem se recusasse a ver a ressaca dos dias.
Muito ao contrário, deixava um travo: a febril agitação encobria uma enorme tristeza. A noite esfuziante era o contraponto ao horror do dia.
A homenagem que presto ao admirável escritor não se converteu em análise, mas em uma página de memória. Esta se refere ao passado de uns 30 anos. A ela acrescento uma lembrança bem recente: ao assistir o filme "2046", do diretor de Hong Kong Wong Kar-wai, de imediato me disse: "Eis talvez Proust combinado com Cabrera Infante", me acrescentava uma amiga, com laivos de "Cem Anos de Solidão" [de García Márquez].
Mas eu não entendo de cinema. E não sei se o diretor leu Cabrera Infante. Se a associação for procedente, a noite de Havana terá se metamorfoseado em forma de antevisão de um futuro próximo.
Um lastro, contudo, se manteve: a metamorfose do diretor chinês guarda a tristeza da obra máxima do escritor agora morto.

Luiz Costa Lima é professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "O Redemunho do Horror" (Planeta).


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