São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cultura

História da carochinha

Em "Gostaria de Ter Estado Lá", 20 pesquisadores viajam pelo tempo e revêem momentos-chave da humanidade

NIALL FERGUSON

A famosa definição de Leopold von Ranke [1795-1886] quanto ao objetivo do esforço dos historiadores pode ser traduzida de diversas maneiras. "Como de fato foram" costuma ser a mais comum tradução de "Wie es eigentlich gewesen"; uma versão mais precisa é "como essencialmente foram".
Já R.G. Collingwood, o grande filósofo da história da Universidade de Oxford, oferece definição mais precisa: "O conhecimento histórico é o restabelecimento de um pensamento passado". Ele ilustra seu ponto citando o almirante Nelson, que se recusou a remover as condecorações que tornavam seu uniforme muito conspícuo, na batalha de Trafalgar.
Mas a história, como profissão, pouco fez para concretizar a ambiciosa visão de Collingwood. Assim, é refrescante encontrar, em "Wish I'd Been There - Twenty Historians Revisit Key Moments in History" [Gostaria de Ter Estado Lá -Vinte Historiadores Revêem Momentos Decisivos da História], a afirmação de que "os historiadores precisam se colocar no passado, se desejam trabalhar de maneira efetiva".
Thedore Rabb e Byron Hollinshead montaram um time formidável de estudiosos para realizar a viagem imaginária no tempo que esse envolvente volume propõe. Mas o exercício é sutilmente diferente do que Collingwood preconizava. Os colaboradores imaginam que tenham estado lá como observadores invisíveis, e não como protagonistas históricos.
Os mais astutos se concentram em evocar os ambientes do passado. Tom Holland imagina de maneira vívida o sofrimento dos elefantes do exército de Aníbal, em sua travessia dos Alpes. O primeiro prêmio cabe a sir John Elliott, por seu maravilhoso relato sobre a visita do futuro rei inglês Carlos 1º a Madri, em 1623.
Alguns dos historiadores vão mais longe. "O que realmente desejo saber", escreve Josiah Ober, sobre a morte de Alexandre Magno, "é que sensação propiciava estar no centro do mundo, em um momento no qual a história humana havia atingido um de seus grandes pontos de inflexão".
Infelizmente, essa aspiração constitui anacronismo. E Ober tampouco deixa claro por que a morte de Alexandre constituiu um ponto de inflexão; afinal, era inevitável que ele morresse, em dado momento.
Para que se possa alegar que um ato individual alterou o curso da história é preciso desenvolver um experimento mental mais desafiador. Precisamos imaginar o que teria acontecido se a ação em pauta não tivesse se realizado.
Apenas alguns dos colaboradores dão esse salto. Geoffrey Parker é um deles, ao argumentar que, caso os espanhóis tivessem rendido o que restava de sua frota em 1588, "seria difícil ver de que maneira a Espanha poderia resistir à Contra-Armada inglesa que chegaria à sua costa no ano seguinte".
William McNeill argumenta que, sem o patrocínio de Frederico 2º da Prússia, a batata não teria sido adotada com a mesma rapidez na Europa Central e Oriental.
O efeito líqüido da experiência é uma sensação semelhante à que afligiria um passageiro um pouco enjoado de um navio de cruzeiro em excursão histórica pelas ilhas gregas. As imagens são deliciosas.
Mas será que realmente nos mostram a história "como de fato foi"? Paradoxalmente, os mais bem-sucedidos desses esforços de imaginação histórica são aqueles que também a explicam como de fato não foi.


NIALL FERGUSON é professor em Harvard. A íntegra deste texto saiu no "Financial Times".


Texto Anterior: + Autores: Palavra de Deus
Próximo Texto: Com a língua solta
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.