São Paulo, domingo, 27 de maio de 2001

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Energia derivada da biomassa vegetal é a base de um projeto nacional de desenvolvimento

A civilização dos hidratos de carbono


A escola da biomassa, infelizmente quase clandestina e preterida nas universidades pelo prestígio da badalada Escola de Frankfurt, mostrou na prática a eficácia do combustível "made in" proálcool


Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha

A mistificação anda correndo solta por aí quando a ênfase recai exclusivamente no consumo: aqui, seu badameco, não abra em vão a porta da geladeira, apague o abajur, cuidado com o microondas, faça amor no escuro, exerça a cidadania energética. Mesmo quando se conecta essa penúria elétrica ao Plano Real, às privatizações, à desestatização, à internacionalização da propriedade, tanto do solo quanto do subsolo, ainda assim não se chega à raiz do problema, ou seja: a necessidade de mudar o modelo energético da sociedade brasileira. Casa-grande e senzala foi escravo e roda d'água, barão de Mauá foi máquina a vapor, República foi eletricidade, o petróleo suicidou Getúlio Vargas, a Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) e a usina nuclear elidiram o grande reator solar nos trópicos. Absurdo completo é faltar luz elétrica na terra do sol, pois é o Sol a fonte doadora máxima de energia. Sol Invictus. Invencível. De resto, o Brasil é o lugar que mais dispõe de água doce (22%) do planeta. Humberto Mauro definiu o cinema como cachoeira. Minas Gerais é talassa, dizia Paulo Emílio Salles Gomes, se bem que o intelectual paulista que sacou a questão energética foi o escritor Monteiro Lobato, com seu extraordinário livro "O Escândalo do Petróleo". Depois de 1930 o fundador acadêmico das humanidades uspianas, o francês Roger Bastide, que seria hoje crítico da Elétricité de France, não foi capaz de introduzir o tópico da energia nas ciências sociais influenciadas pelo marxismo, Marx, Engels, Lênin e Trótski. Todo sociólogo brasileiro, à exceção do meu xará de Apipucos, é um intelectual desinformado em termodinâmica e energia. Essa alienação energética na cultura brasileira, submetida ao domínio de uma televisão dendrofóbica, impede a compreensão do tempo e do espaço dos trópicos. Assim, o drama do "homo colonialis" se traduz numa espécie de invivência em relação à natureza tropical, portanto cego e surdo à bioesfera circundante, o que o fez até agora lamentar a péssima qualidade do nosso carvão mineral ou senão a pouca quantidade das reservas de petróleo entre nós, ao passo que o verdadeiro e único caminho da autonomia energética da sociedade brasileira, vale dizer, de sua desalienação básica, encontra-se justamente na ruptura com o modelo do carvão mineral e do petróleo, substituindo-os pela energia líquida, sólida, gasosa, elétrica, proveniente das plantas e das florestas tropicais, que são dotadas de rápido crescimento e altíssima produtividade, a exemplo da cana-de-açúcar, da mandioca, do dendê, do babaçu etc. Nascida da contribuição científica de Salvo Brito, Sebastião Simões Filho, J.W. Bautista Vidal e Marcelo Guimarães, a escola da biomassa, infelizmente quase clandestina e preterida nas universidades pelo prestígio da badalada Escola de Frankfurt, mostrou na prática a eficácia do combustível "made in" proálcool. A cidade de São Paulo hoje consegue ainda respirar graças aos milhões de veículos a álcool que aliviaram a quantidade de chumbo jogada pela gasolina na atmosfera. O derivado da biomassa, contudo, não se resume a álcool em automóvel, pois abarca os óleos vegetais, a siderurgia a carvão vegetal, enfim, trata-se de uma rede energética auto-suficiente, um petróleo verde, só que limpo, não poluente, renovável, descentralizado, diasporizado e criador potencial de emprego nesses cafundós dos brasis. A escola da biomassa tem advertido, embora não encontre a devida ressonância nos meios de comunicação e universidades, que essa crise de eletricidade (com o anacronismo e a irracionalidade das grandes usinas hidrelétricas e termelétricas movidas a gás natural importado) é café pequeno em relação ao inevitável colapso mundial do petróleo, assim como o uso de carvão mineral é um desastre ecológico responsável pelo efeito estufa e pela chuva ácida. Os EUA têm reservas de 21 bilhões de barris de petróleo, mas o seu consumo diário gira em torno de 16 milhões. Alemanha, Japão, Itália, França não têm reservas; idem Noruega, Canadá e Inglaterra, em acentuado declínio. Somente o Oriente Médio possui petróleo para duas ou três décadas, sendo por isso o palco bélico da cobiça do poder mundial. E nós, aqui, nos trópicos? A classe dirigente, com o sistema intelectual brasileiro, comporta-se segundo o figurino colonial do mimetismo energético. É a "oligarquia dos pardais", para usar a deliciosa expressão do saudoso Severo Gomes, acreditando que os combustíveis fósseis são infinitos, como se o petróleo fosse o derradeiro combustível da história da humanidade. Mentira. O que move o mundo é a energia, mas as pessoas habitualmente não pensam nisso a não ser quando lhes falta, de modo que esse prelúdio elétrico da crise energética colocará na pauta da discussão da sociedade brasileira o horizonte da energia derivada da biomassa vegetal, que é a base imprescindível de um projeto nacional de desenvolvimento. A biomassa é opção energética, tecnológica e política. Quando saiu publicado o livro "Poder dos Trópicos" (editora Casa Amarela), de J.W. Bautista Vidal, houve quem o pichasse de adepto primitivo da "República do Babaçu", ou seja, subironia escrotinha e de má-fé diante da biomassa como energia da civilização dos trópicos. Mas o que acontece é o seguinte: até o presente momento estivemos, parafraseando Karl Marx, na pré-história da civilização nos trópicos.

América do Sol
O problema político fundamental da biomassa (atenção: energia é poder, e poder mundial) é que ela se insurge contra as armadilhas imperialistas do binômio dólar e petróleo. Isso quer dizer que o eixo energético do mundo está em via de se transladar dos países hegemônicos industrializados, frios e temperados, situados acima do Trópico de Câncer, para as regiões das florestas úmidas localizadas abaixo do Trópico de Câncer. Assim, a fenomenologia de Hegel ganha outra leitura com a escola da biomassa diante do próximo esgotamento dos combustíveis fósseis (petróleo e gás), da inviabilidade ecológica do carvão mineral e da energia nuclear. Eis as etapas energéticas das sociedades modernas: carvão mineral, petróleo, átomo e, por fim, biomassa. Chegou a hora e a vez da América do Sol anunciada por Oswald de Andrade.
A única forma energética em condições de substituir o quadro hidrocarboneto agônico do hemisfério Norte, de modo extensivo, é a biomassa preponderante nos trópicos, pois as formas eólica, geotérmica e das marés são restritas e limitadas. Estamos destinados, se Deus quiser, a uma civilização dos hidratos de carbono. Em se plantando tudo dá. A solução está na agricultura com terra para todos os brasileiros. A biomassa é a verdadeira energia eterna do futuro. Lamentavelmente essa musa energética dos trópicos ainda não encontrou liderança política à altura de sua dimensão épica e continental.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor, entre outros, de "O Príncipe da Moeda" (ed. Espaço e Tempo).



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