São Paulo, domingo, 27 de maio de 2007

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Palcos nômades

Importantes teóricos do teatro, Roland Barthes e Jerzy Grotowski refletem sobre a interação ator-público

SÍLVIA FERNANDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O lançamento simultâneo de coletâneas de textos sobre teatro de Roland Barthes e Jerzy Grotowski, em ótimas traduções, coloca à disposição do leitor brasileiro sistemas aparentemente antitéticos de pensamento e prática da cena.
O fascínio de Barthes pelo trabalho de Brecht, o endosso das propostas de teatro popular de Jean Vilar, a defesa da dramaturgia de Beckett, Genet, Adamov e Michel Vinaver e a eleição da tragédia grega como modelo de teatro público distanciam os pressupostos do ensaísta das pesquisas de Grotowski no Teatro Laboratório de Wroclaw (1959-1969), período coberto pelo livro que Ludwik Flaszen organiza com Carla Pollastrelli, do Workcenter de Pontedera, onde o artista desenvolveu a etapa final de seu percurso.
A coletânea, publicada na Itália em 2001, apresenta o antológico "Da Companhia Teatral à Arte como Veículo", em que o antigo diretor revê a criação de espetáculos memoráveis como "Akropolis" (1962), "O Príncipe Constante" (1965) e "Apocalypsis Cum Figuris" (1969) a partir das experiências posteriores de parateatro, teatro das fontes e arte como veículo, que abolem a representação e o espectador.
Os escritos sobre teatro de Barthes foram reunidos por um discípulo da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris), Jean-Loupe Rivière, que os selecionou no fim dos anos 70, mas consegue publicá-los apenas em 2003, mais de dez anos depois da morte do autor -que resistia à idéia de reeditar artigos excessivamente militantes.
O curioso ponto de confluência entre as duas publicações é o fato de ambas mapearem reflexões que precedem o abandono do teatro por seus autores.
Como Grotowski, também Barthes se distancia paulatinamente da cena. Depois de interromper uma breve carreira de ator no Grupo de Teatro Antigo, em 1939, no princípio dos anos 1960 abandona a prática de espectador, crítico e participante ativo da vida teatral francesa, que resultara em mais de 80 textos sobre teatro, publicados em 22 periódicos, especialmente na revista "Théâtre Populaire", que editou com Bernard Dort.
"Brecht fez passar em mim o gosto por qualquer teatro imperfeito e foi a partir de então que deixei de ir ao teatro", escreve Barthes no texto de abertura da coletânea, em que justifica sua retirada com base no "ofuscamento" que lhe causou a apresentação de "Mãe Coragem e Seus Filhos" em Paris, em 1954.
Para o teórico do teatro, a clareza do código brechtiano do Berliner Ensemble resolve a contradição entre "o sentido político e a forma difícil, constituindo-os um pelo outro".

Pequenos ruídos
Não por acaso, no ensaio de fechamento do livro Barthes retoma as considerações sobre o teatro épico, uma arte capaz de abrir crises na linguagem por destacar o signo de seu efeito.
Na comparação saborosa do ensaísta, os signos do distanciamento são como alfinetes de guizos, que emitem pequenos ruídos para impedir a imitação e instaurar uma produção teatral "destacada, deslocada, que faz barulho".
Mas o tema de maior predileção de Barthes, disseminado em todos os ensaios, é a defesa da recepção ativa do espectador.
No espaço aberto da tragédia grega e das encenações de Jean Vilar em Avignon, reconhece a "polifonia complexa do ar livre" que esgarça a matéria teatral contra um fundo expandido e dá ao espectador o poder de criar seu próprio espetáculo.
Por via negativa, a preocupação de Grotowski com o espectador desencadeia o anúncio, em 1970, de que a partir daquela data deixaria de apresentar espetáculos, pois o teatro não facilita a comunhão entre ator e público.
A decisão, aparentemente intempestiva, está anunciada em vários textos da coletânea, especialmente no ensaio "Em Busca de um Teatro Pobre", que dá nome ao único livro de Grotowski publicado no Brasil.
No texto, uma espécie de síntese teórico-prática das pesquisas desenvolvidas no teatro-laboratório, o artista considera a relação perceptiva direta entre o ator e o espectador o elemento nuclear da troca teatral, e o sucesso da experiência depende da capacidade de catalisar processos de transformação íntima nos dois pólos de interlocução.
O livro registra essa utopia passo a passo, desde as primeiras experiências de quebra das barreiras entre palco e platéia. A certa altura da trajetória, Grotowski percebe que a estrutura convencional da representação impede o ritual coletivo e a comunhão desejada.
A impossibilidade de educar o espectador para a experiência em intensidade semelhante à do treinamento do ator leva às pesquisas parateatrais, em que os espectadores são co-atuantes, para se tornarem, mais tarde, testemunhas da "action", "estrutura performática objetivada nos detalhes", uma espécie de teatralidade pura ou substituto laico do ritual religioso.
A partir de uma observação de Jean-Pierre Sarrazac, ex-aluno de Barthes, pode-se concluir que o autor dos "Escritos" cumpre uma trajetória semelhante. Também ele destaca a teatralidade do teatro para torná-la uma prática nômade do pensamento e da escritura.

SÍLVIA FERNANDES leciona história do teatro na Escola de Comunicações e Artes da USP.


ESCRITOS SOBRE TEATRO
Autor:
Roland Barthes
Tradução: Mário Laranjeira
Editora: Martins Fontes
(tel. 0/xx/11/3241-3677)
Quanto: R$ 59,80 (358 págs.)

O TEATRO LABORATÓRIO DE JERZY GROTOWSKI
Organização:
Ludwik Flaszen e Carla Pollastrelli
Tradução: Berenice Raulino
Editora: Perspectiva
(tel. 0/xx/11/3885-8388)
Quanto: R$ 39 (256 págs.)



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