São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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+ sociedade

DECLARAÇÕES MORALIZANTES DE BOM-TOM EVIDENCIAM A INCAPACIDADE DE POLÍTICOS BRASILEIROS EM SUPERAR SEU PENDOR IRÔNICO-MALANDRO

A NOTA FALSA DA CORDIALIDADE

Kathrin H. Rosenfield
especial para a Folha

Uma simples charge: Brizola, sorrindo, mãos nos bolsos. Atrás dele dois cidadãos comentam: "É o moralizador da política brasileira. Acabou com a bebida no PT e com o namoro no PDT...". Em outras palavras -depois das vassouras de Jânio, dos marajás de Collor e da "ética na política" do PT, o "moralizador" tornou-se o clichê número um. Quando Brizola mostrou sua indignação com o assédio sexual, afirmando que "a razão costuma estar com a mulher" ("Zero Hora", 15/05/04, pág. 6), o que estávamos ouvindo é uma nota falsa do louvável serviço prestado ao feminismo e à civilidade: o caráter sempre seletivo e ambíguo das declarações moralizantes.
Declarações moralizantes de bom-tom surgem sobretudo (ou exclusivamente) quando a mulher é neta de um cacique político (ou, talvez, quando a questão se presta para enfraquecer um adversário?). Da mesma forma, o perigo de outros excessos privados, como o álcool, vem a público quando se encaixa nas estratégias políticas do momento. Brizola assumiu a pose paterna, mas somente quando já não era mais vice de Lula.
Tudo isso é "normal". "Normal" também que o governo puna um jornalista, não o informante da matéria jornalística -afinal, tratava-se de um velho caudilho, cheio de artimanhas, que perambulava ágil pela malha sutil e intrincada dos clãs parentais e políticos.
Ética, portanto, porém mesclada no coquetel de privilégios privados e de interesses políticos. Ela também é servida "cordialmente", enquanto desfilam no seu perene carnaval os clãs eleitorais, assistidos pela "captive audience" da população. O clã eleitoral (segundo Oliveira Vianna, a única instituição autêntica que o triste trópico brasileiro soube inventar e perpetuar) é o resto, o dejeto da célebre cordialidade brasileira.
Se só o estigma do clã impõe respeito, é de temer o avesso da ambígua cordialidade: o "fundo emotivo rico e transbordante" que torna os brasileiros tão simpáticos move também os jeitinhos e as malandragens que burlam as leis, "justificando" tacitamente múltiplas transgressões e violências diretas ou indiretas. Brizola era jovem em 1936, quando Sérgio Buarque de Holanda analisou o "homem cordial" como potencial manipulador da vida pública regrada, desmistificando a cordialidade brasileira como um dom envenenado, como um sombrio avesso. A velhice de Brizola, a maturidade de Lula e de muitos outros políticos mostram a pertinência do famoso ensaio "Raízes do Brasil".
Não há nada de novo, portanto, na muralha de indiferença e silêncio, de falso pudor e conivência, com que os costumes protegem as facetas vergonhosas da sociabilidade brasileira.
Euclides da Cunha e muitos outros ensaístas já as denunciaram em alto e bom-tom. Hoje, a opinião pública continua repetindo essa forma de repúdio que tem a marca do "J'Accuse" [Eu Acuso] de Zola. No entanto a cordialidade subsiste precisamente nas ricas e ambíguas emoções dessas inflamadas críticas. A indignação de Euclides projeta os males que assolam o Brasil num espaço abstrato, para além da voz que critica. O estilo retórico favorece assim um distanciamento fictício do mal criticado. Cada leitor pode criar o responsável, o inimigo, o bode expiatório que permite evacuar a responsabilidade e a culpa do notório mal-estar da cultura brasileira. Mas a ambigüidade retórica -compreensível no contexto em que escrevia Euclides- se torna um vício quando adotada como hábito cotidiano. Projetando o mal para além de nós mesmos, nós o atribuímos a outros ou a causas míticas com as quais recusamos qualquer identificação. Assim, instaura-se uma máquina de discriminação cujos motores estão -à revelia da consciência- no funcionamento da linguagem e dos símbolos, dos códigos e das práticas sociais. Indício desse miasma nacional é a excessiva tolerância da opinião pública diante das constantes malandragens retóricas e práticas dos políticos. Com seu pendor irônico-malandro, a cultura brasileira é totalmente avessa à tradição irônico-trágica que brilha nas novelas de Kafka e nas peças de Beckett ou de Thomas Bernhard. O último, aliás, seria um excelente antídoto contra as infinitas cumplicidades involuntárias da cultura cordial e deveria ser assiduamente estudado no Brasil. Não pelos temas de superfície, pois o nazismo austríaco, as paixões musicais ou a genialidade filosófica de Wittgenstein parecem ter pouco a ver com a realidade brasileira. As afinidades estão na estrutura profunda dessas peças que derrubam os simulacros de uma cordialidade oscilando entre amenidade e violência. Os dramas de Bernhard [1931-1989] colocam o problema da alteridade e põem em funcionamento os mecanismos infinitamente maleáveis e reversíveis da discriminação e da opressão.


Projetando o mal para além de nós mesmos, nós o atribuímos a outros ou a causas míticas com que recusamos nos identificar


Com estupenda, calculada e escandalosa violência, Bernhard atrapalha a "paz" do pós-guerra iluminando a violência implícita do convívio forçado dos colaboradores e das vítimas do nazismo -convívio esse que a assídua política cultural e turística banha numa luz ambiguamente amena. O ácido bernhardiano começa a despojar o teatro e a música -as vacas sagradas da cultura austríaca- da sua aura transcendente, deixando transparecer infinitos comprometimentos com as convicções nazistas e racistas que reinam sob a superfície cordial.

Lógica da discriminação
Bernhard muda o aparelho acusatório montado pelas esquerdas politizadas. Se estas procuravam separar culpados e inocentes, Bernhard se debruça sobre a análise da linguagem. Na esteira da filosofia de Wittgenstein, ele desvela a realidade das práticas ética e política menos na vontade dos agentes do que nos jogos de linguagem que predominam na comunidade. As peças de Bernhard mostram de modo doloroso como o uso da linguagem ultrapassa as intenções, perpetuando a lógica da discriminação até mesmo nas vítimas. Compartilhando os mesmos hábitos de fala, judeus e não-judeus tornam-se sorrateiramente irmãos cúmplices. À revelia das intenções individuais e sem abolir o sofrimento da vítima e o gozo do opressor, todos participam de um miasma imposto pelo jogo sórdido da linguagem. Magnífico exemplo desse problema é o diálogo entre Robert e sua irmã ("Heldenplatz"), quando o primeiro interpreta como um gesto anti-semita o fato de que um transeunte tenha cuspido na sua sobrinha. A irmã objeta que isso poderia ter sido um simples engano -ao que Robert responde que não pode haver engano quando "alguém cospe em alguém que nem mesmo conhece, simplesmente porque ele pode ver que é judeu". Bernhard desvenda nessa discussão a lógica da racionalização malsã de um gesto que deveria ser inadmissível moral e afetivamente. A indignação não se volta contra a cuspida (condenável em qualquer caso), porém se fixa nos argumentos discriminatórios nazistas e racistas (e assim reitera sua lógica). Uma vez abalada a certeza de que cuspir sobre alguém é inadmissível, vítimas e agressores reforçam mutuamente os raciocínios malignos da rejeição do outro. Bernhard dessacraliza a vítima, tratando judeus e não-judeus tão somente como austríacos -presos na lógica maligna do desprezo da alteridade que se reproduz nos próprios desprezados.

Jogo sórdido
No intuito de pôr em cena a rede simbólica que ultrapassa a vontade subjetiva, Bernhard viola o clichê do judeu como discreta e cultivada vítima da barbárie nazista. Deliberadamente, ele atiça (para desmascará-lo) o anti-semitismo latente ao colocar as acusações contra a Áustria na boca de um velho judeu rancoroso. Rompendo com a dicotomia estereotipada que opõe a boa e inocente vítima ao seu abjeto carrasco, Bernhard desvenda o problema de ser austríaco que se coloca para judeus e não-judeus, já que todos são forçados a participar do mesmo sistema simbólico, no qual a identidade se constrói por atos de falas e gestos. E um dos jogos predominantes é o do encobrimento da culpa e da vergonha, que, ao passar por infinitas racionalizações, se tornam intercambiáveis (assinalemos aqui, entre parênteses, que um jogo análogo poderia estar ocorrendo também entre nós no Brasil, se acreditarmos em Roberto DaMatta quando analisa -no favor, na malandragem, na familiaridade sorridente- a mútua ocultação da discriminação).
Seja como for, na Áustria, Bernhard expunha a sordidez desse jogo atiçando a difusa auto-imagem negativa dos austríacos -recuperada teatralmente como potencial explosivo dos escândalos provocados por Bernhard.
No universo de Bernhard, vida e palco se confundem para desvendar que não há inocentes: ninguém escapa da máquina do mal e da culpa. O escritor participa do sombrio espetáculo das ambigüidades míticas da linguagem e do imaginário que limitam a liberdade subjetiva. Impiedoso consigo mesmo, Bernhard se incluía numa performance sem fim, denunciando os negócios culturais (os seus próprios e os dos outros) como máscaras das pretensões que alimentam -antes e depois da guerra- a mesma triste malha da rejeição.
Não existe no Brasil nenhum exemplo desse tipo de autodilaceramento. Para sentir os tabus que Bernhard atropela, seria necessário imaginar um escritor brasileiro que encenasse a maldade do regime militar representando um sobrevivente do Araguaia falando a mesma linguagem dos torturadores e generais do Exército. Que escritor ousaria representar as ideologias "corretas" de um Fernando Henrique ou um [José] Dirceu (ou de qualquer outra vítima da repressão) roídas na sua linguagem pela lógica da repressão?
É difícil imaginar um artista perseguir a idéia de Gilberto Freyre, que acusava a casa-grande de ter pervertido a senzala. Um Thomas Bernhard brasileiro mostraria como essas contaminações retroagem e se potencializam, transformando a dialética da malandragem em dialética da marginalidade -abolindo certezas éticas ao ponto de considerarmos o jogo do bicho (e, por que não?, o narcotráfico) como negócios e carreiras entre outras (tema tratado por João Cezar de Castro Rocha no Mais! de 29/02/04).
No império brasileiro da cordialidade e das conciliações ilusórias a reflexão sobre os miasmas nacionais costuma esfumar-se na verve sarcástica de um punhado de jornalistas -e a ironia cria a (ilusão da) distância para com o mal no qual todos nós vivemos.

Kathrin H. Rosenfield é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (ed. L&PM).


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