São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2000


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Federico Fellini

Eu não sabia nada sobre Pina Bausch. Aliás, devo confessar minhas limitações: nunca soube grande coisa sobre balé e ópera. Sentado na platéia, logo tenho vontade de sair pelo corredor, ver o que está acontecendo nos bastidores e nas coxias... Tenho vergonha de dizer, mas é difícil para mim ficar até o fim do espetáculo.
Uma vez, em Moscou, assisti a "O Lago dos Cisnes". Depois fui ao palco cumprimentar as bailarinas e lhes dizer em russo que havia sido maravilhoso e que elas eram formidáveis. Tinham todas uma aparência de meninas fortes, vestindo roupa de primeira comunhão, na altura do joelho. Para ser sincero, nessa vez também tinha me chateado um pouco... Mas há no balé uma coisa que me enternece, embora seja só um símbolo: essa tentativa perpétua, sempre frustrada, de voar.
Assisti "1980" de Pina Bausch do início ao fim e por mim poderia continuar. Me vi imediatamente levado por uma certa simpatia, parceira da graça, e senti o sopro de uma brisa (allegro) vindo ligeira do palco.
Era o mesmo prazer, o mesmo entusiasmo, o mesmo milagre da minha primeira vez no circo, assistindo aos irmãos De Filippo, ou à aparição devastadora de Totó ou a "Chorus Line" ou ao "Arlequim Servidor de Dois Patrões" de Strehler ou ao "Grand Guignol" no colo do meu tio. O que Pina Bausch nos conta no palco e na platéia é um teatro que libera todas as inibições, é uma festa, um jogo, um sonho, uma correspondência, uma memória, uma visão, um ritual. É um conforto, que se destrói doce e insidiosamente, porque o que a gente quer é que toda essa harmonia, toda essa leveza, todo esse encantamento não acabem jamais e que a vida seja assim...
No final do espetáculo, fui conhecer Pina Bausch e tive mais uma prova da sorte que me acontece durante a preparação de um filme. Desde sempre, chega o primeiro dia de filmagem e ainda não escolhi todos os rostos das personagens. A produção se desespera, os organizadores se voltam para mim com rancor, mas, sempre com uma confiança repleta de superstições, quero dar início ao trabalho. As personagens acabam aparecendo.
Foi bem o caso com "... E La Nave Va". Entre as personagens que ainda não encontrara na véspera das filmagens, havia uma especialmente importante, uma princesa austro-húngara, cega de nascença. Nem eu mesmo sabia muito bem o que estava procurando, quem eu queria, que rosto, que atriz. Faltavam-me pontos de referência precisos para escolher uma princesa austro-húngara. Nunca encontrara uma. E, diante de mim, naquele vaivém confuso, entre um aviário de toalhas de rosto e os estrondos de portas batendo, apareceu, tímida, reservada, diáfana, vestida de cores sóbrias, minha princesa austríaca. Era Pina Bausch, uma freira lambendo sorvete, uma santa de patins, um rosto de rainha no exílio, de fundadora de uma ordem religiosa, de juíza de um tribunal metafísico, que subitamente nos dá uma piscada de olhos.
Com seu rosto aristocrático, terno e cruel, misterioso e familiar, cerrado numa imobilidade enigmática, Pina Bausch sorria para mim, para se fazer apresentar. Que lindo rosto. Um desses rostos destinados a nos paralisar, imenso e perturbador, numa tela de cinema.


Tradução de Arthur Nestrovsk.


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