São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2001

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O destino das imagens

Jacques Rancière

O moderno", dizia Mallarmé, "desdenha de imaginar". Desdenhar as imagens não era evidentemente adorar as realidades sólidas. Era, ao contrário, opor as formas ou performances da arte a toda confecção de duplos de pessoas ou coisas. "A natureza acontece, não se lhe acrescenta", também dizia ele. O poema ou o quadro deveria ser o traçado de um ato específico de que Mallarmé encontrava o modelo nos hieróglifos mudos desenhados pelos passos da bailarina. Entendida assim, a fórmula do escritor poderia muito comodamente resumir toda uma idéia da modernidade artística. À época do suprematismo, do futurismo ou do construtivismo, essa idéia se casou de bom grado com o projeto de construção de novas formas de vida. No desencanto das grandes esperanças, ela encontrou seu emblema na pureza da pintura não-figurativa, opondo a lógica das formas coloridas a toda produção de imagens destinada ao consumo das semelhanças.
Já faz algum tempo que essa identificação da modernidade artística à recusa da imagem voltou à ordem do dia. O que não quer dizer, porém, que as paisagens, as mulheres nuas e as naturezas-mortas tenham tornado a florescer nas paredes das galerias e exposições. Se as "composições" da era abstrata tendem a se retirar das galerias e exposições, tal não se dá em proveito de uma pintura novamente figurativa. É antes em proveito de uma confrontação das imagens do mundo com elas mesmas.
Três exposições recentes ou atuais em Paris resumem à perfeição tal princípio. No verão passado, o Museu de Arte Moderna da cidade de Paris apresentou uma exposição intitulada: "Voilà, le Monde dans la Tête" (Aí Está, o Mundo dentro da Cabeça). Mais recentemente, o Centro Georges Pompidou seguiu no encalço do museu com uma exposição intitulada "Au-delà du Spectacle" (Para Além do Espetáculo). Nos últimos dias, enfim, foi aberta no Centro Nacional da Fotografia a exposição "Bruit de Fond" (Ruído de Fundo). Sua simultaneidade é significativa não pelas novidades que introduziriam, mas, ao contrário, por sua semelhança com muitas outras exposições nos quatro cantos do mundo, pela maneira comum como testemunham hoje um cotidiano da arte.
Os títulos já são significativos. "Voilà" em francês é o demonstrativo que contempla o passado ou o remoto. E, de fato, a exposição pretendia ser uma espécie de memória do século. Do século como tal, e não de sua arte. Nas instalações de Christian Boltanski ou de On Kawara, nas fotografias de August Sander nos anos 20 ou nas fotografias recentes de Hans-Peter Feldmann, nos filmes de Jonas Mekas ou de Chantal Akerman e nas outras instalações, vídeos, vitrines fotográficas ou computadores repartidos ao longo de toda a exposição, era de nossas maneiras de assimilar as imagens e viver com as imagens que se tratava a mostra. E a sala consagrada à pintura não se furtava a tal princípio.
O artista expositor, Bertrand Lavier, nela não apresentava a sua pintura. Expunha uma série de quadros de todos os estilos, cujo único princípio de unidade era a sua assinatura: todos os pintores reunidos exibiam o mesmo prenome, o nome próprio mais difundido na França, Martin. Assim a exposição de arte identifica-se a um trabalho de arquivista, e a sua visita, ao folhear de uma enciclopédia na qual textos e imagens valem como testemunhos de um tempo e de uma maneira de apreender esse tempo e nele inscrever os sinais. O Museu de Arte Contemporânea tende, pois, a oscilar ele próprio entre o "gabinete de curiosidades" de antanho e o museu de etnologia de nossas civilizações.

Mundo midiático
As duas outras exposições explicitamente tomam emprestado seu título a um livro. "Au-delà du Spectacle" alude ao ensaio de Guy Debord, "A Sociedade do Espetáculo" (Ed. Contraponto), e "Bruit de Fond", ao romance de Don DeLillo, "Ruído Branco" (Companhia das Letras). Uma e outra se põem assim a serviço da crítica do mundo midiático, publicitário e televisivo, ilustrado tanto pelo teórico do situacionismo como pelo romancista dos acontecimentos estranhos orquestrados pela televisão na cidadezinha de Blacksmith. Elas dão testemunho de uma arte que já não opõe a pureza das formas ao comércio das imagens.
É possível opor as formas às imagens, contanto que estas apareçam como os duplos supérfluos das coisas. Mas o que implica o conceito de espetáculo é que as imagens não são mais o duplo das coisas, são as coisas elas mesmas, a realidade de um mundo em que uma e outra já não se distinguem. Onde a imagem não se opõe mais à coisa, a forma tampouco se oporá à imagem. O que a ela se opõe é uma outra imagem. Mas uma outra imagem não é uma imagem com teor diverso. É uma imagem disposta diversamente, ofertada num outro registro perceptivo. "Au-delà du Spectacle" não opõe nenhuma pintura às imagens da mídia. E se "Bruit de Fond" apresenta fotografias, não é tanto como obra de fotógrafos, é como material de que se servem os artistas em registros cuja função é aprender a ler as imagens e as mensagens e a brincar com elas.
Brincar e aprender são dois opostos que os pedagogos progressistas insistem em querer conciliar. Se as instalações de "Voilà" evocam os gabinetes de curiosidade, são antes a registros de pedagogia lúdica a que se aparentam aquelas de "Au-delà du Spectacle". Ao lado de uma mesa de bilhar, de uma mesa de futebol de botão gigante e de um carrossel, figuram os monitores, as cabaninhas e as casas de boneca nas quais os visitantes são confrontados seja com os ícones da publicidade retrabalhados em chave diversa, seja com esses ícones reproduzidos tais quais são, mas fora de seu contexto.


A exposição ao idêntico das imagens do narcisismo publicitário se quer imbuída de valor crítico; como se bastasse apresentar num outro espaço as imagens das mercadorias e do poder para elas se tornarem instrumentos críticos


O uso crítico das imagens tende assim a um certo minimalismo. As fotomontagens de antes brincavam com a relação contraditória de duas iconografias. Nos anos 30, John Hartfield radiografava o orador Hitler para fazer ver a circulação de ouro que animava a máquina nazista. Cerca de 40 anos mais tarde, Martha Rössler colava cenas da Guerra do Vietnã sobre as imagens do narcisismo publicitário americano. Hoje a própria exposição ao idêntico das imagens do narcisismo publicitário se quer imbuída de valor crítico. Como se bastasse apresentar num outro espaço as imagens das mercadorias e do poder para que elas se tornem instrumentos críticos, ensinando os espectadores a pôr em perspectiva as imagens e ruídos coletivos que condicionam sua existência. Na prática, são os cartões de introdução a cada obra que têm o encargo de mostrar a diferença, reafirmando, de uma maneira quase encantatória, a virtude crítica do dispositivo de deslocamento das imagens.

Figuras banalizadas
Arte-arquivo, arte-escola. Contra essas duas figuras banalizadas de uma arte constituída de imagens cuja radicalidade estaria na própria semelhança com imagens do mundo, retorna periodicamente a nostalgia de uma arte instauradora de uma co-presença entre homens e coisas e dos homens entre si. Recentemente foi inaugurada no Palácio de Belas-Artes de Bruxelas, sob os auspícios do crítico e teórico Thierry de Duve, uma exposição de "cem anos de arte contemporânea", com o título escolhido a dedo por seu valor polêmico.
Ao "Voilà" da exposição parisiense a exposição de Bruxelas opõe um "Voici". "Voici" é em francês o demonstrativo da presença no presente. A exposição e o livro que o acompanham surgem, pois, como o manifesto de uma arte concebida como arte da presença e do olhar, de uma "facingness" oposta à "flatness" formal valorizada pelo grande teórico da modernidade pictórica, Clement Greenberg. Mas será em vão que se buscará nela algum retrato, cena de grupo ou natureza-morta à moda antiga. Várias obras arroladas sob a bandeira do "Voici" figurariam sem dificuldade sob aquela do "Voilà": retratos de estrelas de Andy Warhol, composições fotográficas hiper-realistas de Jeff Wall, documentos da mítica "seção das águias" do museu ficcional de Marcel Broodthaers, instalação de Josef Beuys de um lote de mercadorias da RDA, cartazes de Raymond Hains, espelhos de Pistoletto ou o "álbum de família" de Christian Boltanski... E as inúmeras obras tomadas de empréstimo à escultura minimalista ou à "arte povera" têm corpos bem frágeis para encarnar os esplendores da "facingness" evocada.
Em suma, nem o olhar nem seu objeto carregam os critérios evidentes da diferença entre o "voici" e o "voilà". É preciso, pois, o suplemento do discurso que transforma o "ready-made" em amostra ou o paralelepípedo liso em espelho de olhares cruzados. Esculturas minimalistas ou fotografias hiper-realistas devem então ser postas sob a autoridade do suposto pai da pintura moderna, Manet.
Mas esse pai da pintura moderna deve ele próprio ser posto sob a autoridade do Verbo feito carne. O modernismo de Manet e de toda a pintura em sua sequência nela é definida a partir de um quadro de juventude que vale como cena primitiva. No início dos anos 1860, em seu período "espanhol", Manet pinta um "Cristo Morto Sustentado por Anjos" imitando a Ribalta. Só que seu Cristo, à diferença do modelo, tem os olhos abertos e se posta diante do espectador. É o que basta para conferir à pintura, nos tempos da "morte de Deus", uma função de substituição. O Cristo morto reabre seus olhos, ressuscita na pura imanência da presença pictórica e inscreve de antemão as pinturas monocromáticas como imagética pop, as esculturas minimalistas como museus ficcionais na tradição do ícone e da economia religiosa da ressurreição.
"A imagem virá ao tempo da ressurreição." A fórmula de são Paulo fornece o "Leitmotiv" das "História(s) do Cinema" de Godard. E é sabido como Godard desenvolve a partir dela uma teoria da imagem que transforma a tela branca em véu de Verônica e os planos de Hitchcock em ícones da pura presença das coisas. De um lado e de outro do formalismo de ontem se erguem, pois, duas novas formas de identificar a arte com a imagem: uma arte da reexposição das imagens corriqueiras do mundo e uma arte que lhes opõe os ícones puros da presença. O paradoxo, como vimos, é que as obras que ilustram essas teorizações antagônicas não precisam ser diferentes. É talvez para os teóricos da presença que o paradoxo é mais rude. Seus sonhos de imanência não se imporiam senão pela sua própria contradição: o discurso que transforma todo objeto de arte em delicada hóstia, pedaço destacado do grande corpo do Verbo feito carne.

Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.


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