São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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+ política

O escritor ataca o filósofo Antonio Negri por defender que o premiê Berlusconi está sendo vítima da mesma perseguição que sofreram as Brigadas Vermelhas nos anos 70

A lógica perversa de um terrorista


Não é por acaso que hoje na Itália diversas pessoas que nos anos 70 flertavam, pelo menos em palavras, com o terrorismo ocupam lugares importantes na sociedade e na política italianas


Claudio Magris
especial para o "Le Monde"

Ignoro quantas pessoas sabem que Antonio Negri, líder da Autonomia Operária e condenado por um tribunal italiano por participação em grupo armado, expressou em uma declaração publicada pelo jornal italiano "Corriere della Sera", em 5/5/2003, sua solidariedade a Silvio Berlusconi [premiê italiano] pelas acusações que lhe foram feitas pela magistratura italiana -os juízes que Berlusconi acusa de ser pérfidos comunistas, revolucionários de esquerda. Segundo Toni Negri, há uma continuidade proposital e planejada entre as perseguições infligidas pela magistratura italiana aos terroristas durante os anos de chumbo, aos que assassinaram juízes, operários, sindicalistas, jornalistas e professores, e as perseguições hoje infligidas a Berlusconi, que Negri evidentemente considera uma "vítima da justiça burguesa". Em um artigo publicado no "Corriere della Sera" em 5/6/2003, perguntei publicamente a Berlusconi, presidente do conselho, se essa aproximação não o deixava em posição incômoda, mas não tive resposta. De seu ponto de vista, Toni Negri tem razão. Berlusconi evidentemente não tem nada a ver com o terrorismo daquele período, mas ele também, quando acusado pelos juízes, não se limita a defender-se pela via judicial, como é seu direito, mas -incrível extravagância da parte de um chefe de governo- deslegitima os juízes e o sistema judicial, acusa os juízes de ser comunistas ou filocomunistas, assim como Toni Negri e as Brigadas Vermelhas os acusavam (e talvez ainda acusem) de ser burgueses. Não é por acaso que hoje na Itália diversas pessoas que nos anos 70 flertavam, pelo menos em palavras, com o terrorismo -proclamavam a necessidade de derrubar por todos os meios o sistema capitalista e suas instituições liberal-democráticas ou destruir publicamente os livros como fetiches da cultura burguesa- ocupam lugares importantes na sociedade e na política italianas, em particular no mundo da informação, e sobretudo militam nas fileiras dos partidários de Berlusconi. Vários dos que ontem diziam "nem com o Estado nem com as Brigadas Vermelhas" hoje são intelectuais entusiásticos e agressivos ao lado de Berlusconi.

Cisão secular
Em tudo isso há uma lógica profunda, coerente e perversa. Nos anos 70, a Itália vivia, embora em meio a diversas contradições, um grande momento de renovação e de esperança. Foram os anos de lutas sociais que conduziram a conquistas sindicais significativas, anos em que a liberdade cresceu, em que as massas sempre mais vastas se integraram à vida política do país, preparando-se para remediar, pelo menos em parte, a cisão secular entre a Itália legal e a Itália real; em que o Partido Comunista, dirigido por Enrico Berlinguer, vivia um processo de democratização libertadora para todo o país, porque transformava as massas exploradas, estrangeiras e hostis ao Estado em elementos ativos que trabalhavam por sua transformação e seu aperfeiçoamento civil. Certamente a Itália não era um modelo nem um paraíso, com sua corrupção, a Máfia, os complôs obscuros e assassinos dos serviços secretos, que muitas vezes souberam utilizar de maneira hábil e criminosa para seus fins essa tentativa de subversão terrorista que acreditava ser de esquerda, enquanto era útil à direita. A Itália era um Estado defeituoso, mas ainda um Estado de Direito e certamente não era um Estado totalitário e terrorista, contra o qual existe apenas a resistência armada. Era uma Itália que parecia se encaminhar para um futuro mais concretamente democrático, pluralista e aberto -a Itália de Norberto Bobbio e de Sandro Pertini, das forças mais progressistas. O partido subterrâneo reacionário transversal não tinha nada em comum com o terrorismo, mas flertava com ele porque sabia que se dedicava a atacar e enfraquecer essa Itália civil. Na verdade, os terroristas não atacaram de maneira coerente os corruptos ou mafiosos, mas assassinaram personalidades das mais abertas e esclarecidas -do professor Vittorio Bachelet ao operário comunista Guido Rossa ao juiz Emilio Alessandrini, para dar apenas alguns exemplos- porque eram os melhores homens para sustentar o Estado. Os que enfrentaram duramente o terrorismo foram grandes antifascistas, como Leo Valiani, combatente e chefe da Resistência. Esse extremismo irresponsável, estupidamente estranho a qualquer contato real com a sociedade italiana e seus processos e desprovido de qualquer inteligência e cultura política, foi o preâmbulo lógico à virada de casaca reacionária que se seguiu. Os que querem a revolução total e imediata, que o mundo esteja definitivamente (e muitas vezes sanguinariamente) redimido amanhã de manhã, desprezando o interminável trabalho necessário para criar mais liberdade e mais igualdade, esses mesmos, no dia seguinte de manhã, quando vêem que o messias não chegou, se convencem de que a situação existente não pode ser modificada, que toda tentativa de aperfeiçoá-la é inútil e nefasta, e se declaram contra qualquer progresso, sempre relativo. É uma história tragicamente estúpida e muito freqüente -a do extremista revolucionário que se torna reacionário.

Conversões fáceis
Diversos terroristas hoje parecem convertidos, às vezes com o kitsch latente das conversões fáceis. Alguns anos atrás, um deles declarou à televisão italiana que havia encontrado uma companheira e tivera um filho e assim compreendera que a violência é má, "que não podemos matar um pai", como se, por outro lado, fosse lícito matar qualquer um que seja apenas um tio. É preciso ter muito pouco poder de imaginação se há necessidade de tornar-se fisicamente pai para compreender a dor de perder um pai ou um filho.
Todo autor de crime deve ter seus direitos de cidadão protegidos, mesmo na paixão que o pode ter levado a cometer seus atos e a perder-se nessas confusões, emoções, morgues intelectuais, utopias generosas e exaltações ruidosas que, combinadas com uma época e uma sociedade perturbadas, podem levar alguém à opção e às ações mais desesperadas e mais ilícitas.
A suposição cínica de alguns ex-terroristas é em si mesma cômica, como a suficiência dos personagens de uma novela, mas se torna intolerável para as vítimas. Podemos e devemos ter compreensão e indulgência por todos e tentar devolver o maior número possível de condenados -não somente por atos de terrorismo- à plenitude da vida civil, mas é revoltante comparar -como fizeram alguns- o terrorismo italiano dos anos 70 à Resistência. Seria como dizer que Papon ou Barbie são heróis da Resistência francesa.


Claudio Magris é escritor e professor de língua e literatura alemãs na Universidade de Trieste e autor de "Danúbio" e "Microscosmos" (ed. Rocco).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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