|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+(L)ivros
Homem de forno e fogão
Antropólogo britânico defende que
a descoberta
do fogo determinou
a evolução
do Homo erectus
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
No livro "Pegando
Fogo", Richard
Wrangham, um
antropólogo sério,
desenvolve a hipótese de que o fogo usado para
cozinhar transformou o Homo
erectus no que somos hoje.
Ele supõe que ao deixarmos
de comer alimentos crus para
cozinhar a comida, não precisávamos mastigá-la e digeri-la
o dia inteiro, e, assim, canalizávamos as calorias gastas na
mastigação para aumentar
nossos cérebros.
Para quem não gosta de salada, o livro é uma vingança. Jeffrey Steingarten [crítico gatronômico da "Vogue" americana
e autor de "O homem que Comeu de Tudo", Cia. das Letras]
deve estar feliz, pois acha triste
que os americanos vivam com a
cara enfiada numa tigela enorme de alface.
Ele esperava, ansioso, o dia
em que surgisse a teoria segundo a qual alface faz mal à saúde.
Wranghan afirma que o macaco com chapéu de cozinheiro
já existe há 1,8 milhão de anos e
que a atividade de cozinhar não
aconteceu por sermos humanos, mas, sim, que nos tornou
humanos.
Mudanças de hábitos
É uma nova teoria da evolução humana, que escapou a
Charles Darwin, da qual Brillat
Savarin chegou bem perto, e
que Lévi-Strauss perdeu por
achar que sua significância era
psicológica e que cozinhávamos por razões simbólicas, para mostrar que somos homens
e não animais.
Já o nosso autor, depois de
muito pesquisar, depois de comer comida de macaco e não se
entusiasmar, chegou à conclusão de que a comida cozida é
mais segura, mais gostosa, não
estraga tão depressa, mas que o
mais importante é que ela aumenta a quantidade de energia
que tiramos do alimento.
A carne e os tubérculos cozidos são mais digeríveis, não levam tempo nenhum para comer e ainda nos livramos de venenos e bactérias.
E conforme o ponto de vista,
não certamente o do macaco,
ficamos mais bonitos. Os dentes se tornaram menores e delicados, as mandíbulas fracas, a
boca pequena e perdemos os
pelos.
De macacos, passamos a Alex
Atalas bonitões por causa de
tubérculos bem cozidos e uma
carne no ponto.
A primeira Dona Benta ainda
não era humana. Foi ficando
com um corpo diferente, começou a andar com duas pernas,
num gingado novo, e aprendeu
a fazer uma costela de cabrito
com inhames cozidos para ninguém botar defeito.
Dona Benta
Seu sistema digestivo diminuiu, o cérebro cresceu, com o
calor do fogo não precisou mais
de pelos, e, sem eles, corria, sem
calor. Começou a dormir no
chão, não precisava mais subir
em árvores.
Dona Benta e sua turma passaram de macacos a humanos,
ela bem parecida com a capa de
seu livro, só não garantimos o
coque. (Wrangham é um cientista sério, só sucumbe à vontade de fazer uma gracinha quando diz que Mick Jagger, com
aquele bocão, é uma exceção na
evolução humana.)
Essas mudanças no rosto humano, no corpo, no cérebro e
nos intestinos só poderiam ser
explicadas por um motivo: refeições cozidas em intervalos
regulares.
Paramos de mastigar o dia
inteiro, a digestão melhorou e
cessaram as azias terminais.
(Para comermos comida cozida, mastigamos uns 35 minutos
por dia e teríamos, como grandes macacos, de mastigar cinco
horas para tornar a comida digerível.)
Mudanças culturais
Refeições regulares, coisa
que todos sabem, mudam também o comportamento. A ideia
de ter a mulher cozinhando em
casa e o marido caçando fabricou o "Homo gastronomicus".
O casamento e o protótipo de
lar podem ter surgido dessa divisão do trabalho.O homem
passou a ir para casa numa certa hora e se juntar com os mais
próximos ao redor do fogo.
Podiam caçar e coletar mel,
sabendo que, ao chegarem, esperava-os uma fogueira e que
sua caça em minutos estaria
macia e boa para comer. As mulheres faziam papinhas e desmamavam as crianças; logo, tinham mais filhos que os macacos não cozinheiros.
O grupo da comida cozida
evoluiu para o Homo erectus e
a humanidade começou.
Segundo Wrangham, o cozimento tornou o trabalho feminino mais leve, mas também as
subjugou a um novo papel de
subserviência, reforçado por
uma cultura dominada pelo homem.
A cozinha criou e perpetuou
um novo sistema cultural de
superioridade masculina.
A provocação do autor pode
ser resumida. Mais do que humanos criando técnicas civilizadas, foram as técnicas civilizadas que nos tornaram humanos. E o que nos tornou homens é o que pode estar nos
matando hoje em dia.
De tão civilizados estamos
obesos, com pressão alta, preguiçosos.
Bem, o problema das teorias
sobre o passado é que elas se
apoiam em poucos fatos.
Você, leitor, é que vai escolher acreditar ou não na tese de
Wrangham. Ele é um estudioso
que sabe das coisas, o livro tem
vivacidade, é fácil de ler, é interessante.
Se tivermos nossas dúvidas
sobre a hipótese culinária da
evolução, sempre fica a certeza
da enorme mudança cultural
que a cozinha acarretou.
PEGANDO FOGO
Autor: Richard Wrangham
Tradutora: Maria Luiza X. Borges
Editora: Zahar (tel. 0/ xx/ 21/ 2108-0808)
Quanto: R$ 34 (228 págs.)
Texto Anterior: +inéditos Próximo Texto: V de poesia Índice
|