São Paulo, domingo, 28 de março de 2010

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+(L)ivros

Homem de forno e fogão

Antropólogo britânico defende que a descoberta do fogo determinou a evolução do Homo erectus

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

No livro "Pegando Fogo", Richard Wrangham, um antropólogo sério, desenvolve a hipótese de que o fogo usado para cozinhar transformou o Homo erectus no que somos hoje.
Ele supõe que ao deixarmos de comer alimentos crus para cozinhar a comida, não precisávamos mastigá-la e digeri-la o dia inteiro, e, assim, canalizávamos as calorias gastas na mastigação para aumentar nossos cérebros.
Para quem não gosta de salada, o livro é uma vingança. Jeffrey Steingarten [crítico gatronômico da "Vogue" americana e autor de "O homem que Comeu de Tudo", Cia. das Letras] deve estar feliz, pois acha triste que os americanos vivam com a cara enfiada numa tigela enorme de alface.
Ele esperava, ansioso, o dia em que surgisse a teoria segundo a qual alface faz mal à saúde. Wranghan afirma que o macaco com chapéu de cozinheiro já existe há 1,8 milhão de anos e que a atividade de cozinhar não aconteceu por sermos humanos, mas, sim, que nos tornou humanos.

Mudanças de hábitos
É uma nova teoria da evolução humana, que escapou a Charles Darwin, da qual Brillat Savarin chegou bem perto, e que Lévi-Strauss perdeu por achar que sua significância era psicológica e que cozinhávamos por razões simbólicas, para mostrar que somos homens e não animais.
Já o nosso autor, depois de muito pesquisar, depois de comer comida de macaco e não se entusiasmar, chegou à conclusão de que a comida cozida é mais segura, mais gostosa, não estraga tão depressa, mas que o mais importante é que ela aumenta a quantidade de energia que tiramos do alimento.
A carne e os tubérculos cozidos são mais digeríveis, não levam tempo nenhum para comer e ainda nos livramos de venenos e bactérias. E conforme o ponto de vista, não certamente o do macaco, ficamos mais bonitos. Os dentes se tornaram menores e delicados, as mandíbulas fracas, a boca pequena e perdemos os pelos.
De macacos, passamos a Alex Atalas bonitões por causa de tubérculos bem cozidos e uma carne no ponto.
A primeira Dona Benta ainda não era humana. Foi ficando com um corpo diferente, começou a andar com duas pernas, num gingado novo, e aprendeu a fazer uma costela de cabrito com inhames cozidos para ninguém botar defeito.

Dona Benta
Seu sistema digestivo diminuiu, o cérebro cresceu, com o calor do fogo não precisou mais de pelos, e, sem eles, corria, sem calor. Começou a dormir no chão, não precisava mais subir em árvores.
Dona Benta e sua turma passaram de macacos a humanos, ela bem parecida com a capa de seu livro, só não garantimos o coque. (Wrangham é um cientista sério, só sucumbe à vontade de fazer uma gracinha quando diz que Mick Jagger, com aquele bocão, é uma exceção na evolução humana.)
Essas mudanças no rosto humano, no corpo, no cérebro e nos intestinos só poderiam ser explicadas por um motivo: refeições cozidas em intervalos regulares.
Paramos de mastigar o dia inteiro, a digestão melhorou e cessaram as azias terminais.
(Para comermos comida cozida, mastigamos uns 35 minutos por dia e teríamos, como grandes macacos, de mastigar cinco horas para tornar a comida digerível.)

Mudanças culturais
Refeições regulares, coisa que todos sabem, mudam também o comportamento. A ideia de ter a mulher cozinhando em casa e o marido caçando fabricou o "Homo gastronomicus".
O casamento e o protótipo de lar podem ter surgido dessa divisão do trabalho.O homem passou a ir para casa numa certa hora e se juntar com os mais próximos ao redor do fogo.
Podiam caçar e coletar mel, sabendo que, ao chegarem, esperava-os uma fogueira e que sua caça em minutos estaria macia e boa para comer. As mulheres faziam papinhas e desmamavam as crianças; logo, tinham mais filhos que os macacos não cozinheiros. O grupo da comida cozida evoluiu para o Homo erectus e a humanidade começou.
Segundo Wrangham, o cozimento tornou o trabalho feminino mais leve, mas também as subjugou a um novo papel de subserviência, reforçado por uma cultura dominada pelo homem. A cozinha criou e perpetuou um novo sistema cultural de superioridade masculina.
A provocação do autor pode ser resumida. Mais do que humanos criando técnicas civilizadas, foram as técnicas civilizadas que nos tornaram humanos. E o que nos tornou homens é o que pode estar nos matando hoje em dia.
De tão civilizados estamos obesos, com pressão alta, preguiçosos.
Bem, o problema das teorias sobre o passado é que elas se apoiam em poucos fatos.
Você, leitor, é que vai escolher acreditar ou não na tese de Wrangham. Ele é um estudioso que sabe das coisas, o livro tem vivacidade, é fácil de ler, é interessante.
Se tivermos nossas dúvidas sobre a hipótese culinária da evolução, sempre fica a certeza da enorme mudança cultural que a cozinha acarretou.


PEGANDO FOGO
Autor:
Richard Wrangham
Tradutora: Maria Luiza X. Borges
Editora: Zahar (tel. 0/ xx/ 21/ 2108-0808)
Quanto: R$ 34 (228 págs.)



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