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A superideologia
Dinheiro queimado
Colapso aponta para o fim
dos EUA como potência
mundial e o
enfraquecimento
do dólar
como moeda
de troca - e isso
pode ser ruim
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Eric Thayer - 18.set.08/Reuters
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Bandeira dos EUA feita de cédulas é exposta no Museu das Finanças Americanas, em Nova York
ROBERT KURZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Crise -qual crise? Eis
o que tonitruavam
até pouco tempo
atrás ideólogos liberais, de direita e também de esquerda, que acreditam na vida eterna do capitalismo. Saiu cada vez mais do foco
da atenção o fato de essa espécie de sociedade não apenas ter
uma história, mas ser mesmo a
história de uma dinâmica cega.
Justamente nas duas últimas
décadas, as pessoas queriam
perceber apenas os "eventos"
transitórios nas formas sociais
a-históricas de uma ontologia
capitalista. Isso vale para indivíduos comuns e para os pobres, assim como para as elites.
À semelhança do personagem Dorian Gray no romance
homônimo do irlandês Oscar
Wilde, parecia que no lugar do
capitalismo só envelhecia a
imagem do mundo social por
ele criado, assumindo os traços
da miséria, enquanto a lógica
do dinheiro brilhava em falso
frescor juvenil.
Agora, a "Segunda-Feira Negra" da maior quebra financeira da história [a do Lehman
Brothers, 15/9] desvela num
único golpe o verdadeiro rosto
do Dorian Gray capitalista.
Ocorre que ninguém quer reconhecer essa natureza do novo surto de crise. A confiança
atávica no capitalismo conduz
apenas à busca de culpados.
"Práticas nada sérias" de especuladores e uma "política
econômica anglo-saxã" são responsabilizadas pelo desastre.
Tal explicação míope com ecos
anti-semitas já foi mobilizada
recorrentemente no passado.
Há mais de 20 anos uma onda de crises financeiras acompanha a globalização. Todas as
medidas aparentemente bem-sucedidas para evitar uma "fusão nuclear" do sistema financeiro internacional só lograram reformular o problema,
em vez de solucioná-lo.
Humanos obsoletos
Sua evolução atual implode
todas as concepções até agora
propostas. Não afetou apenas o
setor dos créditos hipotecários
nos EUA, mas provocou também uma reação em cadeia, cujo fim ainda é distante.
É impossível que as causas
sejam a falha individual e as deficiências morais dos atores.
Elas só podem residir no núcleo do sistema, referido à economia real.
O capitalismo é apenas a acumulação autotélica de dinheiro, cuja "substância" consiste
no uso crescentemente ampliado da mão-de-obra humana. Ao
mesmo tempo, porém, a concorrência conduz a um aumento da produtividade, que torna
a mão-de-obra obsoleta, em escala também crescente.
Apesar de todas as crises, tal
autocontradição parecia dissolver-se sempre em uma regeneração da absorção maciça da
mão-de-obra por novas indústrias. O "milagre econômico"
depois de 1945 transformou em
credo essa capacidade do capitalismo, mas, desde os anos
1980, a "Terceira Revolução Industrial", microeletrônica, ensejou uma nova qualidade da
racionalização, que desvaloriza
a mão-de-obra humana em medida antes desconhecida.
Sem o surgimento de novas
indústrias dotadas da potência
de crescimento auto-sustentado, a "substância" real da valorização do capital se derrete.
O neoliberalismo foi tão-somente a tentativa de gerir com
meios repressivos a crise social
daí decorrente, por um lado, e
de produzir um crescimento
"sem substância" do "capital
fictício" mediante o inchaço irrefreado do crédito, do endividamento e das bolhas financeiras nos mercados de ações e de
imóveis, por outro lado.
Mas essa abertura mundial
das comportas monetárias e,
sobretudo, a avalanche de dólares produzida pelo Banco Central dos EUA já foram o pecado
original do assim chamado monetarismo, que postulara como
cerne da doutrina neoliberal a
redução forçada da quantidade
de dinheiro.
Na verdade, o jorro de dinheiro, criado pelo Estado a
partir do nada, subsidiou uma
inflação de ativos patrimoniais
fictícios. O paradoxal "socialismo do dinheiro sem substância" experimenta agora seu
"Waterloo", como antes já
ocorreu com o capitalismo de
Estado do Leste Europeu e a
versão keynesiana do crescimento fomentado pelo Estado
no Ocidente.
A estatização de fato do sistema bancário dos EUA e o plano
do secretário do Tesouro dos
EUA para conter a crise com recursos estatais só podem ser
avaliados como atos de desespero. Da noite para o dia revelou-se o caráter de capitalismo
estatal da suposta liberdade
dos mercados.
Estágio final
Comentaristas irônicos já falam em "República Popular de
Wall Street". Mas isso não resolve nada.
De certa forma, estamos
diante do último estágio do capitalismo de Estado, que na
melhor das hipóteses pode postergar o colapso dos balanços
com mais emissões inflacionárias de moeda.
À diferença de épocas anteriores, inexiste espaço para novos programas conjunturais, que precisariam alimentar-se
na mesma fonte.
Com isso também chegou o
fim dos EUA enquanto potência mundial. Não é mais possível financiar guerras intervencionistas com recursos próprios. O dólar se torna obsoleto
enquanto moeda mundial.
Ocorre que não podemos vislumbrar no horizonte nenhum
substituto para os papéis da última potência mundial e do dólar. O ressentimento contra a
"dominação anglo-saxã" não é
uma crítica do capitalismo e
não tem credibilidade, pois os
fluxos unilaterais de exportações aos EUA sustentaram a
conjuntura do déficit global.
Na Ásia, na Europa e alhures,
as capacidades industriais não
viveram de ganhos e salários
reais, mas, direta ou indiretamente, do endividamento externo dos EUA.
Déficit global
No fundo, a economia neoliberal das bolhas financeiras foi
uma espécie de "keynesianismo mundial", que agora se extingue como a anterior variante
nacional do keynesianismo.
Todas as "novas potências"
supostamente emergentes estão inseridas de modo economicamente dependente na circulação global do déficit.
Sua dinâmica muito admirada foi uma mera aparência, sem
desenvolvimento interno próprio. Por isso não haverá em
nenhum lugar o retorno a um
capitalismo "sério" com empregos "reais".
Em vez disso, devemos esperar o efeito dominó de uma repercussão da crise financeira
na conjuntura mundial, ao qual
nenhuma região poderá subtrair-se.
O capitalismo de Estado e o
capitalismo concorrencial "livre" evidenciam ser dois lados
da mesma moeda. Abala-se não
um "modelo" passível de ser
substituído por outro, mas o
modo vigente da produção e da
vida enquanto fundamento comum do mercado mundial.
ROBERT KURZ é sociólogo alemão, autor de "O
Colapso da Modernização" (Paz e Terra).
Tradução de Peter Naumann.
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