São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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crítica

POR JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA

Retorno à literatura

Nas aulas que ministro de literatura comparada, sempre ocorre um ritual incômodo. No início de cada semestre, busco identificar o repertório de leitura dos alunos, a fim de estabelecer o diálogo intertextual que justifica a disciplina. Contudo o resultado da iniciativa é melancólico. Machado de Assis? Talvez tenham lido "Memórias Póstumas de Brás Cubas", "Dom Casmurro" e uma magra seleção de contos. Guimarães Rosa? Sim, "ouviram" falar -afinal, o curso é breve; porém é interminável a travessia do sertão rosiano. Poetas? Quase todos fazem versos, mas poucos buscam a chave do poema.
Na pós-graduação, o saldo é semelhante. O necessário viés da especialização transformou-se em vício. Formam-se doutores em crítica e teoria literária que não conseguem sustentar uma hora de conversa descontraída sobre autores de sua estima. Ou seja, aqueles cujas obras provocam um impacto considerável, mas sobre os quais não se escrevem dissertações, ensaios, resenhas: produtos que engordem o "curriculum vitae".
Precisamente por isso, em primeiro lugar, alunos de letras precisam se familiarizar com a própria literatura. Sem dúvida, a reflexão teórica sobre o fenômeno literário é indispensável, mas se torna ociosa se não estiver associada à leitura dos textos. Em geral, a prática analítica e o ensino reduziram a literatura ao papel de confirmação de teorias.
O futuro dos estudos literários encontra-se no retorno à literatura. Necessitamos recuperar sua dimensão antropológica. Na companhia de "Madame Bovary" também somos Emma Bovary. Riobaldo revela nossas dúvidas sobre o que se pode saber e o que jamais se descobrirá -ou apenas quando for muito tarde. Com o narrador de "A Hora da Estrela", compartilhamos a angústia de inventar pontes que permitam compreender o "outro". Tal processo não supõe uma identificação banal, mas destaca a força da literatura como laboratório de experiências sobre os sentidos do humano e a riqueza da linguagem.
Precisamos recuperar a experiência radical de descentramento à volta da biblioteca. Ou ao redor do quarto, nas memórias póstumas do texto que terminamos. Rimbaud traduziu a força desse gesto: "Eu é um outro" -definição precisa da experiência renovada a cada leitura. "Antropologia literária", na formulação cortante de Wolfgang Iser. Precisamos, então, nas palavras de Hans Ulrich Gumbrecht, "recuperar os poderes da filologia". Isto é, reaprender a ensinar o ofício da leitura de textos literários. Ofício ingrato: não importa o tempo de prática, nunca se sabe se a próxima análise será fecunda. Porém, como esclareceu Paul Valéry, "o prazer da leitura reside em sua dificuldade".


João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj).


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