São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2006

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Privado X Estatal

O racha de uma nação

HELGIO TRINDADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

A polarização estatismo versus privatismo foi no segundo turno uma polêmica puramente eleitoral? Obviamente, os dois candidatos buscaram estabelecer suas estratégias construídas no debate, mas estas refletiram também questões substantivas e simbólicas.
Por mais que se tente relativizar a polarização clássica direita/esquerda, algumas polarizações são, em ultima instância, sinalizadoras dos projetos políticos subjacentes. Reforçam as identidades políticas e ideológicas, renovam o compromisso com o candidato e traduzem para os indecisos, em linguagem acessível, os temas centrais da campanha.
Como toda estratégia eleitoral, tem riscos, mas seu êxito depende da capacidade dos candidatos de impingirem no seu adversário a visão menos popular da polarização.
O segundo turno ofereceu ao eleitorado a possibilidade de uma decisão mais madura pela confrontação direta entre os candidatos e seus programas.
A oposição, impregnada de um lacerdismo tardio, apostou, como no primeiro turno, na estratégia de centrar o debate no tema corrupção/anticorrupção. Este, que marcou o liberalismo conservador e golpista da UDN entre 1945 e 1964, se mostrou, hoje, ineficaz em termos nacionais.
Embora o candidato de oposição buscasse no primeiro debate nocautear seu adversário numa ofensiva baseada no episódio do "dossiê", na realidade acabou consumindo os últimos cartuchos da retórica denuncista. Os primeiros resultados das pesquisas mostraram que o eleitorado sinalizava que o segundo turno seria para aprofundar o debate, e o crescimento da candidatura da situação se fez, sobretudo, pela conquista de votos do adversário.
Se no primeiro turno a oposição se pautou pelo tema da corrupção, a estratégia do segundo turno foi construída pelo governo, como contra-ofensiva, por meio do debate estatismo x privatização, colocando a oposição na defensiva diante da herança dos governos tucanos.
Estatismo no Brasil tem marcas históricas que ultrapassam o receituário neoliberal. Com raízes na polarização "nacionalismo versus entreguismo", possui conotações ideológicas claras: seja pelo vínculo a Getúlio Vargas ou Juscelino Kubitschek, símbolos da valorização do patrimônio público e da expansão da indústria nacional, seja pela associação traumática com a experiência precursora de Fernando Collor de Mello.
Estatismo versus privatismo tornou-se um componente obrigatório no debate político, capaz de reforçar as identidades políticas, especialmente quando a Petrobras assume no imaginário o caráter de empresa pública símbolo e fortemente rentável.
Essa polarização resultou, de fato, do deslocamento do debate para questões programáticas. Quando os candidatos procuravam valorizar no discurso o crescimento da economia e as políticas sociais, era preciso mostrar as diferenças por meio das clivagens ideológicas. A contra-ofensiva do candidato à reeleição, confrontando as políticas públicas do atual governo e o fantasma da herança privatista dos governos neoliberais, legitimou a estratégia.
Numa campanha pobre no debate programático aprofundado, a polaridade estatismo-privatismo acabou sendo uma referência politicamente eficaz, num contexto de forte competição eleitoral, atiçada pela mídia à saciedade, na demarcação do perfil das candidaturas para possibilitar um voto mais consciente dos eleitores no segundo turno.


HELGIO TRINDADE é professor titular de ciência política e ex-reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


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