São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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Eduardo Giannetti da Fonseca lembra a influência de Nagel em sua formação e diz que ele pode ajudar os filósofos brasileiros a superarem seu "vício ocupacional"

Humildade analítica, arrogância dialética

Caio Caramico Soares
free-lance para a Folha

Em enquete do caderno Mais! [publicada em 11/4/1999], que pedia a alguns dos principais intelectuais brasileiros que listassem o que seriam para eles os dez mais importantes livros do século 20, Eduardo Giannetti da Fonseca pôs "Visão a partir de Lugar Nenhum", de Thomas Nagel, no topo, à frente de clássicos como "O Mal-Estar na Civilização", de Freud, e "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", de Max Weber.
Como mostra na entrevista a seguir, os motivos do economista e professor do Ibmec -que fez a revisão técnica da edição brasileira da obra- para essa escolha são muitos.
 
Por que "Visão a partir de Lugar Nenhum" é o livro mais importante do século 20?
Foi o livro, dentre aqueles editados no século 20, que mais me influenciou, o livro mais importante em minha formação. As questões mais interessantes da epistemologia, da ética, da filosofia da mente, da linguagem, da metafísica, da filosofia política se prestam a uma elucidação a partir desse conflito entre o ponto de vista interno do sujeito e o ponto de vista da objetividade, ou seja, a tentativa de se ver de fora, a partir de um ponto de vista neutro, impessoal.
Acho que ele conseguiu unificar as grandes preocupações da filosofia a partir de um fio subjacente, que é essa dualidade que ele elabora e que lhe permite cortar transversalmente os mais diversos temas. Nagel é um dos autores com os quais, quando o leio, me sinto diminuído, porque ele me parece de uma clareza, consistência, rigor, elegância, que eu jamais vou alcançar, ele realmente me oprime, mas ao mesmo tempo me instiga, me provoca a ser melhor.
Ele me dá essa clara sensação de quanto me falta como pensador e autor. Uma mistura de opressão e provocação intelectual. Acho Nagel o mais importante filósofo vivo hoje no mundo. Na tradição analítica, que é a de Nagel, diferentemente da tradição dialética (mais continental), a questão importa mais do que a história da idéia. Ele, por exemplo, escreveu um livro inteiro de introdução à filosofia ["What Does It All Mean", lançado no Brasil pela editora Martins Fontes com o título de "Uma Breve Introdução à Filosofia"] sem se referir a nenhum filósofo, porque ele quer mostrar para o estudante a importância do problema filosófico [em si]. Acho essa abordagem magnífica, essa é a maneira de fazer filosofia, senão você descamba para o que é o vício ocupacional do filósofo brasileiro, que é a exposição sedentária de doutrinas alheias, para usar a expressão de Mário de Andrade. O que Nagel faz é o inverso disso. O problema tem precedência sobre a história das idéias.

O sr. diz que o lançamento de "Visão a partir de Lugar Nenhum" pode marcar uma boa oportunidade para "termos uma filosofia mais esclarecida no Brasil". A seu ver, quais são as principais carências intelectuais nacionais que esse livro pode ajudar a sanar?
Sobretudo uma filosofia que se preocupe mais com problemas do que com reconstruções historiográficas. Também a questão da clareza; o filósofo tem que ser claro e saber convencer quanto à relevância dos problemas que ele traz. Uma coisa que Nagel faz -e que acho que pode inspirar um jovem a se preocupar com filosofia- é mostrar que os problemas da filosofia são pertinentes, são coisas que qualquer pessoa lúcida pode perceber por si mesma e começar a pensar, porque são coisas que importam. Para mim, como estudioso de economia, a filosofia relevante para as ciências é essa [da linha analítica], e não a continental, dialética. E há muita empáfia, muita confusão entre profundidade e obscuridade. Acho que a história da filosofia tem seu papel, é muito importante que seja feita, mas isso é diferente de filosofia propriamente dita, o historiador de idéias quer resgatar o sentido original de uma obra em seu contexto intelectual e prático.
Agora, o que nos falta no Brasil é o filósofo que tenha capacidade de enfrentar problemas filosóficos e de pensar a partir de problemas, e não de uma reconstrução historiográfica.

Como se deu seu encontro com o livro?
Eu estudei filosofia na graduação [Giannetti se formou em ciências sociais e economia na USP], mas em meados dos anos 70, no Brasil, filosofia era sinônimo de filosofia continental européia, franco-germânica. Estudei muito Marx e, para entender Marx, Hegel. Eu era marxista, na minha geração não havia como não ser marxista, todos nós disputávamos para saber qual era o verdadeiro e ortodoxo marxista. Ao ir para a Inglaterra, li três vezes mais filosofia do que economia, mas percebi que, todos os autores que eu tinha estudado aqui na minha juventude, era como se não existissem. A própria Escola de Frankfurt, o objeto de minha grande admiração então, não era lá nem considerada filosofia, mas sim sociologia.
Lá havia uma outra tradição, que eu desconhecia quase por completo, que era a filosofia analítica. Para justificar minha existência acadêmica lá, tive que recomeçar do zero e começar a estudar, aprender e até participar dessa abordagem. Descobri Nagel nessa época, mas o li com mais afinco depois de escrever "Vícios Privados, Benefícios Públicos" (1993). A presença de Nagel já é muito forte em "Auto-Engano" e em "Felicidade" [ambos lançados pela Cia. das Letras].

É correto dizer que Nagel preenche, em seu desenvolvimento intelectual pessoal, um papel estratégico de intermediação entre o rigor argumentativo da filosofia analítica e os grandes temas da tradição crítico-dialética (em que o sr. se criou), até mesmo do romantismo, por exemplo quando ele denuncia os excessos da ciência moderna?
Os filósofos dialéticos, da tradição hegeliana, e o próprio Marx olham para a ciência com uma arrogância, um ar de superioridade, como se os cientistas fossem meros empiristas, positivistas. Hegel, na "Filosofia da Natureza", se dá ares de que entende mais de física do que Newton. Na tradição analítica, olha-se com humildade para a ciência e busca-se aprender o que a ciência pode oferecer para a reflexão filosófica. O filósofo não se põe num pedestal olhando para os meros cientistas como se fossem ratinhos de laboratório que não sabem muito bem o que estão fazendo e pensando.
Nagel de novo aí tem uma posição muito interessante. Ao mesmo tempo em que respeita enormemente as conquistas do pensamento científico, ele mostra os seus limites, o que nós podemos esperar da ciência. E ele acaba mostrando que as questões que mais nos importam a ciência jamais nos responderá, são as perguntas acerca do sentido, do bem, do que importa. Mas não se coloca naquela posição frankfurtiana de olhar para os cientistas como se fossem bebês incapazes de dar um passo sem tropeçar.

Mas Nagel denuncia o "cientismo"...
Sim, ele critica o cientismo, isto é, transformar a ciência em fé e dogma, a idéia de que a ciência vai dar respostas para as perguntas da filosofia. Eu resumiria a posição de Nagel dizendo que não há nada mais irracional do que ignorar os limites da racionalidade. Há uma interioridade no mental que é diferente da interioridade do cérebro dentro da caixa craniana. E a ciência é constitutivamente incapacitada para lidar com essa interioridade do sujeito. Esse é o irredutível da experiência humana. E ele é o que mais importa, é nesse plano que nossa vida transcorre. Ele dá até um exemplo, em "Uma Breve Introdução à Filosofia": imagine uma pessoa comendo chocolate -e tudo o que o chocolate significa para ela, em termos de ressonâncias, de memória, de associações subjetivas- e um cientista que queira ter uma "visão científica" do cérebro sob o estímulo do chocolate.
Imagine se um cientista consegue abrir, lamber esse cérebro e sentir o gosto de chocolate; o gosto de chocolate que ele vai sentir não é o mesmo da pessoa, é apenas um gosto de chocolate que o cérebro da pessoa tem enquanto ela como chocolate. E há um poema de um heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos ["Tabacaria"], que diz: "Come chocolates, pequena;/ Come chocolates!/ Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates./(...) Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!". É exatamente a mesma coisa que Nagel diz!

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