São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

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A irrelevância da política

O filósofo discute o alcance da democracia a partir da entrevista dada à Folha pelo sociólogo Francisco de Oliveira

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

O velho amigo Francisco de Oliveira deu uma entrevista para a Folha (em 24/7), que merece a maior atenção. Quando trabalhava no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), alguns de nós o víamos como cangaceiro economista-sociólogo, que se punha a dar tiros no terreiro muitas vezes acertando pássaros em debandada. O que ele nos vem dizer agora coloca em pauta o próprio sentido da política contemporânea, obrigando-nos a repensar o tema, seja lá com qual recurso.
No sistema político sempre atua uma ponta de utopia que força a pensar além do tecnicamente possível. Chico, com toda a razão, lembra a importância atual do PSOL como Grilo Falante que, de certo modo, está pronto para policiar o comportamento de outros grupos políticos. E mais razão ainda quando aponta os limites do novo partido, já que -ao contrário do PT, que nasceu com profundas raízes sociais, principalmente o movimento sindical- se infiltra nos poros de uma esquerda esfacelada e no centro desmoralizado do PT.
Mas, do ponto de vista geral, o que lhe importa é que, devendo a política interna passar pelas relações externas do capitalismo globalizado, perde a capacidade de dirigir a sociedade como um todo. Vale a pena citar uma passagem: "Aqui, o fundo da irrelevância da política é a desigualdade. Não é mais plausível, para nenhum de nós, que você possa, por meio da política, atravessar o Rubicão".
Mas, se o efeito disso tudo é devastador, como o próprio Chico indica, não seriam diferentes as formas e os graus dessa devastação? Se a política perde sua dualidade limite, o trabalho e sua exploração sendo despojados da centralidade de antigamente, não é por que a dualidade de amigo e inimigo passou a se manifestar noutros níveis?

O bem e o mal
Retomo uma distinção que não é bem vista pela teoria política que considera todo o seu sistema regulado pela idéia de consenso e discussão.
No entanto, sem entrar em questiúnculas críticas, parece-me que a luta política atual nada tem de esclarecida nem mesmo do ponto de vista normativo, visto que tudo gira em torno da luta pelo poder, em particular do controle das populações (mercado de trabalho, educação etc.) e da pilhagem do aparelho do Estado.
Além do mais, não aparece no horizonte uma profunda reforma ou refundação desse Estado. Nessas condições, as ações políticas de grande porte não trazem em si mesmas a possibilidade de um acordo, de um projeto nacional. Por isso parece-me que a política trata de se compensar por seu lado moral, configurando-se como a luta entre o bem e o mal, seja entre o Ocidente e o Oriente ou entre novos irmãos que vêem fazer justiça contra todas as iniqüidades do passado. Como no Brasil a antiga oposição entre corruptos e incorruptos foi abafada pela inacreditável corrupção do partido e do governo que pousavam de guardiões da moralidade, ela trata rapidamente de reescrever seu discurso: aceita uma dose de imoralidade na política desde que o governo mantenha seu compromisso com o social.
Como não faz nenhuma análise do que tem sido esse compromisso, o novo discurso se resume na pregação moral da opção pelos pobres. Em contrapartida, a oposição atual promete um governo eficaz e honesto, sem apresentar os recursos e os instrumentos comprovados para encaminhar questões como desemprego, segurança, crescimento e assim por diante. No final das contas, Deus é fiel e não abandonará o povo brasileiro engajado nas obras Dele.
Não há dúvida de que a globalização enfraquece a política e o Estado, desalinhando os procedimentos normais de dirigir a sociedade. Em maior ou menor grau, todos os países estão na dependência do crescimento exponencial do mercado externo e fluxo do capital internacional. Mas, a despeito dessas restrições, os erros de uma política nacional ou internacional têm conseqüências devastadoras.

Tabuleiro pegando fogo
Veja-se o que está acontecendo no Oriente Médio, onde todas as partes são responsáveis -é verdade que em maior ou menor grau- pelo crescimento de um conflito cada vez mais distante de qualquer controle.
E, se os políticos continuam jogando xadrez num tabuleiro pegando fogo, os peões da sociedade civil têm sido maciçamente sacrificados. Apontar as catástrofes causadas pelos erros da política brasileira depois da democratização seria uma tarefa que vai além do escopo deste artigo.
Mas que cada leitor, segundo sua própria ideologia, tenha um ou dois em mente, pois o que me importa, por ora, é salientar a enorme desproporção entre as conseqüências do acerto e do erro. Daí a necessidade de perguntar até que ponto o sistema partidário, em particular a democracia tal como é exercida hoje, tem condições de resolver desafios como a estabilidade do crescimento, a instabilidade da segurança, a saúde das populações e assim por diante.
Costuma-se salientar a importância do terceiro setor e do fluxo de informações circulando na internet; surge uma forma privada de participar da política por e-mails. Mas, se até agora esses movimentos têm, sobretudo, provocado manifestações públicas espasmódicas -a população saindo em praça pública para reclamar um direito para em seguida se dispersar-, politicamente nada mais fazem do que, quando muito, derrotar um candidato do sistema político já instalado.

Política "soft"
Estamos obrigados a praticar uma política "soft", em que os acertos são pequenos e lentamente conseguidos, enquanto os erros passam a ter conseqüências tenebrosas. Não é o caso de perguntar se a melhor democracia do mundo está preparada para enfrentar os problemas que nos afligem interna e externamente?
Colocando de lado o retorno a um regime autoritário, a dificuldade está em saber como aprofundar a democracia extravasando os limites do Estado. Sabemos que nem sempre a forma do Estado nacional foi a mais importante instituição política de um povo, mas até agora não sabemos como ir além de seus limites, transformando a democracia numa forma de vida.
Tempos atrás se apostou muito nos movimentos sociais, e agora se aposta na criatividade do terceiro setor, desde que inteiramente desvinculado dos recursos estatais e de seus partidarismos.
Mas, enquanto novas formas democráticas de controle social não são inventadas, é a política na sua forma atual que precisa ser vigilantemente praticada, aceitando a aventura amoral da criação do novo e o julgamento moral da coisa feita. De um lado, tratando de renegar suas traições, suas deformações e seus enganos mas também valorizando seus momentos de solidariedade e vislumbres de futuro. Talvez ele somente venha a transparecer se passarmos incólumes pelo inferno.


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap . Escreve na seção "Autores".

Leia a entrevista do sociólogo Francisco de Oliveira


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