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A irrelevância da política
O filósofo discute o alcance da democracia
a partir da entrevista
dada à Folha pelo sociólogo Francisco
de Oliveira
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
O velho amigo Francisco de Oliveira
deu uma entrevista para a Folha
(em 24/7), que
merece a maior atenção. Quando trabalhava no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), alguns de nós o
víamos como cangaceiro economista-sociólogo, que se punha a dar tiros no terreiro muitas vezes acertando pássaros
em debandada. O que ele nos
vem dizer agora coloca em pauta o próprio sentido da política
contemporânea, obrigando-nos a repensar o tema, seja lá
com qual recurso.
No sistema político sempre
atua uma ponta de utopia que
força a pensar além do tecnicamente possível. Chico, com toda a razão, lembra a importância atual do PSOL como Grilo
Falante que, de certo modo, está pronto para policiar o comportamento de outros grupos
políticos. E mais razão ainda
quando aponta os limites do
novo partido, já que -ao contrário do PT, que nasceu com
profundas raízes sociais, principalmente o movimento sindical- se infiltra nos poros de
uma esquerda esfacelada e no
centro desmoralizado do PT.
Mas, do ponto de vista geral,
o que lhe importa é que, devendo a política interna passar pelas relações externas do capitalismo globalizado, perde a capacidade de dirigir a sociedade
como um todo.
Vale a pena citar uma passagem: "Aqui, o fundo da irrelevância da política é a desigualdade. Não é mais plausível, para nenhum de nós, que você
possa, por meio da política,
atravessar o Rubicão".
Mas, se o efeito disso tudo é
devastador, como o próprio
Chico indica, não seriam diferentes as formas e os graus dessa devastação? Se a política
perde sua dualidade limite, o
trabalho e sua exploração sendo despojados da centralidade
de antigamente, não é por que
a dualidade de amigo e inimigo
passou a se manifestar noutros
níveis?
O bem e o mal
Retomo uma distinção que
não é bem vista pela teoria política que considera todo o seu
sistema regulado pela idéia de
consenso e discussão.
No entanto, sem entrar em
questiúnculas críticas, parece-me que a luta política atual nada tem de esclarecida nem
mesmo do ponto de vista normativo, visto que tudo gira em
torno da luta pelo poder, em
particular do controle das populações (mercado de trabalho,
educação etc.) e da pilhagem do
aparelho do Estado.
Além do mais, não aparece
no horizonte uma profunda reforma ou refundação desse Estado. Nessas condições, as
ações políticas de grande porte
não trazem em si mesmas a
possibilidade de um acordo, de
um projeto nacional. Por isso
parece-me que a política trata
de se compensar por seu lado
moral, configurando-se como a
luta entre o bem e o mal, seja
entre o Ocidente e o Oriente ou
entre novos irmãos que vêem
fazer justiça contra todas as iniqüidades do passado.
Como no Brasil a antiga oposição entre corruptos e incorruptos foi abafada pela inacreditável corrupção do partido e
do governo que pousavam de
guardiões da moralidade, ela
trata rapidamente de reescrever seu discurso: aceita uma
dose de imoralidade na política
desde que o governo mantenha
seu compromisso com o social.
Como não faz nenhuma análise do que tem sido esse compromisso, o novo discurso se
resume na pregação moral da
opção pelos pobres.
Em contrapartida, a oposição
atual promete um governo eficaz e honesto, sem apresentar
os recursos e os instrumentos
comprovados para encaminhar
questões como desemprego,
segurança, crescimento e assim
por diante. No final das contas,
Deus é fiel e não abandonará o
povo brasileiro engajado nas
obras Dele.
Não há dúvida de que a globalização enfraquece a política e o
Estado, desalinhando os procedimentos normais de dirigir a
sociedade. Em maior ou menor
grau, todos os países estão na
dependência do crescimento
exponencial do mercado externo e fluxo do capital internacional. Mas, a despeito dessas restrições, os erros de uma política
nacional ou internacional têm
conseqüências devastadoras.
Tabuleiro pegando fogo
Veja-se o que está acontecendo no Oriente Médio, onde todas as partes são responsáveis
-é verdade que em maior ou
menor grau- pelo crescimento
de um conflito cada vez mais
distante de qualquer controle.
E, se os políticos continuam
jogando xadrez num tabuleiro
pegando fogo, os peões da sociedade civil têm sido maciçamente sacrificados.
Apontar as catástrofes causadas pelos erros da política brasileira depois da democratização seria uma tarefa que vai
além do escopo deste artigo.
Mas que cada leitor, segundo
sua própria ideologia, tenha um
ou dois em mente, pois o que
me importa, por ora, é salientar
a enorme desproporção entre
as conseqüências do acerto e do
erro. Daí a necessidade de perguntar até que ponto o sistema
partidário, em particular a democracia tal como é exercida
hoje, tem condições de resolver
desafios como a estabilidade do
crescimento, a instabilidade da
segurança, a saúde das populações e assim por diante.
Costuma-se salientar a importância do terceiro setor e do
fluxo de informações circulando na internet; surge uma forma privada de participar da política por e-mails. Mas, se até
agora esses movimentos têm,
sobretudo, provocado manifestações públicas espasmódicas
-a população saindo em praça
pública para reclamar um direito para em seguida se dispersar-, politicamente nada mais
fazem do que, quando muito,
derrotar um candidato do sistema político já instalado.
Política "soft"
Estamos obrigados a praticar
uma política "soft", em que os
acertos são pequenos e lentamente conseguidos, enquanto
os erros passam a ter conseqüências tenebrosas. Não é o
caso de perguntar se a melhor
democracia do mundo está preparada para enfrentar os problemas que nos afligem interna
e externamente?
Colocando de lado o retorno
a um regime autoritário, a dificuldade está em saber como
aprofundar a democracia extravasando os limites do Estado. Sabemos que nem sempre a
forma do Estado nacional foi a
mais importante instituição
política de um povo, mas até
agora não sabemos como ir
além de seus limites, transformando a democracia numa forma de vida.
Tempos atrás se apostou
muito nos movimentos sociais,
e agora se aposta na criatividade do terceiro setor, desde que
inteiramente desvinculado dos
recursos estatais e de seus partidarismos.
Mas, enquanto novas formas
democráticas de controle social
não são inventadas, é a política
na sua forma atual que precisa
ser vigilantemente praticada,
aceitando a aventura amoral da
criação do novo e o julgamento
moral da coisa feita. De um lado, tratando de renegar suas
traições, suas deformações e
seus enganos mas também valorizando seus momentos de
solidariedade e vislumbres de
futuro. Talvez ele somente venha a transparecer se passarmos incólumes pelo inferno.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia
do Cebrap . Escreve na seção "Autores".
Leia a entrevista do sociólogo Francisco de Oliveira
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