São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

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A lógica do pesadelo

Saem no Brasil dois romances do argentino César Aira, que explora o "nonsense"

MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quem não conhece a literatura do argentino César Aira e se depara com "Um Acontecimento na Vida de um Pintor-Viajante" pode a princípio pensar que está diante de mais uma daquelas biografias romanceadas, desta vez a respeito do alemão Johan Moritz Rugendas (1802-58), autor da "Viagem Pitoresca através do Brasil".
Porém, após uma abertura mais ou menos convencional, em que são citadas as sete gerações de pintores da família Rugendas e referidos os principais dados biográficos -local e data de nascimento, os primeiros estudos de pintura com Albrecht Adam, a participação na expedição Langsdorff ao Brasil, a aproximação com o naturalista Alexander von Humboldt-, o livro desliza para um território que não tem nada a ver com o gênero biográfico, e a impressão inicial do leitor começa a cair por terra.
Estamos na virada de 1837 para 38. Johan Moritz é um célebre pintor de paisagens e está em sua segunda viagem à América, patrocinada em parte por Humboldt. Seu objetivo é "captar a "fisionomia" da paisagem" dos lugares que visita. Para isso, estuda botânica, zoologia, geologia e se especializa na técnica do esboço a óleo. Agora, depois de uma longa passagem pelo México, ele se desloca dos Andes chilenos para a Argentina, onde pretende pintar as planícies desertas do Sul.
Acompanha-o o jovem pintor Robert Krause, bem menos talentoso do que ele, mas muito aplicado. No meio do caminho, Rugendas se vê tomado por dúvidas e furores abstratos: "Quem lhe assegurava que a arte fisionômica da natureza não passaria de moda, deixando-o isolado como um náufrago em meio a uma beleza inútil e hostil?".

Paisagens mentais
A partir daí, o livro abandona progressivamente a exposição objetiva dos fatos, abrindo-se para as paisagens mentais do pintor. Depois de uma estada em Mendoza, Rugendas e Krause seguem a cavalo a reta interminável que leva até Buenos Aires. "O que importava a Rugendas estava na linha, e não no extremo dela. No centro do impossível".
Quando as reflexões tipicamente românticas sobre a natureza, a história e a arte começam a ganhar o primeiro plano da narrativa, eis que irrompe o "acontecimento" anunciado desde o título do livro. Numa noite de tempestade, Rugendas e seu cavalo são atingidos por um raio. "Aquilo não podia ser bom para a saúde", registra o narrador. Homem e animal sobrevivem, e o cavalo dispara arrastando o pintor. As cenas seguintes mostram um pintor sem rosto, figura monstruosa que depende da morfina para suportar a dor.
Vivendo como um fantasma numa paisagem "irreal", Rugendas mergulha no delírio e se abandona ao efeito das drogas, enquanto continua pintando cada planta, cada objeto, cada fragmento de realidade.
E o leitor então se dá conta da estranheza da literatura de Aira, feita de epifanias grotescas, falsas revelações, humor e melancolia em doses cavalares. Mais estranho ainda é o recente "As Noites de Flores", também traduzido com grande competência. A cena agora se passa na Argentina dos últimos anos: tempo de crise econômica, escândalos políticos, desemprego, aumento da violência. À primeira vista, tudo parece indicar que se trata de uma novela de denúncia social, um análogo romanesco do documentário "Memoria del Saqueo", do cineasta Pino Solanas. E, de fato, a crise argentina está toda aí: subemprego, seqüestros, lavagem de dinheiro... Mas o livro vai muito além.

Entregadores de pizzas
Até a metade de "As Noites de Flores", acompanha-se o dia-a-dia de um casal de meia-idade, Aldo e Rosa, que resolve engordar o magro salário da aposentadoria entregando pizzas em domicílios. Enquanto seus colegas mais jovens cruzam velozmente o bairro portenho de Flores em motocicletas, o casal faz as entregas a pé, de braços dados e sempre dentro do horário.
Apesar da atmosfera excêntrica, sugerida aqui e ali pelo narrador, a trama se desenvolve como uma espécie de idílio urbano, em que predominam relações cordiais e quase fraternas entre a geração de aposentados e a dos adolescentes motoqueiros, entre empregados e empregadores, consumidores e prestadores de serviço.
Tudo com humor e algum lirismo. Até a metade do livro, o bairro de Flores parece fazer parte desse mundo.

Reviravolta espetacular
O que se lê em seguida, quando entram em cena personagens como o Nardo e o procurador Zenón, é o desmonte completo desse idílio urbano. Raramente o clichê "nada é o que parece ser" foi tão oportuno quanto no caso deste romance. Mas é isso mesmo. Numa reviravolta espetacular, Aira abandona qualquer perspectiva realista e envereda pelo "nonsense", uma tradição que não é forte nas letras brasileiras.
Impossível enumerar aqui as peripécias que se sucedem. Ao final, lá está o narrador, como se abrisse a porta aos leitores e lhes dissesse: "Bem-vindos ao deserto do real".


MAURÍCIO SANTANA DIAS é professor de literatura italiana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

UM ACONTECIMENTO NA VIDA DO PINTOR-VIAJANTE
Autor:
César Aira
Tradução: Paulo Andrade Lemos
Editora: Nova Fronteira (tel. 0/xx/21/ 2131-1111)
Quanto: R$ 21,90 (128 págs.)

AS NOITES DE FLORES
Autor:
César Aira
Tradução: Paulo Andrade Lemos
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 24,90 (192 págs.)


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