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A lógica do pesadelo
Saem no
Brasil dois romances do argentino
César Aira,
que explora
o "nonsense"
MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quem não conhece
a literatura do argentino César Aira
e se depara com
"Um Acontecimento na Vida de um Pintor-Viajante" pode a princípio pensar que está diante de mais
uma daquelas biografias romanceadas, desta vez a respeito do alemão Johan Moritz Rugendas (1802-58), autor da
"Viagem Pitoresca através do
Brasil".
Porém, após uma abertura
mais ou menos convencional,
em que são citadas as sete gerações de pintores da família Rugendas e referidos os principais
dados biográficos -local e data
de nascimento, os primeiros
estudos de pintura com Albrecht Adam, a participação na
expedição Langsdorff ao Brasil,
a aproximação com o naturalista Alexander von Humboldt-,
o livro desliza para um território que não tem nada a ver com
o gênero biográfico, e a impressão inicial do leitor começa a
cair por terra.
Estamos na virada de 1837
para 38. Johan Moritz é um célebre pintor de paisagens e está
em sua segunda viagem à América, patrocinada em parte por
Humboldt.
Seu objetivo é "captar a "fisionomia" da paisagem" dos lugares que visita. Para isso, estuda botânica, zoologia, geologia
e se especializa na técnica do
esboço a óleo. Agora, depois de
uma longa passagem pelo México, ele se desloca dos Andes
chilenos para a Argentina, onde pretende pintar as planícies
desertas do Sul.
Acompanha-o o jovem pintor Robert Krause, bem menos
talentoso do que ele, mas muito aplicado. No meio do caminho, Rugendas se vê tomado
por dúvidas e furores abstratos: "Quem lhe assegurava que
a arte fisionômica da natureza
não passaria de moda, deixando-o isolado como um náufrago em meio a uma beleza inútil
e hostil?".
Paisagens mentais
A partir daí, o livro abandona
progressivamente a exposição
objetiva dos fatos, abrindo-se
para as paisagens mentais do
pintor. Depois de uma estada
em Mendoza, Rugendas e
Krause seguem a cavalo a reta
interminável que leva até Buenos Aires. "O que importava a
Rugendas estava na linha, e não
no extremo dela. No centro do
impossível".
Quando as reflexões tipicamente românticas sobre a natureza, a história e a arte começam a ganhar o primeiro plano
da narrativa, eis que irrompe o
"acontecimento" anunciado
desde o título do livro. Numa
noite de tempestade, Rugendas
e seu cavalo são atingidos por
um raio. "Aquilo não podia ser
bom para a saúde", registra o
narrador. Homem e animal sobrevivem, e o cavalo dispara arrastando o pintor.
As cenas seguintes mostram
um pintor sem rosto, figura
monstruosa que depende da
morfina para suportar a dor.
Vivendo como um fantasma
numa paisagem "irreal", Rugendas mergulha no delírio e se
abandona ao efeito das drogas,
enquanto continua pintando
cada planta, cada objeto, cada
fragmento de realidade.
E o leitor então se dá conta da
estranheza da literatura de Aira, feita de epifanias grotescas,
falsas revelações, humor e melancolia em doses cavalares.
Mais estranho ainda é o recente "As Noites de Flores",
também traduzido com grande
competência. A cena agora se
passa na Argentina dos últimos
anos: tempo de crise econômica, escândalos políticos, desemprego, aumento da violência. À primeira vista, tudo parece indicar que se trata de uma
novela de denúncia social, um
análogo romanesco do documentário "Memoria del Saqueo", do cineasta Pino Solanas. E, de fato, a crise argentina
está toda aí: subemprego, seqüestros, lavagem de dinheiro...
Mas o livro vai muito além.
Entregadores de pizzas
Até a metade de "As Noites
de Flores", acompanha-se o
dia-a-dia de um casal de meia-idade, Aldo e Rosa, que resolve
engordar o magro salário da
aposentadoria entregando pizzas em domicílios. Enquanto
seus colegas mais jovens cruzam velozmente o bairro portenho de Flores em motocicletas,
o casal faz as entregas a pé, de
braços dados e sempre dentro
do horário.
Apesar da atmosfera excêntrica, sugerida aqui e ali pelo
narrador, a trama se desenvolve como uma espécie de idílio
urbano, em que predominam
relações cordiais e quase fraternas entre a geração de aposentados e a dos adolescentes motoqueiros, entre empregados e
empregadores, consumidores e
prestadores de serviço.
Tudo com humor e algum lirismo. Até a metade do livro, o
bairro de Flores parece fazer
parte desse mundo.
Reviravolta espetacular
O que se lê em seguida, quando entram em cena personagens como o Nardo e o procurador Zenón, é o desmonte completo desse idílio urbano. Raramente o clichê "nada é o que
parece ser" foi tão oportuno
quanto no caso deste romance.
Mas é isso mesmo. Numa reviravolta espetacular, Aira abandona qualquer perspectiva realista e envereda pelo "nonsense", uma tradição que não é forte nas letras brasileiras.
Impossível enumerar aqui as
peripécias que se sucedem. Ao
final, lá está o narrador, como
se abrisse a porta aos leitores e
lhes dissesse: "Bem-vindos ao
deserto do real".
MAURÍCIO SANTANA DIAS é professor de literatura italiana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
UM ACONTECIMENTO NA VIDA DO PINTOR-VIAJANTE
Autor: César Aira
Tradução: Paulo Andrade Lemos
Editora: Nova Fronteira (tel. 0/xx/21/ 2131-1111)
Quanto: R$ 21,90 (128 págs.)
AS NOITES DE FLORES
Autor: César Aira
Tradução: Paulo Andrade Lemos
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 24,90 (192 págs.)
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