São Paulo, domingo, 30 de outubro de 2005

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Vitória do "não" no referendo do dia 23 marca, com um século de atraso, uma virada na história brasileira por desenvolver a consciência dos direitos individuais

A tardia catarse cívica

JOSÉ MURILO DE CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

O referendo surpreendeu-me na utilidade e no resultado. Achava a consulta um desperdício de dinheiro. Poderia ser realizado mais barato, juntamente com as eleições do ano que vem. Erro. Ele provocou um debate apaixonado, em que se envolveram milhões de brasileiros, que ficaria diluído se misturado à disputa eleitoral. Esses milhões não eram os simples espectadores indignados e humilhados das sessões das CPIs do mensalão. Eram participantes, eleitores, que estavam sendo interpelados e convocados a decidir.
A discussão dividiu famílias, opôs maridos e mulheres, pais e filhos, irmãos e irmãs, rompeu barreiras de sexo, idade e cor, colocou do mesmo lado, por razões distintas, a direita ruralista e a esquerda do PSTU. Aparentemente, não havia nenhuma lógica presidindo às tomadas de posição. O referendo quebrou expectativas de comportamento, rompeu lógicas aparentemente óbvias, provocou atitudes surpreendentes, gerou imprevisibilidade. Valeu de sobra os milhões que custou ao contribuinte.


Em nossa tradição estatista e patrimonial, desenvolver a consciência de direitos individuais é uma novidade e mesmo um progresso


Achava também que o "sim" venceria fácil. Pesquisas anteriores lhe davam 80% de apoio. Supondo, corretamente, a existência de um desejo generalizado de redução da violência e, simplistamente, a vinculação natural do "sim" a essa aspiração, concluí por uma vitória dos opositores ao comércio de armas. Deu no que deu.
À medida que avançava o debate, verificou-se uma rápida e inexorável mudança de opinião que resultou em esmagadora vitória do "não" em todos os Estados do país, chegando a impressionantes 87% no Rio Grande do Sul. Em Pernambuco, Estado com maior força do "sim" (45,5%), a diferença em favor do "não" foi de sólidos nove pontos percentuais.
Como explicar a surpresa, que imagino ter sido a de muita gente, sobretudo dos defensores do "sim"? Os 60 milhões de brasileiros que disseram "não" romperam várias barreiras. Católicos desobedeceram a seus pastores, fãs esnobaram seus artistas, a grande mídia se revelou impotente, o mesmo acontecendo com técnicas de propaganda testadas nas campanhas eleitorais. Uma avalanche passou por cima de tudo isso, revelando uma extraordinária convicção da parte da grande maioria dos eleitores.
Algumas explicações apresentadas para o fenômeno não me parecem satisfatórias. A primeira é a que recorreu à divisão entre um Brasil arcaico e um Brasil moderno. A grande dificuldade com essa interpretação é que errou totalmente de lado: se houve alguma correlação positiva foi entre o "não" e a modernidade, e não o oposto, como foi afirmado. Quanto mais educado o eleitor, maior oposição ao "sim".
Outra dificuldade é que muitos outros fatores intervieram nas decisões. O "não" foi muito votado no "moderno" Rio Grande do Sul e nos "arcaicos" Norte e Centro-Oeste. O Sudeste, supostamente a parte mais moderna do país, ficou mais dividido que o Sul.
A segunda explicação é uma variante da primeira. Argumenta que a divisão que se deu foi entre conservadorismo e progressismo. O "não" seria o voto conservador, de direita, da lei e ordem, do politicamente incorreto; o "sim" seria a opção progressista, de esquerda, politicamente correta.
Creio que as evidências são abundantes no sentido de refutar o simplismo dessa explicação. As divisões se deram em todos os campos ideológicos. Os católicos, mais favoráveis ao "não" que os evangélicos pentecostais, não são mais conservadores que eles -e assim por diante.

Bandidos e mocinhos
A pior explicação, no entanto, me parece ser a que divide o "não" e o "sim" entre bandidos e mocinhos. O "não" é o partido da bala, o "sim" é o partido da paz; o "não" defende o direito de matar, o "sim" é pela vida; o "não" é a opção pela barbárie, o "sim" é a escolha da civilização e coisas do gênero.
A explicação é maniqueísta na medida em que divide o mundo em bons e maus. É presunçosa quando coloca seu defensor do lado dos bons. É elitista e arrogante quando desrespeita a opinião de 60 milhões de brasileiros, reduzindo-os a partidários do mal ou, no mínimo, a idiotas enganados e manipulados por um grupo maquiavélico de fabricantes e comerciantes de armas.
Creio haver certa concordância entre analistas sobre o fato de que a força da campanha do "não" consistiu em enfatizar dois pontos, o direito individual à legitima defesa e a crítica ao fracasso das políticas públicas de segurança, isto é, ao não-cumprimento pelo Estado do dever de proteger os cidadãos.
Sem entrar na discussão substantiva do tema, eu diria que a surpresa do resultado do referendo provém exatamente do fato de que tais argumentos tenham encontrado recepção tão positiva. Houve seguramente fatores tópicos que afetaram os resultados, como a tradição gaúcha de uso de armas, as necessidades de defesa das populações de fronteira. Mas eles não explicam a vitória generalizada do "não".
A surpresa vem, sobretudo, do eco encontrado pela defesa de um direito civil clássico, a proteção da própria vida. Pesquisa de opinião pública na região metropolitana do Rio de Janeiro, em 1997, revelou muito baixa consciência de direitos, sobretudo políticos e civis. Do total de entrevistados, 57% não conseguiram mencionar nenhum direito sequer. Apenas 2% mencionaram direitos políticos e 12 % direitos civis. A situação só melhorava um pouco em relação aos direitos sociais, reconhecidos por 26% dos entrevistados.
O referendo veio mostrar que, colocados diante de um problema concreto de direitos, os eleitores identificaram com clareza um direito civil clássico. É sintomático também que, na pesquisa, a consciência de direitos variava na proporção direta da escolaridade. O "não" predominou exatamente entre os mais educados.
Pode-se alegar que se trata propriamente de um direito clássico, isto é, de um liberalismo do século 19. Mas, em nossa tradição estatista e patrimonial, desenvolver a consciência de direitos individuais, mesmo com um século de atraso, é, sem dúvida, uma novidade e mesmo um progresso.
O êxito do outro argumento não foi surpresa. Nossa tradição sempre atribuiu ao Estado a tarefa de resolver tudo, inclusive o problema da segurança (nesse ponto, aliás, ela não diverge da tradição do Estado gendarme). É o óbvio ululante que nossos governos, nos três níveis da administração, com ou sem contingenciamento de verbas, têm falhado miseravelmente em proteger o cidadão. Impedir que o cidadão decida se vai ou não comprar uma arma quando o governo não consegue defendê-lo, restringir um direito ao mesmo tempo que não se cumpre um dever -eis a combinação explosiva que me parece ter levado 60 milhões a votar pelo "não", concorde-se ou não com a decisão.

Degradação da vida pública
Não por acaso, em Diadema, onde a prefeitura executa há cinco anos, antes do Estatuto do Desarmamento, uma política eficiente de segurança, o "sim" venceu, embora por pequena margem.
Creio estarem corretos os que detectam no resultado do referendo um ingrediente político mais amplo. Os eleitores foram expostos, nos últimos meses, ao espetáculo deprimente de degradação da vida pública, dos partidos, do Congresso, do governo, dos políticos. Um "não" a tudo isso estava preso em sua garganta, sufocando-os. O referendo foi a oportunidade que tiveram de gritá-lo a todos os pulmões. Foi uma catarse cívica.
Bom ou mau o resultado, concorde-se ou não com ele, o referendo foi uma robusta e desabusada manifestação da opinião pública. Respeite-a quem for democrata, procure entendê-la quem tiver juízo.

José Murilo de Carvalho é historiador, autor de "Os Bestializados - O Rio de Janeiro e a República que Não Foi" (Cia. das Letras).


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