São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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+ cultura

Matriz histórica do cinema brasileiro, a literatura regionalista volta a influenciar diretores do país como uma alternativa à idolatria do consumo e ao avanço da internet em escala mundial

A ILHA DO DIA ANTERIOR

Arquivo "Última Hora"
Cena de "Vidas Secas"


Walnice Nogueira Galvão
especial para a Folha

Indaga-se de vários quadrantes se assistimos no momento a uma possível ressurreição do regionalismo no cinema, recordando o cinema novo. Na projeção planetária que conquistaram nos anos 1960, nossos cineastas invadiram o sertão e elegeram como ícones os sertanejos. E, dentre estes, especialmente o cangaceiro, súmula do oprimido em luta contra seus grilhões, fagulha que deflagraria a revolução. Filmes admiráveis hauriram em fontes regionalistas os enredos, as personagens, a paisagem calcinada da caatinga. Mas não seria o cinema a conferir ao sertanejo estatura de herói épico, o que já se encontra em Euclides da Cunha, em Guimarães Rosa, no Fabiano de "Vidas Secas" e nos folhetos de cordel. O que acontece agora tem contornos diversos. Nesse ínterim, surgiram filmes sobre o universo caipira, entre eles "A Marvada Carne", de André Klotzel, bem como o documentário "A Estrada da Vida", de Nelson Pereira dos Santos, que focalizou a dupla de músicos Milionário e Zé Rico. E é bom lembrar que o jeca de Mazzaropi dominou por longo tempo as telas, embora em outra craveira, mais popularesca. No entanto o caipira jamais se transformaria em ícone nem originaria uma saga de vulto equivalente à do sertanejo. Um dos enigmas do imaginário é considerar que a rebelião do Contestado [1912-1916], que durou vários anos, empenhou dois Estados do Sul [Santa Catarina e Paraná] e mobilizou dezenas de milhares de pessoas, nunca teve o alcance da Guerra de Canudos, bem mais restrita. Uma hipótese a cogitar seria a lacuna de uma obra literária que lhe erigisse um monumento.


A todo momento assiste-se à ressurreição do cangaceiro como justiceiro vindicatório do povo ou à revalorização da "cultura beata" como igualitária e redistribuidora


Mas o secular êxodo rural brasileiro, que locomoveu milhões, inspiraria todo um complexo simbólico, no qual diferentes linguagens cuidaram de articular respostas artísticas, a partir de farrapos e retalhos, costurando uma grande narrativa. Quando presente na canção popular, o elogio do sertão não dispensou um viés de ambivalência entre duas pulsões conflitantes, uma que se ressente do que ficou para trás, outra que aspira às promessas da esperança. A formalização lírica de uma nostalgia difusa, fincada na perspectiva de quem já se encontra no novo eldorado, a exemplo de "Luar do Sertão" (tão cedo quanto 1913) -da autoria de Catulo da Paixão Cearense, um maranhense-, impera nas letras. Como se verificaria na seqüência em Caymmi, nos inícios de Gilberto Gil e Caetano Veloso, em Dominguinhos, em Belchior, em Alceu Valença e em Elomar. Mas houve também canções de luta, entre as quais, afora as trilhas sonoras do cinema novo, sobressaem "Carcará" (1965) [de João do Vale e José Cândido] e "Disparada" (1967) [de Geraldo Vandré], esta descrevendo didaticamente a aquisição de uma consciência revolucionária por um boiadeiro do sertão. Na pintura e na cerâmica, Portinari e Vitalino de Caruaru deram outras dimensões ao imaginário regional, plasmando cangaceiros e retirantes. Ultimamente, Antonio Nóbrega se mudou de Pernambuco para São Paulo para dar continuidade a sua missão de resgate das artes do desempenho, tão ricas naquelas paragens. E quem quiser ler relatos menos remotos do migrante nordestino, peão pela própria natureza, pode encontrá-los nos figurantes dos contos de João Antonio, nos vários livros de Roniwalter Jatobá e em "Essa Terra" (1976), de Antonio Torres. Ou, na modalidade biográfica, em "Lula, o Filho do Brasil" (2002) [ed. Perseu Abramo], de Denise Paraná. O grande ancestral deles todos é "Vidas Secas" [de Graciliano Ramos, 1938], que, desafinando do uníssono que glorifica a decadência no romance de 1930, apeia da casa-grande para aderir com pertinácia ao ponto de vista de "los de abajo". Entronizando o cangaceiro proveniente desse romance, referendavam-se seus laivos de contestação e rebeldia. Ora, ele se adequava especialmente a um veículo visual, vindo por isso a constituir propriamente um ícone, no impacto de uma panóplia de signos escorado pelo olho: o encourado com o chapéu cravejado de metais, cartucheiras atravessadas no peito, anéis cobrindo os dedos. Num procedimento comum -e Guimarães Rosa também o utilizaria-, o cinema recolheu traços da legenda de Lampião. "Grande Sertão: Veredas" e "Corpo de Baile" viram a luz em 1956, mas a contribuição do autor para a temática sertaneja continuaria por todo o período: "Primeiras Estórias" é de 1962 e "Tutaméia - Terceiras Estórias", de 1967. Depois do êxito de "O Cangaceiro" (1953) [dirigido por Lima Barreto], que recebeu 35 prêmios internacionais, inclusive em Cannes, outro filme de assunto similar conquistaria a Palma de Ouro no mesmo festival. No modo não da beligerância, mas, ao contrário, da mansuetude cristã, "O Pagador de Promessas" (1962), de Anselmo Duarte, baseado numa peça de Dias Gomes, guindava a alturas épicas a resistência do sertanejo a uma variedade de pragas naturais e sociais.

Estilo realista
Em seguida, surgem quase ao mesmo tempo, entre 1963 e 1965, quatro grandes filmes. "Vidas Secas" [1963], de Nelson Pereira dos Santos, revela Graciliano Ramos para o cinema. "Deus e o Diabo na Terra do Sol" [1964], de Glauber Rocha, põe em cena o cangaço e o misticismo, saídas da plebe brasileira para uma situação insuportável. Glauber aproveita elementos de "Os Sertões", de "Grande Sertão: Veredas" e de "Cangaceiros", de José Lins do Rego, mas a mescla leva sua grife. "Os Fuzis", de Rui Guerra, de enredo politicamente certeiro, fala da passividade dos pobres, entorpecidos pela fome, e da falta de iniciativa dos demais.
Completa o notável quarteto "A Hora e a Vez de Augusto Matraga" [1965], de Roberto Santos, o cineasta que melhor compreendeu Guimarães Rosa. Mais tarde, surgiria "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro", de Glauber Rocha, que obteria o grande prêmio de direção em Cannes, em 1969.
Seria possível traçar um arco cinematográfico em três segmentos, cada um deles devidamente ressemantizado. Após esse primeiro, constituído pelo cinema novo, um segundo segmento passa por dois filmes lançados no ano de 1979. O primeiro é "Bye-Bye Brasil", de Cacá Diegues, que se entrega com ferocidade à demolição dessas quimeras. Como pano de fundo, um país em que os anos de ditadura esmagaram os projetos utópicos e a indústria cultural entrava a todo vapor, sobretudo mediante a televisão, vampirizando a faixa ocupada pelo cinema e pelo teatro, no caso o mambembe. Vemos o herói de ontem, o nordestino, deixar o torrão natal para encerrar seu périplo, até há pouco épico, no centro de poder que é Brasília, porém degradado em músico de forró usando camuflagem de encourado. O outro é "O Homem Que Virou Suco", de João Batista de Andrade, em que José Dumont faz o nordestino triturado nas engrenagens da indústria paulista, também fantasiado de cangaceiro. Esse segundo segmento se caracteriza pelo modo da derrisão, como se estivesse cobrando do nordestino aquilo que o próprio cinema lhe atribuiu, enfarruscando porque não foi atendido. Passando por ainda outra ressemantização, o terceiro segmento culmina em "Baile Perfumado" (1996), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, no qual, numa abordagem de segundo grau, o protagonista é Abraão Benjamin, o libanês que filmou o bando de Lampião, um cineasta obcecado por cangaceiros. Propõe-se a crítica de todo o processo, que durou perto de 40 anos. Esse metafilme não trata diretamente de cangaceiros, mas de alguém que se rende a seu fascínio -como já ocorrera com o cinema brasileiro. No mesmo ano, "Corisco e Dadá", de Rosemberg Cariry, revisita a história do último cangaceiro, em estilo realista, novamente com cuidados etnográficos e pouca fantasia.

Pólo de execração
Data de pouco tempo, igualmente, a recuperação da Guerra de Canudos pelo orgulho regional baiano, que passou ao pólo oposto da execração que lhe votou a seu tempo, erigindo o evento em efeméride bairrista, postulando ali uma comuna socialista encabeçada por um líder revolucionário. O MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra] reivindica o evento como precursor, o que é patente, entre outras coisas, nos nomes com que batiza assentamentos ("Antonio Conselheiro", em Mato Grosso, "Nova Canudos", em Goiás etc.). Vai no mesmo sentido a encenação monumental de "Os Sertões", de Euclides da Cunha, feita por José Celso Martinez Corrêa, no teatro Oficina, numa suíte de quatro espetáculos que duram cinco horas cada. A todo momento assistimos à ressurreição do cangaceiro como justiceiro vindicatório do povo ou, então, à revalorização da "cultura beata" como igualitária e redistribuidora. Certamente, outras metamorfoses ainda nos aguardam. Surge ultimamente no cinema o ponto de fuga que é um sertão indeterminado onde, em busca de Jesus, humanamente rebaixado de divindade e fundador de religião a pai -escamoteado -do protagonista, "Central do Brasil" [de Walter Sales, 1998] vai parar. Ou que então serve de palco para relações de afeto fora do convencional, como em "Eu Tu Eles" [de Andrucha Waddington, 2000], no qual diversas linhas se entrecruzam. Substitui o patriarcado ou um universo de mulheres e de filhos, como no primeiro filme, ou a franca poliandria, como no segundo. Tudo se harmonizando com a perquirição que o cinema mundial anda fazendo de outras configurações familiares que não o casal. Nem denúncia social, como no romance de 1930, nem fermentação revolucionária, como no cinema dos anos 1960, nem autocrítica, como nos anos 1970 e 1980, agora, ao que parece, anunciam-se novos rumos.

"Outra coisa"
Entretanto até quando deveremos buscar as origens dessas metamorfoses na ficção regionalista, que no passado inspirou as câmeras? Nossa literatura veio adquirindo um cunho acentuadamente urbano e até metropolitano, que repercute no cinema. Já os filmes não dão mostras de olhar para trás, parecendo, ao contrário, sondar o futuro. Deixam transparecer uma rejeição muito decidida dos valores que imperam nas matrizes do capitalismo. Não se sabe bem o que buscam, mas buscam "outra coisa": algo que passe por fora do fundamentalismo do mercado, com suas regras inclementes, da idolatria do consumo, do evangelho digital que atomiza e isola as pessoas ao arrebatá-las na ilusão de se conectarem numa rede internacional -ou até intergaláctica- de sociabilidade. Por isso o cinema, o brasileiro inclusive, anda tão estimulante.
Em tempo: acaba de ser criado o primeiro videogame nacional, pelo Senac. Seu herói é um cangaceiro, por nome Cibério (melhor fora Ciberino).

Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na USP. É autora de "No Calor da Hora" e "Guimarães Rosa" (Publifolha).


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